A longa travessia de Nabokov

Carteira de Identificação para Emigrantes de Vladmir Nabokov


Nascido em 22 de abril de 1899, Vladimir Nabokov, autor já há muito conhecido, amado e odiado por uma personagem, amante das borboletas, rico conferencista, inimigo dos clichês e homem de opiniões fortes. É um dos mais reverenciados autores emigrantes e desde a época em que Estados Unidos e Rússia eram muito mais que rivais, eram inimigos mortais. Apesar da sua jornada para a aclamação cultural na América servir de signo de esperança para muitos e mesmo aposta na capacidade de respeito entre os povos sem olhar a quem, a ida de Nabokov para os Estados Unidos representou-lhe um período de grandes perdas e de profunda tristeza, afinal não se troca de identidade como quem muda de roupa, principalmente porque há aí uma leva de valores afetivos mais forte que qualquer coisa.

O fato é que os Estados Unidos serviu-lhe de ponto de equilíbrio numa vida toda ela nascida sob o signo do nomadismo. Após a Revolução Bolchevique, quando Nabokov tinha só dezoito anos, sua família foi obrigada a fugir de sua cidade natal, São Petersburgo. Refugiaram-se em Berlim, em 1920, depois de morar em vários outros lugares. Dois anos mais tarde, o seu pai tornou-se secretário do Governo Provisório Russo. Foi morto num acidente ao tentar proteger o verdadeiro alvo de um assassinato político. A mãe mudou-se, então, para Praga, mas Nabokov permaneceu em Berlim, onde ganhou considerável reconhecimento como poeta. Em 1923, conheceu Véra Evseyevna Slonim, o amor judaico-russo da sua vida, com quem permaneceu para o resto dos seus dias.

Até 1940 o casal viveu certa estabilidade na França. Mas, depois a ocupação nazista varreu a Europa e veio a Segunda Guerra Mundial. Toda tranquilidade dos Nabokov, na família já fazia parte o único filho Dmitri com então seis anos, estava agora de novo ameaçada. Fugindo do avanço alemão, entraram sem muita coisa no SS Champlain com sentido para os Estados Unidos. É a história dessa mudança o centro de The Secret History of Vladimir Nabokov (título ainda sem tradução no Brasil), da autora Andrea Pitzer.

Pitzer é pesquisadora em Havard sobre narrativas de não-ficção, coordena o site Nieman Storybord e The Secret History of Vladimir Nabokov  é produto de longos anos de investigação sobre a vida do escritor russo naturalizado estadunidense, vida enigmática quando o assunto é o contexto político no qual viveu o escritor tão logo da sua mudança para os Estados Unidos. Viagem que, além do risco da ameaça nazista chegar antes da fuga, esteve ameaçada pela própria saúdo do filho; Dmitri pouco antes da partida apareceu com febre e algumas bolhas pelo corpo, o que não permitiria o embarque da criança nessas condições. Tudo se resolveu como alguns comprimidos de sulfa num tratamento sob rodas – foram seis horas até chegar ao porto – e, felizmente o pequeno se recuperou a tempo de sobreviver ao crivo da vigilância sanitária na hora do embarque.

Era 19 de maio de 1940, quando o Champlain se afastou do cais deixando para trás o continente europeu. Na Polônia eram abertos os portões do primeiro edifício no complexo da morte que foi o campo de concentração de Auschwitz. No mês seguinte a França estava rendida aos aviões de combate que num voo sobre Saint Nazaire matou mais de quatro mil soldados britânicos. No navio, Nabokov foi registrado como russo, Véra como hebraico e Dmitri também como russo. A longa viagem, embora feita sob a tensão eminente de um ataque inimigo, terá servido ao escritor para repensar numa nova vida em segurança, longe dos perigos mortais de uma guerra. Na bagagem, já levava a ideia para romances como o seu mais conhecido, Lolita.

A viagem de navio teve seu fim em 26 de maio em Nova York. E, um dia no navio, antes de descer para o solo, os Nabokov estava nos Estados Unidos. Uma vez no porto, a família ainda teria de passar por uma outra bateria de exames, agora junto à Guarda Militar. Nos formulários, Nabokov inscreveu-se como escritor e Véra como dona de casa, depois, passaram por uma chuva de perguntas, se tinham tendências polígamas, algum defeito físico, problemas de saúde mental e foram obrigados a repetir várias vezes que eles não eram anarquistas e que não tinha intenção em derrubar o governo. Os Estados Unidos ainda não haviam entrado na guerra, mas estava preocupado com a entrada de comunistas e revolucionários no país. Depois da imigração, foi a vez de passarem pela alfândega, mas Véra havia perdido as chaves da bagagem. Enquanto esperavam um chaveiro, Nabokov, sedento por notícias do novo país foi saber onde encontrar um jornal e foi ‘presenteado’ por um porteiro com o The New York Times.

Na bagagem, Nabokov, além das ideias (abstratas) para suas narrativas, os funcionários deram com as borboletas mortas na coleção do escritor, suas luvas de boxe, que lhe deram certa credibilidade ao tornar-se estadunidense. Enfim liberados, os Nabokov tomaram um táxi e se instalaram na casa da ex-mulher do primo de Nabokov. E, enfim também, era dada a largada para uma nova vida. Vida que a princípio foi deprimente. Vivendo numa sucessão de alojamentos temporários, enquanto buscava emprego a partir de seus talentos literários, os ‘não’ de um público ignorante ao seu valor se multiplicaram.

Além de toda essa trama, The Secret History of Vladimir Nabokov revela a partir da pesquisa em arquivos secretos e ainda inéditos do grande público é que estando em solo estadunidense e isolado de seu país natal, Nabokov manteve uma intensa e inquietante história política que se manifesta, nem sempre explicitamente, na sua ficção. E isso certamente dará uma revisão sobre sua vida e sua obra.


* texto escrito com notas a partir de "Nabokov and Homeland Security: How Russia's Most Reverd Literary Émigré Became an American", de Maria Popova.

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