Kallocaína, de Karin Boye. Outra volta ao parafuso das relações Estado-indivíduo

Por Francisco Martínez Hidalgo


Karin Boye, 1940. Foto: Sven Torin. Arquivo Museu Alingsås.


 
Embora inúmeras obras tenham sido escritas com enfoque no tema das relações Estado-indivíduo, ainda existem algumas que, pela sua abordagem ou desenvolvimento, guardam uma originalidade capaz de surpreender até o leitor mais experiente. Com Kallocaína estamos diante de um desses poucos casos. E não porque lhe faltem elementos constantes em relação a todas as outras obras, algo até inevitável se olharmos para o contexto da sua produção (1938-39) ou da sua publicação (1940). A excepcionalidade deste romance reside na sua perspectiva original: a narradora observa um assunto, inúmeras vezes discutido, a partir de um prisma refrescante e com elementos inovadores, a partir do qual reflete sobre aspectos frequentemente ignorados.
 
A chave desta originalidade vem da voz também inusitada de sua autora: Karin Boye (Suécia, 1900-1941). Ela foi uma poeta de extrema sensibilidade, politicamente comprometida com a justiça, a igualdade e a paz, que pereceu emocionalmente destruída pelo avanço do Terceiro Reich. O seu suicídio ocorreu em 23 de abril de 1941, justamente no dia em que o exército nazista conquistou a Grécia, país que visitara nos últimos anos (o conheceu pela primeira vez em 1938) e pelo qual estava intensamente apaixonada. Sua postura também a manteve em constante luta consigo mesma — uma dualidade de permanência-fuga talvez expressa melhor do que em qualquer outro lugar em seu poema “Sim, certamente dói” —, levando-a a expressar fortes tensões tanto com sua filiação religiosa quanto com sua condição sexual (ambas explicitadas em seu romance Kris, de 1934).
 
Kallocaína foi escrito numa época em que Boye já havia vencido muitas de suas lutas internas; todavia, ainda nutria profundos receios existenciais sobre as consequências morais dos combates travados nos campos de batalha da Europa. Pacifista consciente, comprometida com o movimento desde o fim da Primeira Guerra Mundial, foi cofundadora do grupo Clarté (movimento pacifista e socialista) em 1921 com o objetivo de defender a paz contra o fascismo através da ação política e, claro, do compromisso artístico. Este romance insere-se neste quadro sociocultural e político. Porém, mesmo que assim seja, e as primeiras páginas do romance não deixem dúvidas, se conseguirmos superá-las e continuarmos a avançar, atingiremos uma dimensão interior, íntima e pessoal, o que torna este livro excepcionalmente diferente. Aqui está a principal razão de sua qualidade.


 
O argumento não tem nada de novo em comparação com muitos outros que tratam deste tema. É uma distopia: estamos perante um Estado do Mundo onde as liberdades foram suprimidas por uma autoridade tão abrangente que não se refere a nenhum líder supremo. Contudo, o monopólio estatal da violência estabeleceu o medo, a morte e o silêncio em todos os lugares. O protagonista e narrador-testemunha da história é Leo Kall, um cientista da Cidade Química n. 4, área especializada, presumimos, na pesquisa de novos produtos químicos. Durante seu trabalho de pesquisa, Leo Kall descobre uma substância capaz de inibir a prudência interior do indivíduo de tal forma que, sem medo das consequências e sem consciência dos fatos, uma vez consumida e seus efeitos alcançados, a kallocaína leva à expressão de todos os pensamentos, proporcionando ao Estado uma ferramenta fundamental para identificar aqueles sujeitos que poderiam ser considerados subversivos à sua ordem estabelecida.
 
Para piorar a situação, Leo Kall é uma pessoa institucionalizada. A sua fé no Estado como entidade orgânica superior ao indivíduo, que teria sido alcançada na evolução do indivíduo desarticulado para outra forma mais perfeita de convivência comunitária, é total e absoluta. Da mesma forma, a sua submissão é total no que diz respeito às normas e dinâmicas do Estado do Mundo. No seu ambiente, nem todos pensam o mesmo. À medida que a história avança, aos poucos, vamos descobrindo mais sobre sua esposa, Linda, ou seu superior imediato na Cidade Química n. 4, o supervisor Rissen, ou o chefe de polícia do mesmo local, Karrek, a ponto de definir um rico e heterogêneo mapa de posições morais.
 
Esses membros se repetirão em inúmeras distopias futuras, já que Kallocaína é a pioneira. Não restam vestígios, nos romances futuros, do salto que ocorre no romance: depois das primeiras dezenas de páginas, em que Leo Kall nos mostra quão séria é a sua submissão ao onipresente poder estatal, o tom gira uns oitenta graus e adquire um aspecto mais típico do bildungsroman (ou romance de formação), ao mostrar como Leo Kall evolui pouco a pouco para uma plena consciência da sua individualidade, primeiro, e da sua liberdade, depois. Nessa evolução, a descoberta da kallocaína e, principalmente, a verificação em primeira mão dos efeitos que ela causa no indivíduo desempenham papel de destaque. Nesse sentido, vemos o enredo progredir a partir de uma perspectiva original e inusitada como a diferença entre o “eu íntimo” e o “eu público”; entre o que realmente somos e sentimos e o que os outros esperam que sejamos... e não somos.
 
Se a “consciência de si” é o fio condutor do enredo, o seu leitmotiv ou o seu motor, os trilhos sobre os quais evolui estão no avanço do poder adicional que esta droga traz ao sistema político estatal. Porque, é importante ter consciência disso, tal droga (semelhante ao tiopental sódico, mas com efeitos mais contundentes), colocada nas mãos de um poder totalitário, representa uma porta para a dominação absoluta ao suprimir as margens da dignidade e da integridade que separam o “íntimo” do “público”. Diante desse risco, Leo Kall abre os olhos a partir da empatia que surge do medo derivado de uma pergunta que, em tal contexto, todos nos faríamos, mais cedo ou mais tarde: e se a kallocaína me fosse dada, meu “eu íntimo” seria coerente com meu “eu público”? E se não fosse, seria então o fim da minha vida? O grito pela sobrevivência do “eu íntimo” é o que motiva Leo Kall a levantar a venda dos olhos e iniciar um processo de descoberta durante o qual o acompanharemos em todos os momentos.
 
Durante esta aprendizagem de vida não são poucos, nem de pouca substância, os elementos cotidianos que para o personagem principal sofrerão uma profunda transformação: as relações familiares com sua mulher e filhos, as relações de trabalho com seu superior imediato, sua posição em relação ao sistema político e a sua ligação com ele e, em última análise, o papel que, como indivíduo, ele pode (ou não pode) desempenhar no domínio da sua reação ao mundo em que vive. Internamente, observamos sua maturidade na passagem, desde a indiferença inicial ou mesmo desprezo pelas primeiras cobaias humanas com quem experimenta a droga, até sua transformação em um ser empático, temeroso dos outros e ávido por manter intacta a fronteira que separa sua privacidade na esfera pública. Este é o intenso percurso que Kallocaína nos promete e que Karin Boye desenvolve.
 
No entanto, devemos alertar o leitor para os problemas de ritmo à medida que o romance avança. A leitura não é gratificante nas primeiras páginas. A necessidade de descrever o Estado do Mundo e, sobretudo, o desejo de ser exaustivo em relação a todas as consequências que o seu imenso poder exerce sobre as pessoas, representa um longo espaço de tédio que, para os leitores mais impacientes, resulta difícil ultrapassar. Também não é fácil ver Leo Kall iniciar o seu percurso com quem é difícil ter empatia, sendo demasiado “robotizado”, demasiado “institucionalizado”. Não gostamos do final, precipitado e coletado com pinças. Porém, insistimos que vale a pena ter paciência e permanecer com a leitura; caso o desespero inicial for suportado, encontrará uma obra garantidamente intensa e grata. 


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Kallocaína
Karin Boye
Fernanda Sarmatz Åkesson (Trad.)
Carambaia, 2022
224 p.
Coleção Acervo


* Este texto é a tradução livre de “Kallocaína, Karin Boye: otra vuelta tuerca a las relaciones estado-individuo”, publicado aqui, em Fabulantes.

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