Os pensamentos íntimos de Flaubert


Por Matías Battistón



Num velho manual que compila diversos fragmentos da literatura francesa, Causeries et exercices français, publicado pela Universidade de Cambridge em 1954, figurava uma chamativa anedota sobre Flaubert. Tudo está apresentado para que o leitor tome o texto por apócrifo e assim se mostra talvez mais revelador: isso porque, se uma anedota verdadeira tem origem no mero fato de ter acontecido, uma anedota apócrifa muitas vezes nasce do esforço de ser chamativa. A história se atribui ao crítico de arte Théodore Duret, com quem Flaubert se encontra uma tarde com Ivan Turguêniev. Por um desses acasos, o escritor estava escrevendo nesse momento uma carta ao prefeito para fazer um favor a um compatriota russo recém-chegado a Paris. Antes de se despedir, queria apelar pela última vez à boa vontade da autoridade. Turguêniev aproveita então para consultar Flaubert:

– Que digo? “Apelo à sua cortesia” ou “Apelo à sua generosidade”?


Flaubert balbucia:

– Generosidade... Cortesia...

O balbucio se prolonga, como se Flaubert, observa Duret, buscasse “a palavra-chave que poderia abrir às portas para Ali Babá”. Por fim, diz:

– “Generosidade” não satisfaz totalmente, mas “cortesia” não serve para nada! Deixaria-me passar alguns segundos na sala de jantar? Logo encontrarei a palavra exata.

Enquanto Flaubert se isola para pensar, Duret conversa com Turguêniev, e lhe conta sobre sua vida para o amigo russo.

Passado longo tempo, e provavelmente em meio de alguma iluminação, Turguêniev para e exclama:

– Esquecemos de Flaubert!

Os dois entram correndo à sala de jantar. Encontram o escritor francês sentado num sofá. Continua pensando.

– Simpatizo com“cortesia”, mas vou deixar para escrever a você amanhã pela manhã. Preciso checar com meu travesseiro.

Vencido, seca o suor da testa. “Diria”, diz Duret, “que acabava de realizar um trabalho exaustivo”.

O outro, o mesmo

Apócrifa ou não, a anedota resume de maneira caricatural a imagem que perdura, não sem razão, de Flaubert em sua maturidade: a do escritor que pesa cada palavra com um rigor que beira o masoquismo, que faz da precisão verbal uma ascese contínua e que, num sentido não muito figurativo, se mata escrevendo. Por isso, ele próprio diz de maneira diversa: “Quanto mais avanço, mais dificuldades descubro para escrever as coisas mais simples”, anota já em 1847. Em 1852, numa carta a Louise Colet, confessa diretamente: “Por vezes tenho vontade de chorar. É uma força sobre-humana escrever e não sou mais que um homem”. Essa oscilação contínua, sofrida, paradoxalmente é o mecanismo que sustém um pacto de escrita irrenunciável. Flaubert é talvez o símbolo do escritor decidido e do escritor em perpétua dúvida: não sabe se poderá escrever, mas sabe que não poderá fazer outra coisa. Nem formar uma família, nem praticar um ofício, nem se resignar a servir para algo. Subordinada à literatura, sua vida, de certo modo, é presa de uma vez e para sempre nesse vai-e-vem neurótico, recluso, comodamente financiado pela herança familiar, que reduz quase toda dúvida ao ato diário de atravessar o tempo movido com uma pena de ganso e um papel.

Já na infância, na adolescência e nos primeiros golpes da vida adulta, Flaubert foi o escritor marcado pela contradição. O homem de rápida inspiração, de criação transbordante, atormentada, que na escola havia produzido, às vezes numa sentada, contos e novelas, um longo drama histórico, uma coleção de aforismos, seu primeiro romance. O que fantasia com uma vida exótica e bem-dotada de perversões, mas na realidade não atina a decifrar como é que fará. “O futuro é pior no presente”, escreve ao seu amigo Ernest Chevalier em 1839. “Esta pergunta, o que vais ser, jogada ao homem, é um abismo aberto ante ele, que se aproxima à medida que ele avança”. Como bem disse Frederick Brown, para Flaubert era mais fácil imaginar-se no fim do mundo que no fim dos estudos.

Poderia se escrever a história da literatura através das dúvidas dos escritores, suas inseguranças, o caminho que foram traçando em torno de suas incertezas. Todavia, aos dezoito anos, Flaubert é capaz de escolher entre dois substantivos sem infartar, mas se desespera porque não sabe o que fazer da sua vida. Essa espécie de avanço ao contrário do homem que será domina todos os textos deste período, centrados na exploração fascinada de um incerto projeto de escritor.

As duas sortes

No fim de 1839, no último ano escolar, Flaubert quase é felizmente expulso do colégio por indisciplina, mas as autoridades, por influência talvez de seu pai, permitem-no cumprir os últimos exames como aluno livre. Seu ânimo nos meses seguintes, enquanto se prepara, não é muito diferente daquele dos meses anteriores; a carreira de advogado, típico ponto alto no seu tempo para os jovens da alta burguesia com ambições literárias, já se apresentava há muito como um destino cada vez menos impossível de se esquivar. “Minha existência, que havia sonhado era tão bela, tão poética, tão vasta, tão apaixonada, será como as demais, monótona, sensata, estúpida”, escreve a Ernest em fevereiro desse ano, destacando com dolorido heroísmo: “estudarei Direito, me formarei”. “Pedes-me que te diga quais são meus sonhos” – retoma noutra carta. “Nenhum. Meus projetos de futuro? Não tenho. O que quero ser? Nada”. Essa pulsão antivocacional não impede que vaticine formar-se, não só como advogado, mas como doutor em legislação. “Depois disso é muito possível que me mude e faça turco na Turquia, ou me torne cuidador de mulas na Espanha, ou mesmo condutor de camelos no Egito”. É um dos segredos da abulia, a rápida multiplicação de planos.

Apesar de tudo, em agosto de 1840, graças a um regime severo – em julho diz levantar-se para estudar às três da manhã todos os dias e só ir parar às oito ou meia-noite –, Flaubert recebe seu diploma. Seu pai, muito orgulhoso, lhe concede dois desejos: um ano sabático antes de começar a faculdade e empreender uma longa viagem cujo itinerário o levará aos Pirineus e à Ilha de Córsega, cruzando Bordéus, Baiona e o sul da França. “Olha, observa e toma anotações”, recomenda-lhe. “Não sejas um caixeiro viajante de férias ou um viajante de comércio fazendo sua ronda”.  Essa sentença contra a estupidez da burguesia será moderada ou mesmo corrigida com os companheiros de viagem: o doutor Jules Cloquet, colega paterno e alegre crente nos guias de turismo; Lise Cloquet, a irmã solteirona de Jules; e o padre Stefani, um abade italiano, ao que lhe parece viciado em mastigar figos.

A expedição dura de 22 de agosto até 1º de novembro. Flaubert conhece paisagens extasiantes, deixa-se perder entre ruínas, cores novas em Ruan. É uma dose homeopática dos destinos distantes com os quais sonha à noite. “Detesto a Europa, a França, meu país, minha suculenta pátria que com muito gosto mandaria ao diabo”, anuncia pouco depois de seu retorno, “agora que entreabri uma válvula de escape”. Esse vislumbre de liberdade, de todas as formas, funciona menos como incentivo à fuga que a fantasia da fuga. Quase poderia dizer-se que o que busca com estas experiências não é tanto o futuro ao qual possa se jogar mas um passado prometido.

Primeira vez em Marselha

Flaubert já havia conhecido os prazeres do amor platônico e, se levarmos em conta seus passeios pela Rua Cicogne, também os dos prostíbulos, mas é inegável que foi durante essa viagem, além tudo iniciática, que teve lugar o que, num sentido amplo ou tolerante, poderia se chamar sua primeira vez. Sabemos que, ao regressar de Córsega e depois de desembarcar no porto de Tolone, Flaubert se hospeda no hotel Richelieu, na Rua de Darse. A filha da proprietária, também administradora do hotel, é uma mulher de trinta e cinco anos, de cabelo negro e exóticos ecos de americana, Eulalie Foucaud de Langlade. Flaubert contaria aos irmãos Gouncourt, anos mais tarde, como ela o seduziu descaradamente, incitando-o a um longo beijo primeiro e entrando mais tarde no seu quarto para entregar-lhe sem cerimônias um serviço oferecido pelo hotel que não era ainda totalmente conhecido. É uma noite única, nos dois sentidos da palavra. No dia seguinte, ele parte de regresso para Ruan. Nunca mais voltarão a se ver.

O acontecimento foi importante para Flaubert, embora talvez mais ainda para ela. Numa série de cartas de crescente euforia enviadas pouco depois e ao longo de vários meses, Eulalie começa a assediá-lo com longas confissões recheadas de clichês e um generoso catálogo de hipérboles. Até conhece-lo, havia vivido como um autômato. Ele havia atiçado sua alma, despertado sua carne, como se atiçado “o alento da criação”. Mais adiante, “já não tinha forças suficientes para viver sem este amor”. “Embarquei numa nova existência” – escreve, talvez suspirando justamente antes da vírgula –, só para desejar e sofrer”. Por momentos dá a impressão de que ela havia querido, com essa noite juntos, fazê-lo mergulhar de vez na vida adulta enquanto ela voltava a uma juventude adolescente.

Orgulhos e recluso, Flaubert deve ter sentido certo alívio da distância que a geografia impunha entre os dois. Mesmo que há muito sonhasse com o amor de uma mulher assim e, simultaneamente, com alguma desculpa caída do céu para sair de onde vivia, agora que Eulalie se jogava aos seus pés e lhe pedia para fugir com ela para alguma terra distante, o projeto não mais o tentava, nem ao mínimo. A correspondência, depois de quase um ano, deixa de existir. Depois de tudo, como podia levar a sério uma mulher que escrevia ottomate ao invés de automate?

Mais uma vez algo que não tenta Flaubert como futuro não significa que ele não o tente como passado. Ao longo de sua vida, cada vez que volta a Marselha, irá à Rua Darse para visitar o hotel Richelieu e talvez reencontrar-se com Eulalie, ou melhor para não a encontrar e desejá-la. Às vezes a constatação, de sua ausência não é vista de forma educada: “Em Marselha não voltei a encontrar essa excelente peituda – escreve a Alfred Le Poittevin em 1845 – que me deu tão prazerosos quartos”. Mas, mesmo aqui Flaubert não deixará de voltar a ser romântico, ainda que seja apenas para se compadecer de si mesmo: “As portas estão fechadas, o hotel está abandonado. Apenas pude reconhecê-lo. Não é um símbolo? Desde há muito meu coração tem as portas fechadas, seus espaços desertos; os quartos tumulados de então, agora vazios e silenciosos, como um grande sepulcro sem cadáver”. Nisso Flaubert é típico; parece-lhe mais fácil identificar-se com um edifício que com uma ex-amante. Bem poderia ter dito: “O hotel Richelieu, c’est moi”.

A última vez que vai à Rua Darse, em 1858, para trabalhar em Salambô já não encontra mais o edifício. “Olhou, procurou e seu deu conta de que agora era uma loja de brinquedos e que o primeiro piso estava ocupado por um salão de cabeleireiro”, apontam em seu diário os Goncourt. “Subiu, fez a barba, e pode reconhecer ainda o antigo papel de parede do quarto”.

Como o final é perfeito, mas as despedidas são difíceis e a barba logo cresce, antes de ir para não voltar, segundo confessa numa carta a Louis Bouilhet, Flaubert sobe novamente ao salão e pede para se barbear outra vez.

Caderno íntimo

Ser adolescente em pleno romantismo é uma redundância ou um excesso. Flaubert confessa aos Goncourt que no colégio dormia com um punhal debaixo do travesseiro; pouco simbólico mas revelador de suas fantasias e medos é um caderno de capas avermelhadas em que escreveu esporadicamente desde os fins de 1839 até início de 1841, entre os dezoito e dezenove anos. Publicado em 1965 como Recordações, apontamentos e pensamentos íntimos, este texto, em suas próprias palavras, conclui sua infância e “começa algo que não tem nome, a vida de um homem de vinte anos”. Uma zona que não é “nem a juventude, nem a idade adulta, nem a velhice: é tudo isso ao mesmo tempo, com seus relevos e particularidades”.

Para Flaubert, a nostalgia é a primeira necessidade e nem pode esperar que exista um passado perdido e distante. Aqui, aos dezoito anos já estranha ter quinze. Também cultiva a decepção com o entusiasmo admirável: reler o escrito para encontrá-lo péssimo não apenas é um costume, é uma expectativa, um objetivo da escrita em si. “Escrevo estas páginas para relê-las depois, num ano, em trinta anos. Isto me trará novamente à minha juventude, como uma paisagem que alguém quer voltar a ver e que não retorna”, lemos no caderno. “Nós a imaginávamos bela, alegre, com folhas verdes: mas nada, está seca, já sem grama, já sem pássaros nas árvores. ‘Oh, pensava que era mais bonito!’, dizemos”. É como se escrevesse buscando criar um passado do qual quer se desenganar. Outros jogam uma garrafa ao mar para não ser esquecidos; o Flaubert de hoje busca alcançar o Flaubert do futuro com uma garrafada na cabeça.

Também é neste período que começa a escrever, até finais de 1840, seu segundo romance, Novembro, onde Eulalie Foucaud se converte em Marie, espécie de santa prostituta que inicia o protagonista no desejo, na perdição e no consumo de longos monólogos na cama. Como o herói da narrativa, em seu caderno Flaubert alterna megalomania e autocompaixão, entre pontuações críticas, reflexões de aspiração filosófica, algum vislumbre de misticismo, epigramas e resumes de dias vividos. É uma miscelânea que em sua autoconfiança, ou mesmo sua falta de forma, reflete sobre a mesma forma do pensamento de quem escreve.

Não sabemos, na verdade, se alguma vez releu este caderno, do qual nunca se desfez. Mas podemos adivinhar que, de tê-lo folheado, muito além da distância irônica e da decepção antecipada com tanto esmero, algum eco terá sentido de seu antigo eu esse outro Flaubert, o mítico, para quem a decisão de uma palavra era a decisão de um destino.


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* Este texto é uma tradução de “Los pensamientos íntimos de Flaubert”, que foi publicado inicialmente em Eterna Cadencia. O original está aqui.

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