Três maneiras de ler o Quixote

Por Daniel Gascón

Dom Quixote visita uma gráfica em Barcelona. Desenho de Luis Paret y Alcázar. 


 
É possível que uma das condenações dos clássicos seja que nunca os deixamos descansar, até porque também não nos deixam descansar: um clássico é, como dizia Italo Calvino, um livro que nunca se termina de ler, e um livro que sempre nos diz coisas sobre o presente. A segunda parte de Dom Quixote, a que faz da obra o primeiro e inesgotável romance moderno, cumpre essa condição mais claramente do que outros livros. A lista poderia ser muito mais extensa; mencionarei apenas três exemplos.
 
No capítulo LIII, após sua experiência como governador da Ilha Barataria, Sancho Pança conhece Ricote, um mouro natural de sua aldeia. Um édito de setembro de 1609 havia decretado a expulsão dos mouros, completando a sinistra tarefa que os Reis Católicos haviam iniciado ao expulsar os judeus em 1492. Ricote, disfarçado, vai com alguns peregrinos alemães e quer recuperar o dinheiro que havia escondido na fuga (aquando se publicam os regimentos de Castela, em 1610, os mouros ficaram proibidos de sacar divisas). A mulher e a filha partiram para a Berbéria e ele foi para a Alemanha, onde “cada um vive como quer, porque na maior parte dela se vive com liberdade de consciência”. Ricote defende a decisão das autoridades:
 
“me parece que foi a inspiração divina a que levou Sua Majestade a tomar briosa resolução, não porque todos fôssemos culpados, que alguns eram cristãos firmes e verdadeiros, mas eram tão poucos que não podiam que não podiam ser comparadas aos que não o eram, e não era certo criar a serpente no seio, tendo os inimigos dentro de casa.”
 
E mais adiante:
 
“Finalmente, com justa razão fomos castigados com a pena do desterro, branda e suave na opinião de alguns, mas na nossa a mais terrível que podiam nos dar. Onde quer que estejamos, choramos pela Espanha. Afinal, nascemos aqui, é nossa pátria natural; em lugar nenhum achamos a acolhida que desejamos em nossa desventura, e na Berbéria e em todas as partes da África onde esperávamos ser recebidos, acolhidos e agradados, ali é onde mais nos ofendem e maltratam. Não reconhecemos o bem até tê-lo perdido; e o desejo que quase todos temos de voltar para a Espanha é tão grande que a maioria daqueles que sabem a língua, como eu (e são muitos), volta a ela e deixa lá suas mulheres e seus filhos desamparados: tamanho é o amor que têm por ela. Agora conheço e sinto o que se costuma dizer: é doce o amor da pátria.”
 
Há uma exposição teórica que parece justificar a expulsão. Mas Cervantes também introduz uma perspectiva individual, e adota o ponto de vista de Ricote para mostrar a dor e o desamparo de algumas pessoas que perdem seu lugar e seus bens por ação do Estado. A realidade entra no romance. E, paradoxalmente, essa situação específica vincula o livro ao passado recente e ao presente.
 
Um dos elementos que definem a modernidade de Dom Quixote, e sua capacidade de sugerir possibilidades e universos narrativos a outros criadores, é o aspecto metaficcional. Embora os jogos metanarrativos sejam múltiplos e variados e percorram o romance do começo ao fim, eles são especialmente importantes na segunda parte. Dom Quixote é a história de um leitor e um dos seus temas principais é a própria literatura, mas também o próprio livro e, nesta segunda parte, os seus leitores. Dom Quixote e Sancho encontram personagens, como os duques, que já os conheciam do livro anterior. Mas, além disso, a continuação espúria de Dom Quixote, a versão de Avellaneda, que incluía ataques pessoais a Cervantes, torna-se um elemento da trama do romance. Essa relação estranha, misteriosa, irônica e lúdica é um dos aspectos mais admiráveis ​​e sugestivos do livro. Esta segunda parte é, de certo modo, uma reivindicação da soberania do autor sobre o mundo que imaginou. Ou seja: a afirmação dos direitos autorais está no germe do primeiro romance moderno.
 
O uso da continuação dentro do enredo leva ao terceiro exemplo. Seguindo uma pista do final da Primeira Parte, Avellaneda situava o autor em Zaragoza. No capítulo LIX da continuação de Cervantes, dom Quixote fica sabendo da existência desse outro livro e das falsas aventuras a ele atribuídas:
 
“Pelo isso mesmo não porei os pés em Zaragoza — respondeu D. Quixote — e assim mostrarei ao mundo a mentira desse historiador moderno, e as pessoas poderão ver que não sou o dom Quixote de que ele fala.”
 
Dom Quixote vai para Barcelona evitando a capital aragonesa. No caminho ele conhece um bandido honorável, Roque Guinart (embora a maioria de seus homens, infelizmente, sejam “gascões, gente rústica e desordeira”). Barcelona é o cenário de alguns dos episódios mais memoráveis ​​e decisivos para Dom Quixote, o encontro do protagonista com o perigo real (e o reaparecimento de Ricote) e uma visita a uma gráfica, onde cópias da falsa sequência do livr estão sendo preparadas. Como já disse Sergio Vila-Sanjuán, Dom Quixote transformou Barcelona na cidade das publicações e dos livros, na capital literária da língua espanhola.
 
Notas da tradução
As passagens de Dom Quixote citadas no texto são da tradução de Ernani Ssó (Penguin/ Companhia das Letras, 2012).
 
* Este texto é a tradução livre para “Tres maneras de leer el Quijote”, publicado aqui, em Letras Libres.

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