Ódio, amizade, namoro, amor, casamento, de Alice Munro
Por Pedro Fernandes

Este livro foi publicado no Brasil em 2003 e foi o primeiro
título da escritora canadense a chegar por aqui. Deve, na época, assim como
outros livros que vieram depois, ter passado despercebido pela grande maioria
da crítica e em parte dos leitores comuns. Dez anos depois, o contexto de reedição
dessa antologia de textos é diferente: Alice Munro foi premiada com o mais alto
galardão que pode receber um escritor, o Prêmio Nobel de Literatura, sendo a
primeira escritora exclusivamente de narrativas curtas a receber a honraria. E
numa situação inusitada, diga-se: poucos meses antes do anúncio, ela própria
havia dito que declinava da longa carreira de manipulação com as letras.
Se o Prêmio irá colocar novas centelhas a
ponto de se renovar a imaginação e o interesse pela escrita não sabemos; se não, é preciso
dizer que há muito que se ler para ter uma visão mais ou menos acabada sobre obra e a
escritora que tem um domínio sobre a objetividade linguística e uma polidez de gentleman com a palavra inconfundíveis. Apenas,
esclareço, antes de algum mal entendido (que o mundo da escrita anda cheio deles), que, dizer que a escritora tem a polidez de um gentleman com a palavra não tem o mérito de associar a escrita de Munro
à ordem de uma masculinização da gramática – isto é, não tem cabimento aqui aquela
ultrapassada ideia do “escreve como homem”. Não. É apenas um efeito de retórica
que visa traduzir uma nuance estilística, a polidez, detectada ao contatar com sua escrita.
É necessário dizer que esse breve apontamento tem por base
as nove narrativas não tão breves que compõem Ódio, amizade, namoro, amor, casamento – livro em boa hora reeditado pela
Globo Livros através do selo Biblioteca Azul. O leitor atento já perceberá logo
que essas características aqui apresentadas têm sua gênese já no título da
obra, um compósito de palavras-chaves ou rascunho para a elaboração de temas definidores de um itinerário a ser percorrido pela contista. Palavras-chaves até podem ser,
embora os sentimentos evocados pelas histórias contadas por esse narrador polido
de Munro ultrapassem a ordem desses cinco termos colocados como linha de
enfeixe para os textos.
Outra característica de Ódio,
amizade, namoro... está na sensibilidade da escritora em extrair das situações
comezinhas uma narrativa a indicar que o motor da existência não está além do
corriqueiro. Há nisso um sentido poético. O trabalho de observar no que há de mais
simples a inteireza das coisas e o sentido da vida. Mais: Munro absorve essas situações
e as redesenha como uma larga correnteza cujo fim não se dá nem mesmo com a
morte. Os momentos da vida de uma pessoa reverberam sempre no outro e o fim
dessa reverberação é impreciso. Isso se traduz na composição das narrativas
deste livro; vejam bem, mesmo se guiando pela objetividade esta se encontra
apenas no nível vocabular e na construção frasal do texto, que no fluxo do
enredo não há quaisquer fechamento induzido pela ideia de objetivo, como se
aqui se mostrasse uma possibilidade de dizer sobre a nossa eternidade não auferida.
Munro privilegia a vida como se suas personagens estivessem
sempre sobre uma corda bamba – é o terreno movediço, o incerto, de onde é possível
extrair o apogeu de exercícios como o ato de ter medo, de amar, de esperar,
sendo tais exercícios sempre uma condição que induz o indivíduo a não estar parado,
extraindo dessas lições sempre outro patamar de sua condição humana. É possível
compreender que a textualidade de Munro nesta coletânea de contos é ela também um
exercício de experimentação da vida. E a vida chega a ter mais sentido se vivida
nessa infinita movência, como se uma brincadeira do mesmo gênero da que
vivenciam as duas amigas do conto que dá título ao livro. Isto é, a vida se constrói
ora daquilo que planejamos, ora do acaso que nos pega sem querer e nos leva
para outra situação, diversa daquilo que planejáramos. Não há espaço para a ideia
de destino. Tudo, até mesmo o acaso é produto das escolhas diretas ou indiretas
que assumimos.
A vida é embate. Sugere, por exemplo, o segundo texto, “Ponte
flutuante” em que, para além da ideia de acaso se desenvolve na trama uma viagem cuja existência parece dizer que só digna de nota pela teimosia do homem
e da menina sobre o ir e vir de carro pela cidade. A escolha de citar este
texto aqui tem ainda outro propósito: entre a discórdia, mostra-se outro
sentimento inerente às narrativas de Munro neste livro – a solidão. A viagem
termina com a mulher sozinha pensando sobre sua velhice, a doença da qual
padece e o passado quando quase deixou o companheiro. Ainda sobre o embate,
vale citar outro conto em que uma mulher tenta preparar para o marido já morto,
um velório menos religioso a fim de não fazê-lo chocar-se com um universo de
convicções pelo qual nunca nutriu simpatia. “Conforto” é um embate entre a objetividade
de uma crença – ser ateu é também uma crença – e um conjunto de convicções culturais
engendradas em torno da morte.
Esqueci-me do tempo em que li uma antologia de contos com
tanto encanto quanto esta de Munro – texto feito de intermédios, a começar pelo
gênero dotado da precisão e concisão necessárias ao conto e da amplitude e
flexibilidade do romance. E aqui ficamos, já que talvez nunca haveremos de ler
um romance da escritora que preferiu a brevidade, à espera de que nos chegue o
próximo título a ser editado também pelo Selo Biblioteca Azul, The View from the Castle Rock e Ranaway. O interesse de Munro por
realidades substantivas (como os substantivos enumerados no título) nos fazem
sentir mais próximos de nós mesmos, seja pelo tom intimista das narrações, seja
pela busca constante de suas personagens sobre um entendimento acerca da vida.
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