Pier Paolo Pasolini escritor: a revolução permanente

Por Luis Antonio de Villena

Pier Paolo Pasolini. Foto: Imago Images/ Leemage




Dizemos bem. A revolução começa e termina, e muitas vezes mal. Trótski estava equivocado: não a revolução, mas a rebelião. Esse foi o signo de Pier Paolo Pasolini, toda a sua vida, quase desde seu nascimento em Bolonha, até agora um século depois. Seu pai (militar) e sua mãe (professora primária) não seguiram caminhos muito semelhantes, e Pier Paolo escolheu o caminho de sua mãe.
 
Em anos incertos, e já com o fascismo no poder, viveram em muitos lugares, vários no Veneto. Pasolini estudou em Bolonha, mas acabou na cidade da parte da família materna, Casarsa, onde se fala o friulano. Em 1941 publicou um pequeno livro de poemas, Versi à Casarsa, que chamou a atenção de Gianfranco Contini, que se tornaria um crítico muito notável. Pasolini deu aulas — não permitidas — no lugarejo. E conta-se que sua descoberta sexual (também um vetor de seu trabalho) começaria então com um de seus alunos, por volta de 1944.
 
Apaixonado pelo sexo, pelo civismo, pela literatura e pelo povo como uma classe mais honesta e permissiva que a burguesia (chorou o fim dos mais simples), Pasolini era comunista e não, aproximou-se do cristianismo, rejeitando-o, buscou a verdade e a beleza como os gregos antigos queriam. Nada efeminado — para ele a homossexualidade era virilidade — Pasolini jogava futebol desde menino. Alguns versos de um poema posterior deixam muito claro o espírito do escritor, que nunca teve medo de se apaixonar nem de combater: “Sexo, morte, paixão política,/ são os objetos simples a que entrego/ meu coração elegíaco… Minha vida/ não tem outra coisa. Poderei amanhã, / nu como um monge, partir/ do mundo, render-me ao infame/ à vitória... não terei perdido,/ não, certamente, minha alma”.
 
A homossexualidade lhe custou rejeições, vários processos e a morte violenta — embora o crime tenha sido mais complexo — mas lhe deu alegria e juventude. A paixão política o desiludiu (o comunismo) ou
ele ficou decepcionado com os corruptos democratas-cristãos. A morte é um risco de vida e, como queriam os românticos, também de beleza. Escreveu em italiano, mas — a partir da língua friulana de sua mãe — se interessou pelo que na Itália chamam de “dialetos”, línguas diferentes e nem sempre do mesmo radical. Queria que a cultura italiana abandonasse a mentalidade primitiva e viajou em busca da alegria do primitivismo, verificando com horror que o capitalismo feroz acabava com o povo feliz e livre sexualmente (aquele que seu amigo poeta Penna cantava) e que só restava o horror, o vazio e a miséria. O que diria hoje? Por isso renunciou à bela Trilogia da vida e acabou, amargurado e amargo, no horror de Salò.
 
Pasolini foi assassinado na noite de 2 de novembro de 1975. Levou um traficante, Pino Pelosi — 17 anos, sabia muito bem o que estava fazendo no sexo — para a praia de Ostia, e aí o multiartista foi brutalmente assassinado. Puro terror. Pelosi chegou a dizer que ele o queria sodomizar, mas a reação foi excessiva. O julgamento posterior, embora tenha decidido que Pelosi era culpado — não havia outro réu — deixou muito claro que esse crime não pode ser cometido por uma única pessoa. Não se sabe quem mais foi, mas muitos se voltaram para os tentáculos da Democracia Cristã, que os artigos mais lúcidos de Pasolini desmascaravam. O livro de Marco Tullio Giordana, Pasolini: um crime italiano (1994) ainda continua sendo o melhor registro sobre tudo isso. Sexo, paixão, revolta, mas um imenso desejo de pureza. Pureza e castidade não são a mesma coisa.
 
A poesia se move
 
Pasolini começou a escrever poesia (em italiano e friulano) durante os anos da guerra. Diria que a leitura de Rimbaud lhe deu uma lição de antifascismo natural. Mas seria enquanto morava em Roma — onde chegou com a mãe e sem trabalho, em 1947 — que iniciou sua maior busca poética, que nunca foi unívoca, ou seja, nunca apenas em um campo. Se Pasolini falava de bilinguismo, falava também, e é mais profundo, de biestilismo: não deveria haver um estilo único para a poesia, nem a neovanguarda, nem o hermetismo já um tanto decadente, nem a poesia comprometida ou cívica, que diríamos poesia social. Uma poesia simplesmente renovadora deveria e poderia unir todas essas frentes ou caminhos. Essa é sua intenção, um de seus propósitos, em seu primeiro importante livro de poemas, Le ceneri di Gramsci (As Cinzas de Gramsci), publicado em 1957, que ganhou o renomado prêmio Viareggio no mesmo ano. Livro em várias partes e poemas, geralmente longos, neste livro estamos diante de uma poderosa mistura de narratividade e lirismo.
 
Um ano depois, na mesma linha, talvez menos contundente, surge aquele doce e estranho título, L’usignolo della Chiesa Cattolica (O rouxinol da Igreja Católica). Pasolini nunca deixará a poesia — diria que é sua verdadeira medula — mas desde sua maior dedicação ao cinema, especialmente a partir do final dos anos 1960 (será o mesmo com a prosa), ela se tornou menos comum. É sempre uma poesia direta, poderosa, nada complacente, mas cheia de um poder cativante, de que os poetas meramente líricos gostavam menos. Talvez (com as Cinzas) os dois livros mais completos de versos de Pasolini sejam Poesia in forma di rosa de 1964 e Trasumanar e organizzzar (Transumanizar e organizar) de 1971. Basta, às vezes, olhar um índice para ver que a poesia de Pasolini trata de tudo: “O enigma de Pio XII”, “Pequenos poemas políticos e pessoais”, “A restauração da esquerda”, “A rua das putas”. É um exemplo mínimo. Em 1993 e em dois volumes, sua poesia completa apareceu com um título provocativo (claro!), Bestemmia (Blasfêmia).
 
Êxtase da periferia
 
O primeiro grande sucesso de Pasolini (incluindo polêmica e processo judicial) veio com prosa. Exatamente com seu primeiro romance — de 1955 — Ragazzi di vita. Sua melhor tradução deveria ser — assim foi traduzido no Brasil — Meninos da vida, mas o título italiano tornou-se uma expressão popular para falar dos meninos das periferias, pobres e às vezes atraentes, de vida arriscada, que buscam a vida como podem e ainda se banham no Tibre, ou à noite caminham pelas margens do rio fumando. Todo esse mundo, mais extremo, reaparece em outro dos romances emblemáticos de nosso autor, Una vita violenta, de 1959.
 
Outro grande romance de Pier Paolo é Teorema, publicado em 1968. O romance é, simplesmente, a visita de um anjo perturbador a uma família de classe média. Como nesse mesmo ano, Pasolini levou seu romance ao cinema, é provável que tenha ficado um pouco ofuscado. Não é mais que o verso de Rainer Maria Rilke (por mais estranho que possa parecer) “Todo anjo é terrível”. Pasolini não voltou a publicar romances, embora quando morreu tenha trabalhado em um, Petrolio, que (na ausência de um misterioso capítulo perdido) saiu postumamente em 1992. Tais como suas novelas juvenis homoeróticas com o título Amado mio uma década antes. Prosa de arte e social, denúncia e fascinação pelos meninos da periferia, são o centro de um orbe narrativo que se tornou inconfundível.
 
Em meio a essa enorme atividade (entre os quais o cinema do próprio autor) devemos contar o teatro, com pelo menos duas obras muito notáveis, Orgia e Calderón, ambas escritas em 1966; esta talvez seja parte menos conhecida da obra de Pasolini — assim como o seu trabalho como ensaísta e organizador de antologias. As antologias, com prólogos notáveis, tratam, por exemplo da poesia italiana em dialeto (Poesia dialettale del Novecento, 1952), enquanto o ensaio se mistura ao jornalismo, em que Pasolini foi extremamente brilhante, desde o manifesto ou a crítica literária, até o político de combate com muito mais do que pontas afiadas: Passione e ideologia (1960), Empirismo eretico (1972) e esse último e pungente livro, Escritos corsários, já de 1975. Uma morte prematura e terrível e uma vida vivida entre o desejo carnal, o gozo literário ou de imagens e um mundo ideológico e experimental que nunca, jamais, ultrapassou o homem. Foi grande, e muito.
 
* Este texto é a tradução livre de “El Pasolini escritor: la rebelión permanente”, publicado aqui, em El Cultural.

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