Casadas com o trabalho sujo dos escritores

Por Lorena G. Maldonado 

Véra e Nabokov

Há um poema de Esther Morillas chamado “Os longos silêncios” que retrata, cheio de doçura e sátira, a vida de uma mulher casada com um escritor: “Não fala comigo toda a manhã, / mas não está enraivado: / meu noivo é escritor, / e quando lê ou escreve ou não faz nada / é que está trabalhando. / Trabalha todo o dia: os escritores são gente contumaz / cheios de pensamentos. / Lembra de mim, digo, / quando o deixo só. / Eu sei que pensa em mim sem se dar conta”.

Sim, não é fácil conviver com alguém que leva dentro de si a chama da escrita. Não é fácil lidar – dentro ou fora de casa – em carne e pensamento com o processo criativo de outro: a frustração, as manias, as horas mortas olhando para a parede... Anos inteiros em busca da frase perfeita, interessado na personagem preferida.

Às companheiras de escritores sempre se pede mais que paciência para que seus companheiros possam criar; também têm sido suas secretárias, suas editoras, suas tradutoras, suas donas de casa e mães. Fêmeas valiosas à sombra, aguentando todo o peso da realidade para que o homem – o amado líder – possa mergulhar nas ideias. Este texto cita apenas sete delas – sabendo, entretanto, que o número é muito maior; da mesma maneira, é uma aproximação à vida secreta de figuras como Juan Ramón Jiménez, Herman Hesse, Vladimir Nabokov, Liev Tolstói e Fiódor Dostoiévski.

Juan Ramón Jiménez e Zenobia Camprubí


Zenobia Camprubí

Talvez uma das mais célebres no universo de língua espanhola. Foi casada com Juan Ramón Jiménez – compartilhou com ele o talento porque todas suas energias se concentraram em sublinhar a obra do poeta. “A vida é vã”, escrevia ela. “Um pouco de amor, / um pouco de ódio, / e logo, bons dias...”. Camprubí resistiu às neuroses depressivas e à condição enferma e gris de Jiménez com toneladas de alegria inata. Ele era um homem que havia aprendido desde criança a fazer-se de frágil para receber continuamente mimos e cuidados. Trabalhava num quarto acolchoado. Não suportava quaisquer intrusões externas. O poeta era um estranho. Exigia silêncio e dedicação.

Ela quis livrá-lo da sordidez da vida real e obrigou-se a mantê-lo, a tirar as pedras do caminho para que pudesse passar descalço. Logo montou um antiquário, começou a decorar apartamentos para alugá-los a diplomáticos estrangeiros e faxinava ela própria suas escadas. “Não se pode deixar Juan Ramón sozinho totalmente. Ele é queridíssimo embora me deixe louca!” – escrevia nos seus diários. Remendava roupas, cozinhava e ensinava a ler e escrever às mulheres nas prisões. Foi sua tradutora, sua agente literária, sua psicóloga, sua vigilante e até sua mãe. Também viajante, feminista, defensora das crianças vítimas da guerra civil.

Em Zenobia Camprubí. Diario de Juventud. Escritos. Traducciones, publicado pela Fundação José Manuel Lara, se pode ler, por sua própria voz, quem foi a menina forte, poliédrica e enigmática que morreu três depois de saber que iam dar o Prêmio Nobel de Literatura ao seu companheiro. Um alívio depois de toda uma vida acalentando-o. O prêmio foi quase seu: sua criação, seu projeto humano, a recompensa. Em seu leito de morte se preocupou de deixar escrito as recomendações para que quem fosse cuidar do poeta seguisse.

Véra Nabokov

Escrevia o que seu companheiro ditava. Além de sua datilógrafa foi sua secretária, leitora, motorista e editora. Sua explorada companheira. A mulher que o presenteou por 52 anos de sua vida. A que perdoou todas as infidelidades e até se culpou por elas. Ele a correspondeu adorando-a.

Era muito conhecido na Universidade de Cornell que o professor Nabokov nunca ia para as aulas sozinho. Uma séria senhora de cabelo branco o levava todos os dias em seu Oldsmobile. Com o cavalheirismo contrário, dava-lhe o braço e o acompanhava até a sala de aula. Então, sentava-se na primeira fila. Vladimir a chamava de “minha assistente” e a transformou em menina para tudo: recolher provas, substituí-lo na sala de aula, encontrar a página exata da obra sobre a qual estava falando e até escrever suas palavras no quadro, como se o acompanhasse o que dizia. Muitos acreditavam que era um tipo de guarda-costas que levava uma pistola no bolso. Outros, que era sua mãe. E outros ainda que era uma amante zelosa que lhe seguia em toda parte para evitar que outras mulheres se aproximassem dele. 

Mas Véra era uma figura marcante: formada em Línguas Modernas na Universidade de Sorbonne, curiosa e cultíssima, abandonou sua carreira para ampliar a de seu companheiro. Esteve ao seu lado quando sua escrita ainda deixava muito a desejar. Quando a prosa de Nabokov, segundo suas palavras, ainda era “quente e úmida”.

Foi ela quem poliu, cortou, ordenou a escrita de Nabokov, como uma jardineira fiel ao seu jardim. Foi ela quem negociou seus contratos editoriais, corrigiu as traduções de seus contos em alemão e de sua poesia em italiano. Também foi Véra quem salvou Lolita de ir para o fogo quando o escritor, num levante de frustração, decidiu fazê-lo matéria-prima para a lareira. Quis lhe dar uma vida tão tranquila que até buscou um sistema para que as borboletas que colecionava morressem com a menor dor possível. Seu corpo repousa numa lápide cujo epitáfio diz “Esposa, musa e agente”.

Tolstói e Sofia Behrs

Sofia Behrs

Escritora fotógrafa. Conheceu Tolstói quando tinha 18 anos; ele já era um escritor reconhecido por seu livro Os cossacos. Casaram-se nesse mesmo ano e tiveram treze filhos, desses, só oito chegaram à idade adulta. Ela, triste e cansada, tentou convencê-lo para usarem contraceptivos, mas ele sempre se negou e até a acusou de se preocupar demais com pouca coisa.

Sofia encarregou-se da promoção e das finanças de Tolstói; copiou uma dezena de vezes o manuscrito de Guerra e paz. “Lembro como esperava depois do trabalho diário de Lev Nikolaievich e com quanta ânsia me apressava para transcrevê-lo, encontrando sempre novas belezas. Mas na décima transcrição do mesmo escrito já não havia mais nada. Agora isto me mata. Tenho que começar a fazer algo para mim mesma, se não quero que a alma morra de vez”.

Também foi quem escreveu os diários do companheiro; estava atenta a tudo para documentar sua vida. Mas da admiração que sentia pelo gênio passou à frustração por seus vaivéns e suas mudanças de humor: ele chegou a reclamar-lhe por ter mastite. “É monstruoso não dar o peito a teu filho – me diz ele. E quem pretende o contrário? O que fazer frente a uma impossibilidade física? Sinto que está sendo injusto. Por que tortura-me tanto?”

Os últimos anos foram um pesadelo. O temperamento dela, por fim, azeda e torna-se ora zelosa ora paranoica. Outro grande ponto de conflito foi o desejo do escritor de doar todos os bens e direitos à humanidade e não à família. Aos 81 anos, Tolstói a abandonou. Morreu dez dias depois.

Hermann Hesse e Ninon Dolbin


Maria Bernoulli, Ruth Wenger e Ninon Dolbin

Foram as três companheiras de Hermann Hesse, um homem incapaz de amar de verdade, de construir uma vida familiar. “O que no pensamento e na arte constitui para mim uma preferência, na vida – e especialmente com as mulheres – com frequência me causa problemas: não sou capaz de concentrar meu amor, de amar uma coisa ou uma pessoa de verdade, mas devo amar a vida e o amor em geral”, diz o escritor. Ele sempre as desprestigiou e falou mal delas.

Maria era pianista e uma pioneira na fotografia na Suíça. Deixou seu trabalho para que ele pudesse escrever e viajar em busca de ideias. Assim, ela cuidava dos afazeres domésticos, passava a limpo seus escritos, organizava suas viagens. Era nove anos mais velha que ele e chegou a pedir como presente de aniversário dois dias livres para sair da rotina.

Ruth era uma reprodução deslumbrada da estrela. Sua relação consistia, segundo ela, no que “Hesse mandava e eu obedecia”, sem receber nunca “nenhuma só demonstração de carinho”. Comunicavam-se por escrito mesmo vivendo debaixo do mesmo teto. Sua primeira companheira acabou no psiquiatra – depois que ele lhe confessou uma traição – e a outra, doente de tuberculose ante seu olhar vazio.

Será com Ninon Dolbin sua relação mais duradoura; ela também esteve encarregada de cuidar, com infinito cuidado, de seu legado literário. Havia se apaixonado pelo neurótico Hesse durante toda a vida e se dedicou a esperar, paciente, sua vez. Nada passou do que já havia sido: a única obsessão do escritor era com sua obra e não existiu mulher que o distraísse desse interesse, por mais que algumas personagens tenham algo delas. Quando morreu, deixou de recordação centenas de cartas nas quais dizia aos amigos o quanto odiou suas mulheres.

Anna Snítkina

“Meu coração estava cheio de ternura por Dostoiévski, que havia sobrevivido ao inferno do exílio. Sonhava em ajudar o homem que havia escrito algumas narrativas que tanto adorava”, escreveu Anna em suas memórias, tomada pelo espírito ou fenômeno de fã. O autor russo se declarou para sua taquígrafa – que tinha só vinte anos – um mês depois de conhecê-la. Ele tinha 45 anos e a descoberta de Anna foi para ele uma lufada de ar fresco. Ela ajudou-lhe a terminar a última versão de O jogador e foi sempre sua secretária; guardava grande empatia e compaixão pelas personagens que Dostoiévski criava: chegava até chorar enquanto ele ditava o texto.

Sobreviveram à miséria dos últimos anos graças a hábil qualidade de Anna em gerir tudo – ela quem fazia os malabarismos econômicos enquanto ele dilapidava o patrimônio familiar. Tratava seu vício no jogo como uma doença, não como vício. Quando Dostoiévski morreu, ela se dedicou em publicar suas obras e a construir o museu em homenagem ao escritor. Não se casou mais. “Com quem poderia me casar depois de Dostoiévski? Com Tolstói, talvez?”, perguntou irônica, certa vez.

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Comentários

Unknown disse…
O mais nítido retrato de como o patriarcado age, usurpando das mulheres o seu direito de ser livre. Provavelmente sem suas mulheres esses autores teriam encontrado muitas barreiras...
Cássio Serafim disse…
Parabéns pelo interessante texto, o qual nos serve para reflectir sobre a presença e o papel do patriarcado na vida de indivíduos que se tornaram pilares da cultura literária dita ocidental.

Fiquei-me, portanto, a conjecturar se haveria exemplos de homens, maridos de escritoras, que exerceram o mesmo papel na vida das suas companheiras artistas.

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