O que não há para se contar


Por Guilherme Mazzafera

Ilustração: Tunji Adeniyi-Jones, The Princess Red Serpent.


1. Onde morre um autor nasce um leitor. Essa máxima recém-elucubrada tem gosto de acicate. O autor abdica da criação para a passividade da leitura, como teria feito Philip Roth após Nêmesis? (Com certeza há algo nas gavetas, pronto para a rapinagem editorial). Ou falamos aqui de algo mais sutil, do desvelamento de algo constitutivo que permaneceu à sombra da formalização crítica por demasiado tempo? As invectivas ao leitor (ou ouvinte) não são necessariamente novas e o protagonismo intraficcional deste data ao menos de 1605, quando Miguel de Cervantes Saavedra escolheu um desloucado leitor como herói do que a crítica, ela mesma, convencionou mais tarde chamar de romance. Mas Miguel foi além: na segunda parte do livro, em 1615, os personagens que circundam aquele leitor são, também eles, leitores: leitores da primeira parte e mesmo daquela infausta continuação apócrifa de Avellaneda, de 1614. Onde morre um autor nasce um leitor: ao protagonismo do leitor, antepõe-se o velamento da autoria: no prefácio, Miguel reconhece-se não como pai, mas padrasto de Dom Quixote. A partir do final do capítulo 9, somos apresentados a seu autor primeiro, o historiador arábico Cide Hamete Benengeli, cujo calhamaço teria sido encontrado pelo então autor primeiro Miguel (agora segundo) em Alcaná de Toledo. Ao parodiar, entre muitas outras coisas, o já gasto recurso do “manuscrito encontrado e vertido”, Miguel acrescenta novos matizes ao ladear a adjetivação hiperbólica do sábio mourisco com a nem tão diáfana carga negativa que o último termo carregava à época, que, pela paciência do leitor destas linhas, resumimos em um único termo: a infidelidade ao que se reputa como verdade universal, católica. Ao enfraquecer sutilmente o que seria sua própria fonte forjada de autoridade – o preciso mas infiel historiador arábico que assina o manuscrito –, passando de autor primeiro a leitor primeiro do calhamaço, Miguel pisca para nós, leitores segundos, engenhosamente incorporando no próprio tecido narrativo e metanarrativo a infidelidade necessária diante dos protocolos de leitura que, como seu herói, carecem de desloucamento constante.   
  
2. Se formos acreditar nos alemães, há palavras que têm espírito. Ou, por recuperação etimológica, palavras-fantasmas que, voláteis, arquitetam as estruturas do que materialisticamente chamamos contexto. Zeitgeist, ‘espírito do tempo’, talvez seja a mais famosa delas e fala de uma convergência insuspeitada de ideias, parolando à distância. Ensaiemos uma nem tão improvável parousia deste espírito laico: em 1967, Roland Barthes declara a morte do autor, cuja minuciosa autópsia seria levada a cabo no ano seguinte por Michel Foucault, que questiona menos as causas do óbito do que os próprios alicerces sócio-literários que autorizavam alguém a exercer tal ofício bem como a livre circulação de seus produtos. Em 1969, Hans Robert Jauss publica seu fértil ensaio “A história da literatura como provocação à teoria literária” que, junto com “A estrutura apelativa do texto”, ensaio de Wolfgang Iser publicado em 1970, pavimenta os caminhos para a constituição de um campo da teoria literária conhecido mais tarde por Estética da recepção. Percebendo o texto, em sua relação com o leitor, como “reformulação de uma realidade já formulada”, o ato interpretativo de tal fenômeno não pode prescindir dos “juízos históricos dos leitores”. Assim, como propõe Iser, uma obra, no enlace entre o polo artístico (criado pelo autor) e o estético (concretizado pelo leitor), “é o ser constituído do texto na consciência do leitor”. Retomemos nosso bordão, agora chancelado por uma importante divisa da crítica literária franco-germânica que nos outorga a definição dos artigos: onde morre o autor nasce o leitor, ainda que a alguns quilômetros a leste do velório.

3. O primeiro censo brasileiro, realizado em 1872 revelou um Brasil 82,3% analfabeto, o que faz Machado de Assis questionar, no prólogo às Memórias póstumas de Brás Cubas, se o livro de 1881 (seria romance?) encontraria dez, cinco, quiçá um único leitor. Para quem se escreve foi sempre uma preocupação machadiana, em especial nos últimos cinco romances e nos contos da década de 1880 em diante. O leitor: quase-personagem. Brás Cubas ameaça-o com piparotes, repreende-lhe a puerilidade e acusa-o de defeito supremo do livro. Mas nunca o esquece. Sua “sede de nomeada”, malfadada no emplasto, é redirecionada para o livro cujos capítulos nos expede. Há, por tortas vielas, uma sondagem elíptica mas desbragada do “horizonte expectativas” de seus leitores e ao menos um excelente estudo já mostrou como a evolução dos romances de Machado se faz com o olhar atilado em seu público. Aliás, se tivesse por tarefa localizar o núcleo irradiador da ficção machadiana, creio não errar muito o alvo ao recuperar uma frase da quase inexorável Quintília, a desejada das gentes: “não fale de humilhação, onde não houve público”. Os sentimentos, as paixões, as convenções, os fatos: tudo só existe pela conformação ao olho alheio. Acrescente-se isso ao dissenso de medidas na busca dos vínculos mais estapafúrdios como método de investigação moral e terá se encontrado, “guardadas as devidas proporções”, o élan vital dessa ficção desveladora. Mas, como a xícara de Drummond, Machado, enodoado pela poeira do século, espia-nos da estante.

4. Há um romance de Sergio Sant’Anna, Um crime delicado (1997), em que o narrador intenta defender-se de um estupro ao atribuir-lhe, com retórica poderosa, intenções artísticas. Mesmo sem tê-lo lido, é possível inferir aí certa técnica machadiana, em que a obra que se escreve por tal voz, ofertada ao leitor, é, em verdade, obra escrita contra o seu pseudoautor (como propõe Roberto Schwartz sobre Brás Cubas), expondo toda a falácia e capricho por argumentos deformadamente sensatos. Tal técnica tem vida longa, sendo reprisada em Dom Casmurro e, mais de cem anos depois, na estrutura de Match Point (2005), filme inaugural do Woody Allen europeu. (Allen, aliás, lista Brás Cubas como um de seus cinco livros favoritos.) Case closed: Sérgio é, mesmo sem querer, machadiano.

5. De Sérgio Sant’anna só li um texto. Li? É legível o que não se conta, contando? Mas o que se conta, sem contar? Quando não se quer contar, quando não se quer assumir uma voz condutora que desfralda os eventos, o narrador pode optar pela regência invisível de um diretor teatral, escondido no meneio da cortina: sem contar, expõe em tensão, pelo método dramático, as vozes elas mesmas. É recurso poderoso, pois retira de seus ombros a necessidade de um arremate, de uma ordenação inteligível, deixando ao espectador / leitor o desenlace hermenêutico. Mas... e se não houver vozes, se não houver personagens? Como expor, sem narrar, o que não tem voz?

Pelo método cosmogônico: parte-se do nada para um delineamento inicial: esboços, silhuetas esguias, irreferenciáveis: “Mas o que é uma cobra quando não há nenhum homem por perto?”. A cobra não se sabe ser cobra, mas a voz que diz “cobra” já a mira, mesmo sem olhar. Todo narrador reencena o Gênesis, mas mesmo sendo Deus (ou, em chave menor, um romancista), como lembra Ian McEwan, não há reparação possível. Se narrar o que ocorreu não redime, talvez narrar o que não ocorreu, por uma volúvel efabulação, seja apenas um outro meio de narrar, i.e., circunscrever, o que não há para se contar.

6. “Conto (não conto)”, em toda a sua engenhosidade narrativa (é uma narrativa?), parece estruturar-se como glosa de um mote machadiano: o que não é visto é invisível. A glosa, inevitavelmente, transforma o mote por sua repetição diferenciada:

“Mas o que é uma cobra quando não há nenhum homem por perto?”
“Mas o que são os zumbidos se não há ninguém para escutá-los?”
“E o que é também o silêncio se não existem ouvidos?”
“o que é a dor de um homem quando não há ninguém por perto?”

A ideia de uma narrativa em oroboro, genésico-apocalíptica, é emulada pelo texto na construção e desconstrução de imagens associadas ao capricho narrativo (o preenchimento de um espaço impreenchível só para depois esvaziá-lo, cobrando sua conta), ladeadas pelo convite constante à imaginação em uníssono com o leitor (pois ler é, sim, produzir sons). Há certa banalização do ato de criar que emula, em alguma medida, a narrativa bíblica do Gênesis em sua dupla criação – tanto pelos dois relatos divergentes quanto pela anulação da criação primeira pelo dilúvio. Toda deidade é caprichosa.

7. Os vermes, os mesmos a quem dedica Brás Cubas “como saudosa lembrança” suas memórias, ocupam o “aqui” em que o narrador de Sant’Anna se encontra (será?). Mas são invisíveis, “Principalmente porque não há olhos para vê-los”. No limite, o próprio tempo só existe quando alguém o calcula pelo esvair-se das coisas que ocupam espaço: “porque não existe tempo quando não existem coisas, homens, movimentando-se no espaço”.

O knock-out cortaziano, famosa imagem-síntese do efeito buscado pelo conto como forma, comparece aqui em chave pessoal: não tanto por revelação súbita, mas pelo questionamento – irrespondível, uma vez que postulado de modo alternativo – do já referido horizonte de expectativas do leitor: “Mas contar o que, se não há o que contar? Então está certo: se não há o que contar, não se conta. Ou então se conta o que não há para se contar.” Onde morre o autor, nasce o leitor.



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