Custódia, de Xavier Legrand

Por Pedro Fernandes



O que não se deixa ver aos olhos da justiça. Ou a impossibilidade da lei em penetrar nos meandros mais escuros da violência doméstica. As duas maneiras são possíveis de definir este que é o primeiro longa-metragem Xavier Legrand. No Festival de Veneza, o trabalho do diretor francês ganhou destaque como Melhor Primeiro Filme e Melhor Direção. Situada entre o suspense e o drama, a narrativa de Custódia é a das que lidam com o estriamento dos nervos do espectador.

Isso porque o drama da separação é aqui transposto do lugar-comum das personagens principais envolvidas nesse imbróglio para aquela que nos estados que se orgulham do imperativo da ordem pela confiança nos sistemas jurídicos seria a parte menos afetada sobretudo quando tornada no foco do exercício de proteção. Assim, todo impasse levado à permanência pela jurisprudência que interpreta o caso entre Miriam e Antoine Bessom como uma forja dos dois e entende que a guarda de Julien é dever dos dois, é filmada, em grande parte a partir do ponto de vista do menino.

A criança converte-se então em principal figura nesta narrativa sobretudo quando descobrimos o esforço que faz – entre a dissimulação e a mentira – para manter o pai distante da mãe. Mas, tudo não é tão simples assim. Legrand prefere a construção de uma história a todo tempo titubeante ao interferir continuamente esse ponto de vista principal com outras determinantes; ao passo que instala um suspense em crescente, partindo de uma corroboração com o veredito da justiça à total negação dele pelo desfecho que pode resultar numa tragédia familiar, o filme se mostra numa investigação acurada sobre todas as reentrâncias da relação falida.

De toda maneira, os sinais para o pior estão em toda parte. O diretor francês participa assim dos mesmos possíveis da dissimulação de Julien e dos pais do garoto e leva o espectador pela mão, como se fosse o seu interesse fazer com que construísse sua própria hipótese para só então revelar qual a tese que defende. Alguns exemplos: o discurso apelativo do pai na abertura da narrativa a dizer para a justiça que sofre à distância do filho e a acusação de que a criança é envenenada pela mãe para estar contra o pai, a importante diferença física entre mulher e homem nos jogos semióticos, o imperativo dominante assumido pelo pai sobre o filho, a excessiva proteção da mãe e o desejo de se manter de um todo distante do passado.

Julien – de nenhuma maneira inocente – é ainda fundamental no âmbito de questionador do impasse vivido pelos pais, interessado em nele compreender-se e encontrar, no fim, embora não tenha nenhum poder sobre, alguma alternativa. Isto é, todo o interesse do garoto em desenvolver estratégias para os desencontros entre os pais se dá por uma intuição sua de que serve enquanto elemento de manobra dos dois – embora desenvolva a percepção a partir do abuso da força do pai que este é para si (e a mãe) um perigo contínuo.

O filme de Xavier Legrand se desenvolve assim entre os lugares da violência visível e invisível, além daquilo que se insinua a partir desta, ou ainda de como o que está na aparência pode participar ativamente das situações-limite. A narrativa de Custódia investe sobre o tema do abuso, de como este se infiltra, corrói as relações, e é mecanismo no rol das impossibilidades de vistoriá-lo a olho nu. É ainda um poderoso retrato psicológico sobre a obsessão e de como podemos, por razão diversa, cairmos num torvelinho capaz de destruir o outro e a nós mesmos.

Pelo tema e a maneira como o diretor o explora, este filme também se firma como uma denúncia sobre os lugares invisíveis da violência doméstica; é o registro polivalente e acurado de como o caminho a ser percorrido no que se refere às relações ainda é deveras longo. Isso, no ponto em que se pressupõe certa ordem pelo embate do direito. Fica de fora, os casos distante desta condição, como os que vemos diariamente nos noticiários, em que o imperativo da violência alcança, antes de chegar ao judiciário, os mesmos níveis da barbárie. 

Evoluímos, mas falta outro tanto de tempo para alcançarmos alguma alternativa mais justa capaz de garantir algum conforto para todos. Afinal, os casos mais de gabinete podem recair nos mesmos lugares dos casos do bárbaro e Custódia apresenta isso. Mas entre o que filme mostra e as situações mais graves de fora da ficção há um elemento maior que toda violência física: o medo impetrado por uma violência simbólica. É este fantasma que ronda continuamente Miriam e a transforma em figura fantasmal impossibilitada de usufruir do bem inegável a todos: a liberdade. Ninguém pode viver, no sentido pleno do verbo, com medo. 

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