“Os versos satânicos”, o livro que condenou Salman Rushdie à morte

Por Fernando Díaz Quijano


Salman Rushdie. Foto: David Levenson

 
Salman Rushdie se esquiva da morte há mais de 30 anos. Em 1988 publicou seu quarto romance, Os versos satânicos, e com ele despertou a ira furiosa dos muçulmanos mais fundamentalistas por seu conteúdo blasfemo, já que nele contava uma versão alternativa de uma passagem da vida de Maomé. É por isso que tudo leva a pensar que isso tenha mobilizado a pessoa que esfaqueou o escritor no dia 12 de agosto de 2022, em Nova York quando se preparava para uma conferência.
 
Em 14 de fevereiro de 1989, depois de protestos de mulçumanos em torno do livro, o aiatolá Khomeini, líder da revolução iraniana, emitiu uma fatwa (um decreto de fundamento religioso) condenando Salman Rushdie à morte. Nela, conclamava todos os muçulmanos do mundo à execução da ordem. Também oferecia uma recompensa de quase três milhões de dólares. Desde então, o escritor indiano-britânico precisou viver em reclusão, protegido por guarda-costas e carros blindados.
 
Em uma única década, o escritor precisou mudar de residência 56 vezes e foi alvo de duas dezenas de tentativas de ataques, dos quais saiu ileso. Mais de sessenta pessoas foram mortas em nome do tal decreto, incluindo dois de seus tradutores, conforme explicado no documentário de William Karel, Salman Rushdie, Death on a Trail. Um deles foi Hitoshi Igarashi, o tradutor do livro para o japonês, assassinado em 1991.
 
Os versos satânicos é um romance com uma grande inventividade tanto nos personagens quanto nos acontecimentos, e utiliza todos os tipos de ingredientes como a fantasia, os devaneios e o humor. Conta a história de Gibreel Farishta e Saladin Chamcha, dois atores de origem indiana.
 
No início do romance, ambos caem num vazio desde quando o avião em que viajavam explode devido a um ataque terrorista; os dois sobrevivem milagrosamente. Mas, num deles cresce uma auréola que o faz parecer o arcanjo Gabriel, e no outro cresce duas protuberâncias na testa que o fazem parecer o diabo.
 
Intercaladas na trama principal estão as visões sonhadas por Gibreel nas quais ele efetivamente se torna o mensageiro de Deus. Uma dessas histórias paralelas é a de Ayeesha, uma jovem indiana que afirma receber mensagens de Deus através do arcanjo, e começa uma peregrinação a Meca, cidade que no livro é chamada Jahilia.
 
A parte considerada mais blasfema pelo Islã é aquela em que se narra a vida de Maomé na cidade, seu exílio e seu posterior retorno triunfante. O título do livro refere-se a uma lenda segundo a qual Maomé pronunciou alguns versos como parte do Alcorão, mas depois os retirou alegando que o diabo os havia ditado para ele, fazendo-o acreditar que eles vinham de Alá. Estes versos supostamente teriam permitido o culto a três deusas pré-islâmicas de Meca, o que seria uma violação do monoteísmo. Rushdie incluiu essa lenda na narrativa do romance, e estava aramada a fonte principal da controvérsia para o mundo islâmico.
 
Numa parte desta subtrama, é sugerido que o nascimento do Alcorão e a ascensão ao poder de Maomé tiveram mais a ver com o tráfico de influências do que com o divino. Abu Simbel é o líder da cidade e marido da sacerdotisa de uma dessas deusas pré-islâmicas, Al-Lat. Simbel oferece um pacto a Maomé (chamado Mahound no livro) pelo qual o profeta aceitaria o culto a três das deusas, reinterpretadas como arcanjos e, em troca, ele será aceito por Alá.
 
Apesar do tempo passado e do fato de que a ameaça parecia ter esfriado, a fatwa ainda continua em vigor. Quando a rainha da Inglaterra o nomeou cavaleiro em 2007, o sentimento de ódio contra Rushdie se intensificou novamente nos setores mais fundamentalistas do Islã, e uma fundação religiosa iraniana elevou a recompensa pelo assassinato de Rushdie para 3,3 milhões de dólares em 2012.
 
“Para aqueles de nós nascidos na década de 1960, uma coisa que nunca passaria pela nossa cabeça é a religião voltar a ganhar poder novamente”, disse Rushdie numa entrevista de 2015. “A ideia de que a religião viria para orquestrar o discurso público parecia impossível. Se alguém tivesse me dito isso em 1968, eu provavelmente teria rido.”
 
Apesar das ameaças de morte, Rushdie continuou a escrever e publicar. Seu último romance, Quichote, se inspira na obra-prima de Cervantes para compor uma parábola sobre o mundo do século XXI. “A imigração é o grande tema literário do nosso tempo”, disse ele em outra entrevista ao El Cultural sobre o lançamento do livro.
 
Claro que este é um grande tema literário em toda a sua obra, sendo ele um imigrante criado no Reino Unido e que mais tarde se exilou nos Estados Unidos. Também é o tema central em Os versos satânicos, mas o verdadeiro significado do romance ficou para sempre ofuscado pelo enorme peso de sua sentença de morte.
 
* Este texto é a tradução livre para “Los versos satânicos, el libro que condenó a muerte a Salman Rushdie, publicado aqui, em El Cultural.

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