O universo de Breaking Bad e a ambiguidade do ser


Por Rafael Kafka



Fiquei muito impressionado há alguns anos quando decidi ver Breaking Bad depois de superar um preconceito terrível com sua premissa. Até então, um professor frustrado que decide usar seus saberes para iniciar uma vida como produtor e traficante de drogas não me parecia algo apetecível para meu gosto poético. Todavia, um dia lembrei que mais jovem eu fora formado em cineclubes vendo por demais filmes de gângster e o mundo do crime organizado é um ótimo convite à reflexão sobre a condição humana, seus discursos e outros elementos simbólicos que guiam os passos por essa existência caótica.

A premissa mencionada acima se revelou um convite a várias reflexões provocadas pela série, a qual diz muito sem muito dizer, usando longos planos e cortes de câmera perfeitos que se tornam um verdadeiro caleidoscópio existencial a revelar subjetividades em formação e conflitos enquanto práticas ilícitas são cometidas. Tudo isso é criado também com um processo de narrativa hermética, em que o pequeno universo da cidade Albuquerque é explorado de modo a ignorar fatos políticos e sociais do mundo lá fora. Nesse pequeno quadrado temos um campo no qual muitos seres interagem entre si em dimensões que ferem toda e qualquer lógica maniqueísta e de repente nos vemos diante de um sentimento ambíguo de torcer contra ou a favor do protagonista.

Isso porque aos poucos Walter White vira Heisenberg, não à toa nome diretamente ligado ao princípio da incerteza na física. White fez o que fez por amor à família e para pagar o tratamento caro de câncer ao qual deve se submeter se ainda quiser alguma chance de sobrevivência ou fez pelo desejo de exercer poder? Ou pelos dois motivos que em algum momento se cruzam e já não sabemos qual deles está no controle em dado momento?

Breaking Bad é considerada por muitos uma das melhores séries de todos os tempos, maior representante do que chamamos de era de ouro do audiovisual para televisão, pois usa uma premissa básica para criar uma história que lembra por demais em seu hermético e simbólico A montanha mágica, de Thomas Mann, e pelos diálogos banais que representam muito do cotidiano dos seus personagens filmes de Quentin Tarantino e seus mestres inspiradores. O que Vince Gilligan e Paul Gould mostram na obra que produziram juntos não é uma mensagem de comiseração necessariamente falando. Não há mensagem aqui.

O meio é a mensagem, diria Marshall MacLuhan. Nesse sentido, o que Breaking Bad mostra é um terror fundamental: somos humanos e humanos podem ser monstruosos. Amamos o vilão e odiamos a esposa oprimida em alguns momentos, porque em alguns momentos somos ele ou ela. Tentamos em nossos códigos de conduta moral separar o bem do mal, gerar o mal a partir do que consideramos como o bem, coincidentemente uma imagem bem feita de nós mesmos, como diria Sartre em “Saint-Genet”. O terror fundamental é justamente reconhecer que não é porque somos desse jeito ou daquele que somos bons ou maus e fracassaremos sempre que tentarmos sermos bons ou maus como uma pedra é uma pedra.

Breaking Bad nos diz que todos somos Heisenberg em maior ou menor grau, somos figuras com algo de inumano em nós que pode se tornar maior do que imaginamos, usando discursos nobres e bem feitos. Não necessariamente somos criminosos em potencial ou em ação, mas sim seres com condutas problemáticas que talvez a nossa noção de eu e de moral não nos deixe enxergar com frequência e assim vamos agindo e vivendo, carregando existências cheias de dor e dramas, que poderiam ser mais livres se nosso olhar fosse diferente.

Mas aqui é a impressão de um leitor e não a mensagem da obra de arte, a qual apenas se preocupou em contar uma história, em mostrar como o ser humano é não sendo o que é.

Fiquei ainda mais impressionado quando ao final de Breaking Bad descobri que uma pré sequência seria feita. Better Call Saul é a bem sucedida de tentativa de explicar a fundo a história de Saul Goodman, o personagem talvez mais caricato da série original, que ainda assim em alguns momentos assumia uma força de presença maior do que Walter White e Jesse Pinkerman, protagonistas do programa. Em um universo tão profundo em subjetividades e existencialismo, não seria difícil pensar na exploração de outros enredos falando de personagens icônicos que ali se encontram.

Nesse sentido, Mike Erhmantraut é outro ser de profundo simbolismo que ganha densidade ainda maior na nova série, o que nos faz entender plenamente o papel paternal que ele assume em Breaking Bad em relação a Jesse. No começo, Saul, ainda com a identidade de James MacGill, e Mike dividem os holofotes e foi apenas por falta de um título melhor que o segundo não teve no nome do produto uma participação destacada.

Quando assisti Better Call Saul estranhei demais o ritmo ainda mais lento do que o de Breaking Bad no começo. Os produtores mostraram claro espírito de resistência e seguiram produzindo uma série sem a pressão de ceder ao desejo extasiante de uma plateia cada vez mais viciada em cenas rápidas e sequências sem cortes lentos com soluções fáceis para os enredos. James é desenvolvido aos poucos e o excelente Bob Odenkirk revela uma das verves dramáticas mais impressionantes que já testemunhei, fazendo em muitos episódios o riso e a melancolia virem em sequência, pois ele é capaz como poucos de revelar o quão ambíguos e problemáticos nós, seres humanos, somos.

As duas últimas temporadas são de uma qualidade e de um ritmo maravilhosos e em alguns momentos surge a dúvida se Better Call Saul é melhor que Breaking Bad. Para muitos o debate não faz sentido, mas essa opinião e a dúvida que sinto e expressei agora revelam algo bem curioso: a pré sequência ganhou vida própria. Quem esperava os tiroteios e momentos eletrizantes de Breaking Bad se depara com um clima mais dramático e existencial, uma série mais focada em um debate sobre a ética do direito e ao mesmo tempo em que entendemos como a influência de um cartel de drogas cresceu em meio a guerras dentro de Albuquerque uma nova série de tramas são reveladas e parece que estamos diante de um universo dramático totalmente novo com as mesmas técnicas de plano, contra plano e música do seriado original.

Nesse meio tempo, há um filme que serve como final de uma das personagens centrais de Breaking Bad, que se peca pela falta de emoção é forte em resistir ao sabor fácil das narrativas extasiantes e fáceis. El Camino nos ajuda a entender melhor certas nuances interpessoais do universo original e reforça a ideia de escultura do tempo, como diria Tarkovsky, que a série parece tanto reforçar. O tempo aqui é matéria primordial e o modo como ele é tratado revela justamente o quanto os seres são ambíguos e indeterminados em suas condutas, por mais que em muitos momentos tenhamos a sensação de que eles estão presos em uma cadeia de eventos da qual não podem fugir.

Roland Barthes diz que o escritor tem a vantagem de trabalhar diretamente com a ambiguidade, não estando preso ao voto da verdade. O crítico tenta ter a liberdade do escritor, mas não consegue, pois tudo o que fala é a verdade, a sua verdade. O dito de Barthes pode ser aplicado ao narrador audiovisual contemporâneo. Nesse sentido, o universo Breaking Bad é uma das maiores obras de arte de nosso tempo, pois reforça o tempo todo o quanto somos ambíguos, o quanto a nossa liberdade e a necessidade do mundo estão o tempo lutando para dizer quem delas nos define, quando talvez nenhuma delas em si tenha o direito a dizer a palavra final.

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