Com
L’Imaginifico. Vita di
Gabriele D’Annunzio (2018), Maurizio Serra — que escreve em francês e
italiano indistintamente — completa um dueto soberbo, precedido por
Malaparte.
Vite e leggende (2012),
1 em que esta dupla incomparável de
iconoclastas e réprobos italianos do século XX alicança um ápice biográfico
dificilmente superável. Isso se deve ao envolvimento quase íntimo de Serra,
precisamente com aqueles que ele chamou de “estetas armados”, como Stefan
George e Filippo Marinetti, com irmãos inimigos como Pierre Drieu la Rochelle e
André Malraux, e com outros estetas menos belicosos, como os irmãos Heinrich e
Thomas Mann, ou Italo Svevo. Diplomata — ex-embaixador italiano na UNESCO —
Serra também é autor de
Il Caso Mussolini e, recentemente, de
Munique
1938: la paix impossible (2024).
Tanto se disse e escreveu sobre
Gabriele D'Annunzio (1863-1938) que, diante de uma biografia como a de Serra,
resta ressaltar que um mundo como o dele, aparentemente feito inteiramente de
bijuterias e armado de machismo, só sobreviveu mais algumas gerações graças aos
grandes filmes de Luchino Visconti, onde ele está sempre, de alguma forma,
presente. D'Annunzio teve um momento de fatal caducidade estética, quando sua
sensualidade finessecular do século XIX — a de um homem pequeno, feio, calvo e
excessivamente perfumado, com a merecida reputação de ter sido o mais tóxico de
todos os predadores de mulheres — foi eclipsada em questão de dias. Apesar de o
arcebispo da capital francesa ter ameaçado o público com excomunhão,
Le
martyre de Saint Sébastien, criado para Ida Rubinstein e com música de nada
menos que Claude Debussy, tornou-se um jornal diário naquele mesmo ano de 1913
com o escândalo de
A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky e
coreografia de Vaslav Nijinski, um golpe modernizador que relegou toda a obra
de D’Annunzio ao canto da feia boneca.
Foi uma injustiça literária, sem
dúvida: quem ler
Cento e cento e cento e cento pagine del libro segreto di
Gabriele D’Annunzio tentato di morire (1935, assinado sob o pseudônimo de
Angelo Cocles) perceberá que em meio a tanta filigrana e tapeçaria,
aparentemente dignas dos chamados “mercados de pulgas”, pulsa, insone, querendo
se atirar pela janela e às vezes realmente o fazendo, um dos escritores mais
misteriosos da história. Digo eu. Mas D’Annunzio imediatamente recebeu a
oportunidade da vingança, aquela Grande Guerra que tanto desejava e da qual foi,
ainda que anedoticamente, protagonista nos anais da
petite histoire. Da
França, onde se autoexilou alegando perseguição fiscal, D’Annunzio fez campanha
arduamente para que a Itália se aliasse contra as Potências Centrais. Os
governantes liberais daquela modesta Itália tinham temores muito justificados
de “ganhar perdendo”, como aconteceu. Serra explica o paradoxo: entre os
vencedores de 1914-1918, a península perdeu a Primeira Guerra Mundial porque
deu origem ao fascismo em 1922, e apenas entre os perdedores de 1939-1945,
quando venceu, livrando-se do Duce.
Não foi apenas o marxista peruano
José Carlos Mariátegui quem disse que o fascismo era d’annunziano; D’Annunzio
não foi fascista, e essa afirmativa é um dos pontos-chave de
L’Imaginifico,
de Serra. Latinizante, quando Mussolini, após pagar suas dívidas, o aprisionou
em um monumento — o Vittoriale degli Italiani, às margens do Lago de Garda —, D’Annunzio
não se cansava de denunciar Adolf Hitler e alertar a Itália contra qualquer
guerra contra a França, sua irmã de sangue. Esteticamente dissoluto, como era o
poeta, ele se horrorizava com o neoclassicismo fascista, assim como com o
antissemitismo do qual era adversário. Seu pecado era o amor à guerra (e ao
parlamentarismo, tão impopular na época quanto agora), e boa parte de sua
família, originária dos Abruzzo, alistou-se, com inúmeras perdas. O
nacionalismo extremo e histérico d’annunziano o alienou de seus amigos alemães
do círculo de Stefan George e Hugo von Hofmannsthal, que o chamavam de “Pulcinella
disfarçada de Tirteu”, referindo-se a um poeta espartano.
Como Ernst Jünger e tantos outros
condotieros
da época, segundo a tipologia de Serra, viam (e vivenciavam) a guerra como a “higiene
do mundo”. É improvável que o homem que fora eleito Deputado da Beleza em 1897
tivesse mudado de ideia depois de 1945; ele foi eleito pela direita e, um belo
dia, em plena sessão, atravessou o parlamento para sentar-se à esquerda.
Ninguém se encaixa melhor na frase de Walter Benjamin sobre se ter estetizado a
política do que D’Annunzio. Poucos escritores se depreciaram tanto pessoalmente
quanto Thomas Mann e D’Annunzio, diz-nos Serra, o que é paradoxal, visto que
politicamente o Mann de
Reflexões de um homem apolítico (1918) não
estava muito distante ideologicamente do italiano, e os autores de
Prazer
(1889) e
Morte em Veneza (1912) eram filhos da mesma Europa. Só Visconti
compreendeu essa identidade de origem, que estetizou não só a política, mas
também o antigo e o moderno.
A biografia exaustiva de Serra me
leva a focar em um único episódio. Não na vida erótica de D’Annunzio, com seu
arsenal de conquistas em todas as classes sociais e com todas as mulheres; nem
naquele amor verdadeiro, cheio de cumplicidade intelectual, que ele
compartilhou com Eleonora Duse. Já se sabe o suficiente de sua paixão por
esportes e seu eventual consumo de cocaína, bem como sobre a inveja temerosa
com que Mussolini o isolou do regime fascista. Suas aventuras como piloto de
guerra o fizeram perder um olho, que, quando substituído por um falso, emanava
um brilho vítreo que deslumbrou a extrema direita na década de 1930. Ah! E
aquele feito aéreo de bombardear Viena com uma flotilha lançando panfletos de
propaganda em agosto de 1918, tão inútil.
O D'Annunzio que tem muito a nos
dizer — e Serra enfatiza isso — é o louco que governou Fiume (hoje a cidade
croata de Rijeka) por quinze meses, de 12 de setembro de 1919 ao Natal
Sangrento de 1920. Um poeta assumia o comando de uma cidade que antecipava —
Serra cita um colega — Charlie Chaplin e Che Guevara, a Guerra Civil Espanhola,
68, Woodstock e os globalófobos já falecidos, todos liderados por um homem de
letras do início da era moderna que se comportava como um tribuno do final da
Idade Média.
Numa época em que o bolchevismo e
o fascismo ganhavam terreno simultaneamente, Lenin observou com fascínio esse
livre reinado de Fiume, e Mussolini, não sem reservas, aprendeu muito com D’Annunzio
pregando diariamente da sacada para uma multidão composta de anarquistas,
futuristas (Marinetti e D’Annunzio se odiavam), praticantes de ioga, naturistas
e vegetarianos, e homossexuais libertos de toda perseguição legal por ordens de
um Comandante-em-Chefe ávido por impor uma ordem lírica em vez de política.
Fiume e seu Comandante foram
elogiados pelos dadaístas e pelo Partido Comunista Francês: vinham da Comuna de
Paris e se dirigiam às comunas
hippies, unidos pelo ódio ao dinheiro e à
ordem estabelecida. D’Annunzio, certamente, não possuía essas abominações:
amava o luxo e ainda mais aqueles que o facilitavam, aqueles agiotas dos quais
naturalmente fugia. Ele não amava o dinheiro que escapava dos dedos, e Marx
teria dificuldade em chamá-lo de burguês. E quanto à ordem estabelecida, Serra
conclui que, se houve um verdadeiro “anarquista conservador” no século XX, foi
D’Annunzio. Enquanto ele fosse o garante dessa nova ordem (e seus amigos, na
falta dela), o poeta, dramaturgo e romancista não tinha problemas com o reinado
da desordem organizada. Lou Andreas-Salomé, o situacionista Guy Debord, Ivan
Illich em Cuernavaca, o antipsiquiatra David Cooper ou o antiedipiano Félix
Guattari teriam feito bem em se mudar para o Fiume de D’Annunzio.
Para que Fiume durasse tanto, eram
necessários “fiumistas”, e Serra os descreve como os quatro mosqueteiros do
nosso D’Artagnan, todos dignos de um retrato de Ramón Gómez de la Serna ou de
ser um dos filhos sem filhos de Enrique Vila-Matas. Graças a
L’Imaginifico,
temos um vislumbre deles: Guido Keller von Kellerer (1892-1929), um ás da
aviação suíço, adepto do nudismo e amante de dormir em árvores, como o barão de
Italo Calvino. O Athos de D’Annunzio foi Léon Kochnitzky (1892-1965), judeu
convertido ao catolicismo e, mais tarde, à observação das almas platônicas,
poeta e poliglota que escreveu algo do D’Annunzio assinou (os grandes não
copiam, roubam, como sabemos). Seu Aramis foi Henry Furst (1893-1967), nascido
nos Estados Unidos, mas italiano por adoção. Boxeador ávido e entusiasta da
literatura, estabeleceu-se na Ligúria e recebia seus amigos vestido de cardeal.
Em Fiume, poliglota, traduziu os discursos do Comandante D’Annunzio para o
mundo. Tornou-se correspondente assíduo de Jünger. E ao seu lado estava o empresário
judeu Ludovico Toeplitz de Grand Ry (1893-1973), gerente da aventura.
Finalmente, Porthos: Giovanni Comisso (1895-1969), epicurista dedicado à
telegrafia que havia abandonado o exército para se juntar aos legionários de
Fiume. E o sobrevivente entre os camaradas de D’Annunzio foi Giovanni
Host-Venturi (1892-1980), de breve militante fascista, que cometeu suicídio no
final dos seus 90 anos ao saber que seu filho havia sido assassinado pelos
militares argentinos.
Antes de levar a sério a
empreitada de Fiume, vale a pena citar um trecho de
La quinta stagione
(1922 e 2013), de Kochnitzky: “As pessoas dançavam por toda parte: na praça,
nas encruzilhadas, no píer; dia e noite, sempre havia dança e canto; não a
voluptuosa suavidade da barcarola veneziana, mas sim uma bacanal selvagem. Ao
ritmo das fanfarras marciais, viam-se soldados, marinheiros, mulheres e
cidadãos rodopiando em bandas esfarrapadas, redescobrindo a tríplice
diversidade das cópias primitivas das quais Aristófanes se vangloria. Para onde
quer que se olhasse, via-se uma dança. Danças de framboesas, de tochas, de
estrelas, porque Fiume estava faminta, arruinada e angustiada, talvez na
véspera de morrer no fogo ou sob granadas. É por isso que Fiume, agitando uma
tocha, dançava diante do mar.”
Mas o reinado do Deputado da
Beleza tinha objetivos políticos que D’Annunzio levou a sério: grosseiramente,
impedir que Fiume fosse anexada pelo novo reino, mais tarde a república federal
da Iugoslávia (1945-1992), que a Itália e a França haviam oferecido aos sérvios
pelas costas dos italianos. O Tratado de Rapallo, contestado pelo presidente
Woodrow Wilson, foi assinado em 1920, e Fiume tornou-se uma cidade
independente. Mussolini a ocupou em 1922 e, em 1947, foi recapturada pelos
partidários do Marechal Tito, realizando uma rigorosa limpeza étnica em meio ao
silêncio cúmplice dos comunistas italianos e iugoslavos.
D’Annunzio, que escreveu uma
Carta
de Carnaro para legislar sobre sua cidade adriática, não tinha a
resistência necessária para travar uma batalha perdida por sua própria obsessão
episódica e imaginária, conformando-se em ser dominado pela Itália. Mas ele
tentou, e naquele Natal de 1920, italianos foram bombardeados por italianos. Havia
plantado uma estaca em Flandres bem perto do coração daquele odiado Império
Habsburgo, que ele reprovava por ser católico (o poeta era maçom) e pudico. O
comandante D’Annunzio foi advertido diversas vezes de que precisava deixar
Fiume, juntamente com seu sonho de uma república dálmata dentro de uma
monarquia, a italiana. Os legionários (liderados por Luigi Bakunin, sobrinho de
Mikhail) ofereceram-se para resistir — Mussolini cruzou os braços e aceitou o
Tratado de Rapallo — mas, assim que D
Annunzio
decidiu se esquivar do martírio de São Sebastião, eles recuaram, gravemente
feridos.
Serra, em
L'Imaginifico. Vita
di Gabriele D’Annunzio questiona se Fiume foi um protótipo de Estado
fascista. Sim e não. Possuía aqueles elementos de caos voluntarista que um
líder como Mussolini geralmente apazigua, não como D’Annunzio, que buscava, ao
mesmo tempo, um Estado corporativo e extremamente livre, ultramoderno e
medieval, naqueles dias confusos do Biênio Vermelho (1919-1920), em que, se a
extrema esquerda tivesse recrutado Mussolini, sua vitória teria sido possível
sob essa bandeira. Finalmente, Gabriele D’Annunzio tinha dívidas demais,
amantes para redescobrir ou seduzir pela primeira vez, versos e romances
adiados, móveis e bugigangas para recuperar (foi Mussolini quem teve que
resgatar para ele bibliotecas e armários que haviam sido apreendidos). Além de
continuar colecionando amores fugazes e obras de arte duvidosas, cercado por
seus galgos, ele não tinha tempo para ser também um utópico renascentista.
Permitam-me reescrever um pouco a citação do crítico francês André Suarès que
Maurizio Serra usa como epígrafe de sua biografia: “D’Annunzio imaginou tanto
que deixou tudo a perder.”
Notas da tradução
1
O imaginativo. Vida de
Gabriele D’Annunzio e
Malaparte. Vida e lendas, em tradução livre,
respectivamente. Os dois livros são inéditos no Brasil.
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