Quatro problemas de filogenia na narrativa breve contemporânea

Por Michelle Roche Rodríguez


Ilustração: Afonso Cruz.


 
1 Até quando procuraremos “mestres”?
 
Procurar “mestres” é tão ineficaz quanto apegar-se ao cânone. Há algum tempo, a palavra “cânone” tem sido usada para designar as obras de autores que merecem destaque da crítica acadêmica ou da imortalidade das coleções de “clássicos” nas editoras. Mas o desafio ao cânone nasceu com o próprio cânone. Desde o início, este foi percebido como um clube exclusivo do qual se rejeitava aqueles que escreviam da periferia, incluindo as mulheres. Em O cânone ocidental (1994), Harold Bloom, autoridade no tema, reclama da existência de uma certa “Escola do Ressentimento”, oriunda de uma “trama acadêmico-jornalística” interessada em refutar o cânone para promover “supostos (e inexistentes) programas de mudança social”. Refere-se, claro, ao feminismo e a outros grupos ligados às reivindicações raciais que, mais de trinta anos antes, se tinham estabelecido como eixos do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e no Ocidente.
 
Procuram-se os mestres na literatura assim como os fanáticos religiosos seguem os profetas. E essa busca tende a ser articulada no gênero masculino e singular. Para José Miguel Oviedo, quatro nomes refletem a maturidade alcançada pelo conto no século passado: Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Juan Rulfo e Gabriel García Márquez. Entre os 35 mestres do conto propostos em sua Antologia crítica do conto hispano-americano do século XX, apenas duas são mulheres: Elena Poniatowska e Rosario Ferré. O livro publicado em 1997 e republicado vinte anos depois — no auge da “Escola do Ressentimento” — sublinha a condição periférica dessas mulheres ao incluí-las na seção final, identificada como “Outras direções: a partir do boom”. Quer dizer: não só são estranhas à maturidade do gênero breve, como estão tão afastadas da tradição que vão em outra direção. Não estou interessado em propor aqui uma lista de “mestres” do conto. A recomendação de Horacio Quiroga, no seu famoso decálogo, de acreditar num mestre, “como no próprio Deus”, parece inútil e, o mais perigoso, complexa. Por que um autor (ou autor) iniciante deveria imitar Borges? Lê-lo, sim; deter-se nos mecanismos de suas ficções, compreendê-los, mas nunca o imitar. Quem iria querer ler uma cópia de Borges quando se tem o original? A chave está na palavra “leitura”. Para Ricardo Piglia, é assim que se constroem as “genealogias”. Isto, parece-me, é mais útil do que consagrar mestres... ou mestras.
 
2 O que significa fazer “genealogias” da escrita?
 
Significa apostar na leitura. Piglia usou a palavra “genealogia” para se referir ao conjunto de antecessores literários de um escritor. Como ninguém cria literatura no vácuo, quando escrevemos temos consciência da poética a partir da qual queremos ser lidos. Em poucas profissões como esta, são tão importantes os precedentes das ideias ou de onde saem as ferramentas do próprio estilo. O próprio Piglia contou das suas genealogias durante a Feira Internacional do Livro de Guadalajara em 2010, ano em que publicou o seu romance Alvo noturno. “Um escritor constrói genealogias imaginárias, algo que os críticos não fazem”, explicou. “Fala-se dos autores com os quais se sente identificado”. O melhor exemplo disso foi Borges: “Quando todos falavam de Thomas Mann ou de Fiódor Dostoiévski, Borges insistia em Robert Louis Stevenson ou C. K. Chesterton, escritores então considerados menores que ele colocava no centro da discussão. Porque se alguém lia Borges a partir de Dostoiévski, não sobrava nada de Borges”. Com essa estratégia, o escritor preparava a imaginação de seus leitores para abrir espaço para seus próprios textos.
 
Falar de genealogias coloca ênfase nos textos, não em quem os produz. Oferece mais ferramentas do que a noção canônica de Oviedo para compreender a narrativa breve produzida na atualidade. Não se propõe imitar ninguém, mas sim sugerir os textos de outros como portas abertas para a própria arte narrativa. Lemos as obras de outros, especialmente daqueles que nos precederam no ofício, para encontrar soluções para os problemas que os textos impõem.
 
Um acontecimento que ainda não foi suficientemente noticiado é a edição dos Contos completos de Piglia, publicada em 2021. Aí se encontram as suas primeiras peças publicadas na década de sessenta, onde são evidentes as influências de autores como os extremos no estilo que são Henry James e Ernest Hemingway, ou Macedonio Fernández e, claro, Borges. Chega aos seus últimos textos no gênero, misturados com as suas “histórias pessoais”, que vão de 1969 a 2017. O percurso descreve um caleidoscópio de formas híbridas, capazes de ultrapassar os limites do conto canônico. Piglia consegue isso a partir de formas narrativas abertas que se misturam com o ensaio, a crítica ou a autoficção ou a partir de conteúdos heterodoxos, em que vai desde o conto histórico e policial, ancorados em gêneros mais ou menos precisos da tradição literária, até gêneros muito livres da ficção teórica ou do jornalismo, por exemplo. A intensa heterogeneidade de sua narrativa breve deixa um sulco aberto para que os que cultivam o conto possam semear nossos textos.
 
3 Piglia… E o que fazemos com Bolaño?
 
Roberto Bolaño foi um movimento literário de um homem só. Isso é inegável. É por isso que tendemos a pensar que a semente de toda a narrativa espanhola deste século está na sua obra. É possível que seja esse o caso no romance. Sinto muito pelos bolañistas, mas o autor chileno tem menos influência que o argentino entre os cultivadores dos gêneros curtos na atualidade. Não conheço nenhuma evidência crítica de que suas ideias sobre a construção do conto sejam estudadas com o mesmo deleite que a teoria formulada por Piglia, explicada em Formas breves (1986), segundo a qual um conto sempre conta duas histórias, uma está na superfície e a outro é sentida subterraneamente. É verdade que em sua época Bolaño cometeu o mesmo excesso de Quiroga ao propor um decálogo do gênero. No caso dele são doze “conselhos” para “a arte de escrever contos”; ele faz isso a partir da paródia, como um bom filho da pós-modernidade. Mas nem daí ele escapa da pressão de nomear mestres. “A verdade da verdade é que com Edgar Allan Poe todos teríamos contistas de sobra”, escreve ele no ponto nove; “pensem no ponto número nove”, observa no ponto dez: “É preciso pensar no nove. Se possível: de joelhos”. O que é menos claro é se Bolaño soube reconhecer que tinha um mestre entre os seus contemporâneos, que nasceu doze anos antes e morreu catorze anos depois dele: Piglia.
 
As duas semelhanças mais óbvias entre eles estão no uso de personagens recorrentes e na estrutura das narrativas. Emilio Renzi e o comissário Croce são fundamentais para a compreensão da poética de Piglia e aparecem em contos, ensaios ou romances como transcrições do escritor. Em Bolaño tratamos de personagens menos transcendentes, que saltam entre contos e romances, ou vice-versa, como Lalo Cura no conto homônimo de Putas assassinas (2001) que reaparece em 2666 (2004), ou Joanna Silvestri, que vai do romance Estrela distante (1996) à coletânea de contos Chamadas telefônicas (1997). Os contos de Bolaño se resolvem em epifanias, o que implica sua construção a partir de uma história que se conta e outra que se intui, seguindo a teoria do autor argentino. A diferença é que enquanto nos textos de Piglia o oculto se revela no final, nos de Bolaño a epifania se resolve com o vazio. É um jogo de espelhos semelhante ao dos seus romances e está ligado ao tema fundamental da sua obra, a violência. Com este vazio, propõe-se mostrar que por trás da violência inexplicável não há nada mais do que um abismo, talvez mais violência.
 
4 Uma genealogia pode ser construída com dois nomes?
 
Claro que não. Menos quando apontam apenas para homens, mesmo que sejam Piglia e Bolaño. Só um acadêmico como Oviedo, formado na antiquada tradição dos mestres, pode imaginar uma matriz masculina na qual se gestam os movimentos estéticos. Em todo caso, aqui não me interessa a posição da crítica, mas sim o exercício literário como autor. Não sobraria nada das obras dos que hoje escrevem contos se elas nos fossem lidas a partir de Piglia ou de Bolaño. Isso apenas obscureceria as nossas intenções. Proponho antes expandir o conceito de genealogia com uma metáfora vegetal. A imagem de uma árvore genealógica. Pensemos na narrativa breve deste século como um baobá de tronco robusto de onde emergem quatro enormes galhos. Dois pertencem a Piglia e Bolaño. Num outro localizarei a obra da autora catalã Cristina Fernández Cubas e no restante, as coletâneas de contos da argentina Clara Obligado.
 
Quase posso ouvir as objeções de certas pessoas. É conflitante fazer uma trança filogenética que inclua Fernández Cubas e Obligado ao lado de Piglia e Bolaño, eu entendo. A razão para isso não é porque são mulheres. Nem significa que os seus contos sejam inferiores. É porque estão mortos e por isso que percebemos as suas contribuições para a literatura como projetos encerrados. Fernández Cubas e Obligado continuam escrevendo, é verdade: nos últimos vinte anos publicaram suas melhores obras. É de se esperar que com o passar do tempo suas contribuições ao gênero se aprofundem e se projetem fortemente para além das fronteiras da sua língua.
 
Fernández Cubas sintetiza as características próprias da história oral e escrita na Espanha, atualizadas na releitura de Poe e Henry James. Da estrutura clássica do conto de horror anglo-saxônico, assume a aparência de um elemento perturbador na vida cotidiana. Através deste recurso, o fantástico torna a visão do mundo mais complexa e revela as suas fissuras. Embora existam poucas conexões entre esta autora e a narrativa da América Latina, as histórias da boliviana Giovanna Rivero e da equatoriana María Fernanda Ampuero apresentam uma irrupção semelhante do sinistro na vida cotidiana. A diferença é que em suas obras há uma nuance política herdada de Bolaño: uma ideia de violência como característica inevitável e sinistra da realidade.
 
Com a intenção de narrar nosso mundo múltiplo, Obligado apresenta seus livros de contos como conjuntos fractais. Esta estrutura indica o que significa ser uma autora migrante — uma argentina na Espanha — que ela identifica como “literatura excêntrica”. Propõe assim uma reflexão intensa sobre o deslocamento: o da pessoa, suas leituras, a escrita e a recepção da obra. É assim que ele enfrenta o seu desenraizamento a partir da criatividade. Em suas coletâneas de contos As outras vidas (2006), O livro das viagens equivocadas (2011) e A morte joga dados (2015), ela rompe com a estrutura da linear narrativa e também na ordenação do livro, para subverter a leitura e forçá-la a ser recomposta a partir de múltiplos lugares e pontos de vista.
 
A heterodoxia de Obligado na concepção do livro de contos e dos textos que os compõem interessa-me porque sublinha o efeito abrangente, situando-o entre os gêneros do romance e do conto. Com esta estratégia, anuncia um caminho a ser seguido por outros escritos. Em tempos em que as pinturas já não se limitam ao espaço do quadro, em que certas músicas perderam a melodia e em que a ida ao cinema é feita a partir do sofá de casa, por que é que o tradicional livro de contos sobreviveria?
 
Na literatura acabamos com tudo. Faltava romper com o livro.
 
Agora, já podemos outra vez recompô-lo. 




* Este texto é a tradução livre de “Cuatro problemas de filogenia en la narrativa breve contemporánea”, publicado aqui, em Cuardernos Hispanoamericanos.

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