Memórias do sobrinho de meu tio, de Joaquim Manuel de Macedo


Por Pedro Fernandes



É muito possível que Joaquim Manuel de Macedo figure entre os escritores brasileiros que padecem no limbo da memória literária de seu país e quando lembrado pertença apenas à lista dos autores de um livro só, embora essas duas condições sejam um duplo golpe contra um criador autêntico e polivalente, que tomou muito a sério a condição do gênio, esmerando-se pelo trabalho de construir uma obra singular e significativa para um país que ainda engatinhava na formação de um sistema literário.

As razões que levam à primeira visão são oferecidas dado ao silêncio em torno de sua obra e a escassez de sua presença, muito provavelmente restrita a alguns dos poucos cursos de Letras, entre os leitores brasileiros; e, a segunda constatação, que se justapõe à anterior, se determina pela reiteração de A moreninha como sua Magnum Opus, eleição tão controversa como injusta porque tem ofuscado os poucos olhares para um universo criativo amplo e diverso. Mas, qual a razão desses enganos? Do primeiro não é preciso ir muito longe porque está profundamente metido naquela condição que, desastrosamente, tem, por sua recorrência em esferas diversas, nos servido de elemento definidor: nosso pouco apreço à memória.

E, do segundo, podemos recorrer a frentes diversas para sua compreensão. Uma delas se deve à imensa popularidade que A moreninha obteve entre os leitores do seu tempo: principiantes, a narrativa preenche uma variedade de suas expectativas, tais como, o princípio da história de amor e certo blasé, em plena aproximação com os modelos sociais vigentes. Sabe-se que foi a fama alcançada por essa publicação que o seu autor resolveu abrir mão da carreira médica para se dedicar exclusivamente à literatura e ao jornalismo, o que, possivelmente, mesmo com todas as relações estreitas mantidas com o poder, não tenha sido suficiente a ponto de levá-lo a se embrenhar pela complexa selva política brasileira. O romance publicado em 1844, pelas relações de similitude que mantêm com o modelo romântico, tem sido sempre o exemplo ideal para justificar as manifestações desse espírito no Brasil; nas escolas ou nos cursos de Letras – quando circula – é sempre com esse propósito redutor.

Mas, Joaquim Manuel de Macedo, pode oferecer aos leitores coisa melhor; sua obra romanesca preenche quase duas dezenas de títulos, além de manifestar diversas outras formas, tais como a crônica e a biografia. Além disso, é o autor situado entre os reformadores – e, pelo seu contexto de atuação, um criador – do teatro brasileiro, com uma obra situada entre o drama e a comédia. Deixou um livro de poesia, A nebulosa, e uma variedade de outras contribuições para a geografia, a história e a medicina, que, certamente, guardam seu valor na histografia das ideias no Brasil.

Dentre os romances, Memórias do sobrinho de meu tio, obra que forma parte num ciclo que podemos denominar como o das Sátiras Políticas, composto também por A carteira de meu tio, é um dos títulos indispensáveis para se pensar a formação do Brasil, sobretudo política, pela maneira como nos oferece uma visão viva e pulsante do seu tempo. Parece aqui que o romancista se utiliza dos mesmos recursos recorrentes em obras que podemos considerar o pilar dessa tradição na nossa literatura, como é o caso de Cartas chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga. É que no romance de Joaquim Manuel de Macedo voltamos ao contato com a figuração sobre o poder político pelo mesmo ponto de vista da obra do escritor mineiro: a narrativa suposta fabricada por outro enunciador que simula o enunciador real do narrado. No caso desse romance, com um agravante: as memórias são produtos de um indivíduo que acreditar poder comprar tudo, inclusive as ideias, "como se compram peixe e verduras na praça do mercado". 

O sobrinho de meu tio é o nome geral escolhido pelo autor dessas memórias que trata de apresentar, claramente sem a sua própria leitura (porque é um autor simulado), ao leitor de seu tempo de maneira profundamente sincera sua vida e a geringonça política formada no Brasil da primeira metade de oitocentos. O fato é, tal como em Tomás Antônio Gonzaga, todas as situações aí evocadas podem encontrar uma relação muito estreita com a história imediata e exterior à ficção. Quer dizer, esse sobrinho de meu tio, como o Critilo das Cartas chilenas que é numa leitura apressada o próprio Gonzaga, tem muito do Macedo. Basta dizer que o escritor romântico esteve igualmente envolvido profusamente no cenário político de então, tendo militado no Partido Liberal, sempre preso a uma lealdade quase cega justificada apenas pelos beneméritos que, obviamente, usufruiu quando se tornou deputado provincial e deputado geral. Nada nos autoriza a falar em simples transição do vivido para o ficcionado; mas também nada nos impede de assim considerar, sem deixar, é claro, de compreender que estamos diante de um exercício de emulação da história, o que nos desautoriza designar o próprio romancista como sua personagem. Este é, aliás, um dos princípios básicos da ficção.

Joaquim Manuel de Macedo se beneficia de uma forma muito em voga no seu tempo, as memórias, e (agora saindo da narrativa para a obra) finda por construir uma alegoria sobre o poder político. O escritor tem plena ciência disso ao propor um narrador que transforma a narrativa que deveria ser uma espécie de máscara com a qual se proteja em confissão aberta sobre sua condição gregária e falsa na vida pública. É essa confissão que funciona aos olhos do leitor da obra como uma denúncia de maneira quase tratadista sobre os meandros da política de então. O escritor brasileiro, entretanto, possivelmente também sem saber, estava oferecendo aos leitores do futuro uma viva leitura sobre as ordens políticas centradas na cordialidade, na insolência, no conluio, na falcatrua, na corrupção, no jogo de próprios interesses, no desinteresse com a coisa pública, condições sempre recorrentes dentro e fora do nosso cenário, praticadas por quaisquer modelos e-ou grupos de poder e acentuadas com a elevação do capital ao centro de todas as coisas. E, note-se, que essas relações capitais constituem toda uma linha de tensão nessas Memórias; o sobrinho herda metade da herança do tio, resolve se casar com a prima para juntar a terça parte dos recursos e ainda compra por um valor irrisório extensa parte do que foi distribuído entre a parentela. Depois, sua condição de interesseiro, fundada no limite de uma compreensão sobre o Eu como força central de todas as coisas, se completa com o faz-de-conta num ambiente político repleto do toma-lá-dá-cá que serve exclusivamente a amplitude de seus privilégios e às benesses financeiras sempre acumulativas.

O interessante de considerar ainda é o trabalho de construção do romance; integralmente fundado nos modelos clássicos da retórica, sobretudo aqueles que priorizam o contínuo jogo de associações, o narrador não conversa francamente sobre tudo, sem ao menos se beneficiar de um atenuante sobre sua conduta. À primeira vista, isso poderia parecer fora da linha verossimilhante, mas, toda sinceridade, logo se percebe é produto de uma digressão proposital que não se presta (se as memórias fossem realmente suas) a uma camada de proteção sobre sua própria face. No fim, o leitor não deixará de notar que todas as referências apresentadas por este sobrinho formam muito mais um retrato do alheio que dele próprio. Isto é, estamos diante de um embuste e não, como poderá parecer à primeira vista, num mestre no disfarce; posição esta observada desde a estratégia narrativa adotada logo naquilo que deveria funcionar como um prólogo e é continuamente postergado até chegar o limite do texto quando já sobra apenas uma incógnita sobre a verdadeira autoria do narrado. Já aqui, o leitor é carregado para o movimento da própria narração e não da narrativa. Isso significa que se fundem, num só limite, conteúdo, forma e estrutura, como se o escritor fizesse prevalecer a óbvia – mas não simples – constatação segundo a qual jamais se deve confiar plenamente naquilo que diz um político. E mesmo isso fica encoberto pelo movimento do exercício de rememoração, sempre marcado pela invenção, o acréscimo ou diminuição, o falseamento, próprios do movimento da narração.

Mas, além desses elementos do exercício criativo do escritor – originais, diga-se – o que mais surpreenderá o leitor é a atualidade das circunstâncias. Memórias do sobrinho de meu tio refere-se a um Brasil do império mas é o Brasil da República e dos dias de hoje. Essa constatação poderá conduzi-lo a duas posições: a de que nada mudou tanto assim entre os séculos XIX e XXI, quer dizer, os tais males da política estão longe de ser uma instituição desses últimos anos pós-redemocratização como cegamente afirmam os brasileiros desmemoriados e seduzidos cegamente pelas ideologias da salvação da pátria. Isso implica considerar que a maior parte dos vícios da nossa política estão desde o princípio de nossa formação como nação, e enraizados de uma maneira tal que permitem, o pior de tudo (e eis a segunda posição), a aceitar tais vícios entre o ideal e o natural, como parece ser toda vez que se passa a descobrir o falso brilho dos salvadores.

Bom, mas se nem tudo está perdido, esse retrato sobre o que não mudou ou como fomos desde sempre assim finda por nos oferecer alguma alternativa: a de pensar sobre a necessidade de não se envergonhar com nossa condição de presos a um modelo falido, porque é preciso enfrentá-lo com a coragem que nos falta e encontrar alguma alternativa capaz de, coletivamente, nos oferecer outra possibilidade de país. É possível  que já tenhamos chegado ao fundo do poço, como tantas outras vezes, mas é sempre esse o ponto-limite de tentar encontrar uma saída capaz de ao menos uma sobrevida. Se nem disso formos mais capazes, então será o fim.


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