Anima, de Paul Thomas Anderson


Por Maurílio Resende



Anima é um curta-metragem classificado como one-reeler, porque possui duração aproximada de 12 minutos, tempo máximo de filmagem permitida por apenas um rolo de filme. Lançado em conjunto com o terceiro álbum da carreira solo de Thom Yorke (Radiohead, Atoms for Peace), a produção estreia no catálogo da Netflix e explora algumas das ansiedades e melancolias do músico e vocalista, construindo no processo uma miríade de paisagens oníricas assombrosas e encantadoras.

A história é simples: encontramos Thom Yorke em um vagão de metrô, no que parece ser a viagem de volta para casa depois de mais um dia de trabalho. Por através do torpor típico que parece acometer a todos no transporte público lotado, Yorke cruza olhares com uma mulher desconhecida, interpretada pela atriz italiana Dajana Roncione. Percebendo que a moça, ao descer do trem, esqueceu sua maleta de trabalho ao lado do banco em que estava sentada, Yorke dá início a uma jornada caótica para reencontrá-la, ultrapassando uma série de obstáculos simbólicos para consegui-lo.

Anima não possui falas. A narrativa é desenvolvida a partir da mistura de elementos visuais e, naturalmente, da trilha sonora, saída diretamente do disco homônimo lançado por Yorke. A coreografia fica a cargo de Damien Jalet, elogiado pelo recente trabalho no longa Suspiria, de 2018, produção que também contou com Thom Yorke como responsável pela trilha sonora. Como resultado, encontramos em Anima uma combinação de movimentos que evocam sensações angustiantes de ansiedade, isolamento e inadequação; o curta, no entanto, mostra-se poderoso principalmente nos momentos em que escapa dessa atmosfera distópica e opressora, ora por intermédio de um humor ácido e rascante, ora por toques poderosos de beleza e sensibilidade.

Cabe aqui um merecido destaque para a performance corporal de Yorke. Famoso por seus excêntricos movimentos de dança em videoclipes e apresentações ao vivo das bandas que lidera, ele acompanha com segurança os dançarinos profissionais com que contracena ao decorrer do curta. Além disso, protagoniza na companhia de Dajana um dos mais belos e emocionantes momentos de sua carreira. A cena em questão é embalada pela belíssima “Dawn Chorus”, que abre o terceiro ato e acompanha Yorke e Dajana até o encerramento do curta.

“Dawn Chorus” é uma expressão em língua inglesa para o coro dos pássaros que cantam durante o alvorecer, principalmente quando estão em época de acasalamento. A letra da música apropria-se dessa imagem para versar justamente sobre os momentos em que nos é impossível escapar da maior de todas as condições humanas, quando nos percebemos completamente perdidos, desviados da nossa ilusória sensação de controle e, apesar de todo o cansaço, de todo o medo, toda a dúvida, decidimos começar de novo (“yeah, without a second thought / I don’t like leaving / the door shut / … / if you could do it all again / this time with style”).

Para os aficionados por Radiohead e por sua carreira solo, é notável que Thom Yorke tem permitido que aspectos pessoais da sua vida transpareçam com maior clareza nas músicas que cria. No álbum A Moon Shaped Pool, por exemplo, encontramos a faixa “Daydreaming”, cujos versos evocam reflexões sobre os anos vividos como líder de uma das bandas mais cultuadas das últimas décadas, assim como sobre os vinte e três anos passados ao lado de sua ex-companheira, Rachel Owens, falecida em 2016, mesmo ano de lançamento do disco, de quem se divorciou em 2015. Assim como Anima, o clipe de Daydreaming também foi dirigido por Paul Thomas Anderson.

A parceria mostra-se mais uma vez sólida e eficaz. Anima é uma experiência que escapa com facilidade de quaisquer rótulos reducionistas. Muito mais que um videoclipe, para além dos possíveis delírios egocêntricos de um “astro do rock” de meia-idade, o curta sustenta-se como o inspirador e comovente registro artístico de um recomeço pessoal.

* Estudante de Letras, Maurílio Resende tem 27 anos e mora em Niterói, Rio de Janeiro.

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