O fabuloso destino de Amélie Poulain, de Jean-Pierre Jeunet

Por Pedro Fernandes



Exibido nas chamadas sessões Cults O fabuloso destino de Amélie Poulain é certamente um dos filmes mais delicados (e fofos), sem ser piegas, das produções contemporâneas. Marcado por um narrador em off tão metódico com os detalhes quanto a natureza das personagens que pretende analisar (alguns caricatos e parece que saídos de um conto de fadas), trata-se de uma produção reveladora sobre a nossa relação individual com os mundos que fabulamos e o quanto esses interferem na vida coletiva.

Quer dizer, ao menos o universo de Amélie e porque ela, movida por um certo espírito quixotesco, de heroína contemporânea num mundo sem heróis, decide reanimar a rotina desvalida de sentido das vidas dos que estão ao seu redor. Isso significa dizer que, da mesma maneira que a personagem central da história faz com que seu mundo particular possa intervir de alguma maneira (como se obra do acaso na vida dos que lhe são próximos), a vida repentina e monótona destes são responsáveis por tornar o mundo ainda mais desprovido de sentido e de beleza.

Mas, para compreender isso ou chegar a essa reflexão proposta pelo filme, é preciso que o expectador supere pelo menos os seus quinze primeiros minutos – é o tempo que o narrador em off gasta para apresentar uma a uma as personagens da história, como se estivéssemos ante um daqueles romances clássicos em que é preciso para o desenvolvimento da ação que sejam apresentados todos os outros elementos da narrativa. Para uns, esse efeito poderá servir de uma força maçante e desestimulante para se dedicar ao filme, por isso o adendo.

Sem se concentrar nas ações do filme, chamamos atenção para outras peças que compõem a produção e são, no melhor do cinema, as responsáveis pela unidade e beleza da obra. É esta, apesar do metodismo, uma espécie de narrativa que se desenvolve sem motivos aparentes para se desenvolver. Isto quer dizer que o texto tem uma desenvoltura própria quase como se saltasse dos limites de vontade de alguém que interessado em escrevê-lo para ganhar pulsa própria. Este parece ser um dos artifícios do diretor no processo de representação sobre a vida: esta nada mais é do que uma sucessão de acasos e só tem sentido se o indivíduo se deixar, para o bem ou para o mal, tomar pela presença do outro. E porque olha tão perto a vida das suas personagens, esse narrador (vamos assim chamar o olho da câmera) prefere um minimalismo, uma aproximação das pessoas, quase como se estivesse controlando um teatro de marionetes. Reflexo de certa força divina no empuxo das vidas humanas? Não; não há espaço para essa conotação religiosa.

Para além das quase infinitas intervenções de Amélie na vida dos mais próximos – todas produtoras de certa revisão nos modos de ser e estar no mundo – é preciso citar o que se constitui, talvez, o melhor do filme: o desabrochar de uma paixão que, como faz a personagem sobre a vida dos outros, ela insiste em querer levá-la pelas vias de certa razão. É quando prestes a um desfecho diferente do esperado por todos quando diante de uma história de amor se manifesta a mais valia sobre o tema do amor: não há razões que o defina, nem ele obedece às leis humanas. Está noutro limite.  Este é o melhor do filme porque cria no espectador, a cada nova criação de Amélie em alimentar o espírito curioso do rapaz pelo qual se apaixona, certa expectativa por saber até onde isso vai dar.

E a relação de Amélie por Nino é colocada – mesmo que a narrativa se erga como obra ao acaso – na altura certa, porque reinjeta outro gás à obra numa hora em que o fôlego parece cair dada a realização dos conflitos das outras personagens e, claro, na repetição do mesmo jogo de ações. Como uma história de amor, Amélie é um filme que atualiza o tema ao propor ainda que nascida e determinada da mesma forma comum desenvolvida de outra maneira. Sim, toda força das histórias está na maneira utilizada por quem conta.

Esses e muitos outros detalhes (este é um filme riquíssimo) servem para dizer que, se este não é um grande filme, no sentido como tem sido forjado esse tema, é (ampliemos também as maneiras de dizer) um grandioso filme. A interpretação de Audrey Tautou conta muito; talvez ela fique por ser lembrada sempre pela maneira como incorpora e dá vida a Amélie. E as diversas questões que a narrativa suscitam são elementos já suficientes para esta constatação.  


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