Hilary Mantel, dama

Por Lisa Allardice

Hilary Mantel. Foto: David Vintiner


 
A Dama Hilary Mantel, que morreu aos 70 anos após sofrer um derrame, foi a primeira mulher a ganhar o prêmio Booker duas vezes, feito alcançado para os dois primeiros volumes da trilogia épica sobre a vida de Thomas Cromwell, Wolf Hall (2010) e Tragam os corpos (2012). Os romances, que ao todo possuem cerca de 2.000 páginas, venderam 5 milhões de cópias em todo o mundo, foram transformados numa aclamada série da BBC (2015) estrelada por Mark Rylance, e teve uma versão adaptada pela própria Mantel para o palco RSC (2014), um processo que ela amava. A trilogia culminou com O espelho e a luz (2020)¹ e a morte de Cromwell; acabou sendo seu último romance. Contados no tempo presente, esses romances constituem uma façanha da narrativa imersiva e um marco monumental na ficção contemporânea.
 
Antes da série Cromwell, Mantel havia escrito nove romances, incluindo A Place of Greater Safety (1992), sobre a Revolução Francesa; Além da escuridão (2005), a história caracteristicamente sombria e peculiar de um médium em Aldershot; um livro de memórias, Giving up the Ghost (2003); e três coleções de contos. Embora ela tenha recebido boas críticas, suas vendas foram modestas e nenhum de seus romances havia sequer sido listado para o Booker. “Eu me sentia muito como um produto de nicho, um interesse minoritário”, disse em entrevista ao Guardian em 2020. Mas foi apenas com Cromwell e sua decisão “de avançar para o epicentro da história inglesa e fixar uma bandeira”, como ela colocou, que encontrou um grande público leitor. Foi o romance que ela esperou toda a sua carreira para escrever.
 
Nascida Hilary Thompson em Glossop, um povoado em Derbyshire, ela era filha de pais católicos da classe trabalhadora com ascendência irlandesa que se mudaram para Manchester; sua mãe, Margaret (nascida Foster), como a avó, deixou a escola para trabalhar em uma fábrica quando ela tinha apenas 14 anos. O pai de Hilary era Henry Thompson, mas ela herdou o sobrenome do segundo marido de sua mãe, Jack Mantel.
 
Sua uma infância não foi feliz. “A história da minha infância é uma frase complicada que estou sempre tentando terminar, terminar e deixar para trás”, escreveu em Giving up the Ghost. “Se fosse uma cor, continuou, seria “um carmesim desbotado e encharcado de chuva, como sangue velho e seco”.
 
Quando tinha seis anos, um homem chamado Jack veio tomar chá, escreveu. “Um dia, Jack vem tomar chá e não voltou mais para sua casa.” Os vizinhos fofocavam e as crianças da escola zombavam dela sobre essas circunstâncias da vida.
 
Todos viveram juntos até que sua mãe e os dois irmãos mais novos se mudaram com Jack para uma casa geminada em Romiley . Depois disso, nunca mais viu seu pai. “Minha infância terminou assim, no outono de 1963, o passado e o futuro igualmente obscurecidos pela fumaça dos barcos em chamas de minha mãe”, disse. Até os 12 anos, ela era uma católica devota e frequentava a escola do Convento de Harrytown, Romiley.
 
Conheceu o marido, Gerald McEwen, quando os dois tinham 16 anos, se casando em 1973, ano em que ela se formou em Direito na Universidade de Sheffield. Em vez de se tornar advogada, como havia planejado, conseguiu um emprego numa loja de departamentos e começou a ler sobre a Revolução Francesa. Segundo ela, nunca pensou em se tornar uma romancista até que “realmente pegou uma caneta para se tornar uma” e mesmo assim foi apenas porque sentiu que havia perdido a chance de se tornar uma historiadora. Começou seu primeiro romance, A Place of Greater Safety, em 1974, quando tinha 22 anos. Levaria duas décadas antes de ser publicado. Em 1977 ela e Gerald foram enviados a Botsuana por causa do trabalho dele como geólogo. Mantel começou a trabalhar como professora, mas em sua cabeça  estava sempre na França dos anos 1790, escrevendo sempre que podia.
 
O impulso de escrever surgiu de sua sensação de que algo estava seriamente errado com ela. Enquanto estava na universidade, começou a sofrer dores terríveis, mas disseram que eram psicológicas e foram prescritos antidepressivos e antipsicóticos. Seguiram-se anos de dores e diagnósticos errados. Foi apenas numa biblioteca em Botsuana que ela se autodiagnosticou com endometriose aguda. Quando tinha 27 anos e estava de volta à Inglaterra no Natal, desmaiou e passou por uma grande cirurgia no hospital de St. George, que era então em Hyde Park Corner, centro de Londres, “tendo minha fertilidade confiscada e minhas entranhas reorganizadas”, como descreveu.
 
Mas foi a recuperação da operação que cimentou sua determinação para escrever. Incapaz de encontrar uma editora para A Place of Greater Safety — não era um bom momento para tentar publicar ficção histórica — ela astutamente mudou de rumo, formando o que chamou de “um plano astucioso”, e começou um romance de feições contemporâneas, Every Day Is Mother’s Day, que foi imediatamente aceito em 1985, seguido um ano depois por uma sequência, Vacant Possession.
 
Enquanto sua carreira literária estava finalmente decolando, seu casamento estava naufragando e, um ano depois de sua cirurgia, ela e Gerald se divorciaram, com Mantel retornando à Grã-Bretanha. Gerald também voltou para casa e, apenas dois anos depois, eles se casaram novamente para que ele pudesse trabalhar na Arábia Saudita. Mudaram-se para Gidá em 1982, e isso serviu de inspiração para seu quarto romance, Oito meses na Rua Gaza (1988). A Place of Greater Safety foi publicado quatro anos mais tarde.
 
Ao retornar à Grã-Bretanha, por muitos anos foi revisora ​​de livros para o Guardian, bem como crítica de cinema do Spectator. Embora participando de vários comitês — a Royal Society of Literature, a Society of Authors e o Advisory Committee for Public Lending Right — e trabalhando como professora, ela nunca se viu como parte de nenhum grupo literário, e sempre esteve um pouco distante de seus contemporâneos famosos, como Martin Amis, Ian McEwan e Salman Rushdie. A publicação de O gigante O’Brien em 1998 e Além da escuridão em 2005 fez com que ela começasse a deixar de ser “uma romancista literária” — pelo menos em termos de vendas.
 
E então veio Cromwell. Não foi uma pequena ironia que, depois de anos sem poder publicar seu primeiro romance histórico, ela encontrou fama com um livro ambientado durante o reinado de Henrique VIII. “Era como se depois de nadar e nadar você de repente descobrisse que seus pés estão no chão firme”, disse. “Eu sabia desde o primeiro parágrafo que essa seria a melhor coisa que eu já tinha feito.”
 
A dor debilitante e os períodos de problemas de saúde de seus primeiros anos nunca a deixaram. E em 2010, logo após ganhar o prêmio Booker pela primeira vez, ela voltou ao hospital para mais cirurgias, um período que ela registrou em um diário para a London Review of Books. “A doença arrasta você de volta a um eu autêntico, mas não um que você precisa conhecer. Só é muito reivindicado para autenticidade. Dolorosamente, aprendemos a viver no mundo e a ser falsos”, escreveu.
 
Após o sucesso de Wolf Hall, ela e Gerald se mudaram para a cidade litorânea de Devon, Budleigh Salterton, que ela visitou quando tinha 16 anos e onde havia prometido a si mesma que um dia viveria. Gerald tornou-se seu empresário e sempre foi seu primeiro leitor. Sem temer longas horas, ela gostava de escrever logo pela manhã e, quando estava profundamente imersa num romance, muitas vezes escrevia em grande quantidade durante a noite. Deixou muitos cadernos cheios de ideias e projetos que queria começar.
 
Em 2013, causou um pequeno furor com um discurso no Museu Britânico ao descrever Catherine Middleton como um “manequim de vitrine”, sem personalidade, movida pelo seu fascínio sobre as percepções públicas do corpo feminino, e escreveu um ensaio poderoso para The Guardian para marcar o 20.º aniversário da morte da princesa Diana. Ela foi agraciada com o título de dama em 2014.
 
Como seu agente por quase 40 anos, Bill Hamilton, disse: “Você sempre tem que lembrar o quanto sua formação e inteligência feroz a tornaram uma diferente, e como sua doença crônica a tornou uma estranha até mesmo para seu próprio corpo. Em sua escrita ela teve que inventar tudo do zero. Ela escreveu com eloquência sobre como era difícil saber que cada nova frase devia conter e que surpresas estavam ao virar da esquina, como as presenças que povoam seus livros: fantasmas e os fantasmas do que o futuro pode trazer.”
 
Mantel fez muito para encorajar outros escritores e era generosa com seu tempo para qualquer pessoa que conhecesse profissionalmente. Da mesma forma, Hamilton disse: “Quando o sucesso chegou, ela gostou alegremente, pois sabia que era conquistado muito arduamente”.

Notas

1 A trilogia está publicada no Brasil pela Editora Todavia. 
 
* Este texto é a tradução livre para o obituário de Hilary Mantel publicado em The Guardian.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #580

Boletim Letras 360º #574

Palmeiras selvagens, de William Faulkner

Boletim Letras 360º #579

A bíblia, Péter Nádas