Dois mestres franceses: Patrick Modiano e Emmanuel Bove

Por Matías Serra Bradford

Patrick Modiano. Foto: Baptiste Giroudon


 
É sabido: precisa-se desaparecer para que outro possa nos transformar em figura de romance. Patrick Modiano dedicou-se a essas frágeis tarefas por mais de meio século. Em sua recorrente tentativa de restaurar dias distantes, repetindo-se despudoramente e sem necessidade de ser diferente de si mesmo, o autor de Dora Bruder tem sustentado que, se os segredos perduram durante toda a vida (estão inscritos em tinta invisível), serão como linhas de fuga, e isso significa o oposto da morte.
 
O romance Tinta simpática (tradução livre) é a prova mais recente de suas investigações retrospectivas, seu ritornello é justamente “há espaços em branco nesta vida”, e não pretende resolver todos os mistérios: “Temo que uma vez que você tenha todas as respostas, sua vida se feche sobre si mesmo como uma armadilha, com o ruído de fundo das celas de uma prisão.”
 
Não que confie em quantas evidências surjam. Proliferam janelas falsas, pseudônimos, fantasmas de sentido, um impasse e outro. Modiano considera que, na maioria das vezes, os escassos testemunhos são imprecisos: “A linha de uma vida desaparece por trás de toda essa interferência”.
 
Seus casos são reais ou meio reais, rastros nos interstícios de outros, fugazmente vislumbrados. Reencontros, desejados ou indesejados, anos depois. A testemunha, insinua o romance, é mais capaz de desvendar os fios confusos de uma outra vida, ainda que Modiano tenha demonstrado, no manifestamente Pedigree pessoal, telegráfico e velocíssimo, que uma autobiografia deslocada pode render frutos abundantes.
 
Agora tudo volta a acontecer em Paris, com uma coda em Roma, “uma cidade que tem o poder de apagar o tempo, e também o seu passado, como a Legião Estrangeira”. Os dois polos: o que desapareceu contra o que não acaba de acontecer. Vagando em busca do não saldado. Modiano acredita no passado, mas os acontecimentos se unem em um “eterno presente”, um etéreo retorno, através de uma prosa que tem a simplicidade luminosa de uma perplexidade.
 
O narrador de Tinta simpática retorna à temporada em que trabalhou numa agência de detetives. Enviavam-no para seguir alguns e sondar outros. Até que foi divulgado o dossiê de Noëlle Lefebvre, de quem não havia vestígios, nem mesmo os motivos de seu desaparecimento.
 
A espada de Dâmocles do autor reaparece: o que um nome evoca. O narrador relê seus antigos cadernos e agendas, não entende a própria letra. (Modiano também cuida para que seus próprios rastros sejam apagados). As interseções entre ontem e viagens são delicadas, análogas às que ocorrem na venda de uma casa de família.
 
O introvertido Modiano, no entanto, sempre foi um alfaiate que trabalha à vista de todos: remenda o livro enquanto remonta o quebra-cabeça e alude a um passado em que a literatura era para ele um horizonte incerto. Aliás, há uma cena que o persegue, e que já reestruturou em três ou quatro romances: a zombaria de um amigo de sua mãe sobre suas aspirações literárias quando jovem.
 
Vale notar que ele parece ter se apegado a essa insegurança como garantia da autenticidade de suas obras. A timidez de seus protagonistas é o meio e a mensagem, e Modiano balbuciará até o último dia como quem presenciou uma morte duvidosa. O desamparo central de Noëlle Lefebvre é o do autor diante de sua página, vazia ou superlotada.
 
É como se Modiano lembrasse e reconstruísse a época em que seu admirado Emmanuel Bove teria continuado a escrever se não tivesse partido tão jovem. Pode-se arriscar que Modiano o substituiu: Bove morreu em 13 de julho de 1945; Modiano nasceu no dia 30, dezessete dias depois. Há neles um rapport semelhante com o que se chama o mundo e os outros. Os dois se irmanam na ausência dos pais e passaram temporadas escolares no sul da Inglaterra. Coincidem num clima cinzento e encantado, e no qual o austríaco Peter Handke traduziu ambos. (A propósito: foi nos arredores de Viena que Bove começou a escrever seus primeiros livros.) Se Modiano se concentrou, entre outras coisas, no medo que uma sombra pode inspirar, Bove se concentrou nas máscaras do descrédito.
 
Em Meus amigos, de Bove, desfilam existências precárias, ambientes sórdidos, encontros casuais, figuras desarmadas. Meio desamparadas, como as de Modiano. A descrição detalhada resgata a pungência da circunstância: “Enquanto chove, o quarto esfria. É como se ninguém aí dormisse.”
 
Quanto mais lamentável a cena, mais viva a prosa, que dá asas a uma vida imperceptível. Em sua serenidade, entra-se rapidamente na matéria. A clarividência de Bove é tangível: “Meu próprio nome, em meus lábios, sempre me causa uma sensação estranha, especialmente atrás de uma porta”. A psicologia, se ousa mostrar o nariz, é gestual, muito concreta, embora opere por triangulação. Transluz, não traduz.
 
Os parágrafos curtos aproximam-se dos cortes cinematográficos; um cinema particular, a portas fechadas, de primeiríssimos primeiros planos. Meus amigos orquestram nuances, dívidas e enganos, alternam entre presente e passado, e insinuam que o pequeno, o mínimo, faz as coisas acontecerem enquanto estão sendo escritas, e mais rápido: “Tenho notado que fico muito melhor em vitrais do que em espelhos de verdade.”
 
Escritor munido de uma quarta dimensão, Bove nos encoraja a acreditar que o centro da literatura — o ponto — é o detalhe: “A calçada se movia sob meus pés, como quando alguém numa balança se pesa”. A ressonância e o valor da nuance, pela découpage ocular, em meio à atração de itinerários ininteligíveis, de figurantes constrangidos, que se retraem, se arrependem, se calam, em estado de transição ou de suspense.
 
Reservado, resignado, de fala mansa, Bove pertence a uma certa linha mais oculta da literatura francesa do século XX —personagens de corpo menor como Henri Calet, Marcel Aymé, Georges Hyvernaud, Max Jacob, André Dhôtel —, uma tradição paralela que coloca quase qualquer leitor bem protegido.
 
“Raramente canto as músicas da minha infância para não desperdiçar as lembranças que elas evocam em mim”, admite o narrador de Meus Amigos. Bove tem passagens pungentes, semelhantes a quando ouvimos aleatoriamente um estranho pronunciar uma palavra como um fazia um parente morto, com um pequeno erro.


* Este texto é a tradução livre de Dos maestros franceses: Patrick Modiano y Emmanuel Bove, publicado aqui em Revista Ñ.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #604

A vegetariana, de Han Kang

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Seis poemas de Rabindranath Tagore