A importância de se chamar James

Por Rebeca García Nieto

Percival Everett. Foto: Dylan Coulter


 
Determinados livros deveriam vir juntos numa caixa: Jane Eyre, de Charlotte Brontë e Vasto mar de sargaços, de Jean Rhys; Robinson Crusoé, de Daniel Defoe e Foe, de J. M. Coetzee; e já agora, As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain e James, de Percival Everett.
 
Quando Charlotte Brontë, na narrativa de Jane Eyre, trancou Bertha Mason no sótão e optou por mostrá-la apenas através das descrições do marido, não só nos privou de uma grande personagem, como também nos fez vê-la como primitiva e perigosa, praticamente um animal. Um século depois, Rhys reviveu a “louca do sótão”. Foi quando soubemos que, antes de seu casamento arranjado com o Sr. Rochester e de partir com ele para a Inglaterra, o verdadeiro nome de Bertha era Antoinette Cosway e era uma jovem crioula nascida na Jamaica (então colônia britânica). A romancista dinamarquesa lhe deu uma personalidade e um passado, ampliando de modo complementar a história que Brontë havia contado no romance de 1847.
 
Por sua vez, Daniel Defoe nos levou a acreditar que Sexta-Feira, o nativo a quem Robinson Crusoé ensinou inglês (e a chamá-lo de amo), estava satisfeito e acomodado com sua condição. Na versão de Coetzee, no entanto, a língua de Sexta-Feira foi cortada, de modo que ele nem consegue expressar sua condição. Essa amputação reflete melhor a dor dos oprimidos e mostra vividamente como eles foram privados dos meios para contar sua própria história.
 
É precisamente o que Percival Everett remedia em James. O livro com o qual recebeu o National Book Award e o Pulitzer de Ficção coloca papel e lápis (um lápis pelo qual outro homem negro teve que pagar um alto preço) nas mãos de seu protagonista. Com isso, ele escreverá seu nome, James, e, ao fazê-lo, sentirá que finalmente são seus esses instrumentos de contar.
 
Com James, Everett reescreve o reconhecido romance de Mark Twain valendo-se de outro ponto de vista, o de Jim, escravo que acompanha Huckleberry Finn nas suas aventuras. A ação se desenvolve algumas décadas depois dos acontecimentos do romance de Twain, permitindo abarcar a Guerra Civil. O propósito do escritor não é corrigir o primeiro romance, mas sim desenvolver com ele um diálogo e também com outros filósofos que escreveram a respeito da escravidão, como Voltaire e John Locke.
 
O autor reconhece em seus agradecimentos que o senso de humor e a humanidade de Twain o influenciaram muito antes de se tornar um escritor; mesmo assim, havia alguns aspectos recorrentes n’As aventuras de Huckleberry Finn que considerava questionáveis. Para Everett, Twain estava mais interessado em replicar o sucesso de vendas alcançado com As aventuras de Tom Sawyer do que escrever uma grande obra. Isso explicaria por que, no fim do romance, a narrativa se concentra mais nas aventuras do que na relação pessoal entre Huck e Jim. Everett queria que o convívio entre o menino branco que escapa das surras de seu pai e o escravo que foge porque será vendido e separado de sua família tivesse mais peso do que no romance original.



É necessário ressaltar que a relação entre Huck e Jim já era especial em As aventuras de Huckleberry Finn, embora a amizade dos dois fosse contrária às normas estabelecidas pela sociedade em que viviam. O romance de Twain contrastava a inocência do menino com a hipocrisia daqueles que se diziam cristãos e viam os negros como suas propriedades e não como seres humanos. Apesar disso, o livro foi questionado praticamente desde sua publicação, em 1885. Como se sabe, o termo depreciativo nigger aparece mais de duzentas vezes ao longo do livro e isso o fez ser considerado inadequado desde sempre.
 
O problema, porém, não está no uso da palavra reprovável, ou não apenas — como Barack Obama disse certa vez, não podemos medir se o racismo ainda existe apenas pelo fato de as pessoas usarem ou não nigger em público. A questão é que, o que para críticos e escritores brancos era um ponto forte do romance (“a simplicidade, a bondade e a generosidade do negro do Sul nunca haviam sido tão bem retratadas”), resultava (e resulta) humilhante para os leitores negros. O Jim de Twain é supersticioso, primitivo, mais infantil que Huck. O Jim de Everett, James, é o adulto na sala, então não é fácil reduzi-lo a um diminutivo. Ele é inteligente, lê e escreve, e é perfeitamente capaz de se safar de todo tipo de situação complicada.
 
Esta não é a primeira vez que Everett aborda o racismo em seus romances. Em As árvores demonstrou sua capacidade de arrancar gargalhadas com um enredo construído sobre eventos que são tudo menos engraçados (nessa ocasião, se baseou numa história real, o linchamento de Emmett Till, um adolescente de catorze anos, por dois homens brancos — acontecimento, aliás, também abordado por Toni Morrison em alguns de seus livros, como a peça de teatro Dreaming Emmett e A canção de Solomon).
 
Em James, também há linchamentos e estupros, e são perpetrados com total impunidade: “Diariamente morrem negros, já sabemos disso. O pior foi que o juiz disse ao grande júri que tinha sido um incidente em massa e que por isso não podiam recomendar qualquer condenação. Ou seja, se um número suficiente de pessoas fizer isso, não é crime.”
 
Mesmo com o tratamento de um tema doloroso, a narrativa consegue arrancar o riso do leitor em mais de um ponto, sem diminuir o horror do que se conta. Uma das cenas mais engraçadas é a de quando James dá aulas de idiomas para sua filha e outras crianças. Para sua própria segurança, ao lidar com pessoas brancas, deve-se falar com “a gramática incorreta correta”. Portanto, se houver um incêndio na cozinha, é melhor dizer “Nossa, senhora, olha isso” em vez de simplesmente “Fogo, fogo” (se possível, gaguejando), já que os brancos “gostam de corrigir você e achar que você é burro”.
 
Everett é muito hábil em identificar os absurdos e as piadas que abasteciam tão bem a sociedade. Um exemplo eram os shows de menestréis, peças e musicais em que atores brancos faziam blackface para zombar das pessoas negras. Numa demonstração de ironia, a narrativa de Everett coloca o seu protagonista em um desses shows (ninguém menos que o de Daniel Decatur Emmett, autor da música “Dixie”, um verdadeiro hino nos estados confederados). James deve se passar por um homem branco que, por sua vez, finge ser negro para obter dinheiro e comprar a liberdade de sua família...
 
A circunstância evidenciada também desempenha uma função estrutural importante. Foi sugerido que Twain poderia ter imitado a estrutura tripartite dos shows de menestréis em As aventuras de Huckleberry Finn. James também é dividido em três partes e, como frequentemente acontecia em tais shows, começa com um número musical (a primeira coisa encontrada ao abrir o romance é a letra de uma série de músicas do repertório de Daniel Decatur Emmett).
 
Ralph Ellison, o autor de O homem invisível, escreveu que Mark Twain possibilitou muitos escritores afro-americanos, como ele, a encontrarem sua própria voz e que, sem os negros, o romance desse autor não existiria: “Sem eles, não existiria Huck, nem Jim, nem o romance estadunidense como o conhecemos.” Por um lado, as tensões entre brancos e negros forneceram um tema para escritores como Faulkner e Stephen Crane. Por outro lado, lembrou Ellison, a maneira como os afro-americanos falavam, sua musicalidade, suas metáforas, suas histórias e, acima de tudo, sua concepção tragicômica da vida moldaram a língua e a literatura dos Estados Unidos. 

Apesar disso, quando se reitera o tão alardeado “grande romance estadunidense”, geralmente se refere aos livros escritos por autores brancos; James Baldwin ou Toni Morrison raramente estão entre os mencionados. Logo, é uma boa notícia que escritores como Colson Whitehead, Ta-Nehisi Coates ou mesmo Percival Everett recebam o reconhecimento e a visibilidade merecidas. Estamos atrasados, mas antes tarde do que nunca.


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James
Percival Everett
André Czanorbai (Trad.)
Todavia, 2025
320p.


* Este texto é a tradução livre de “La importancia de llamarse James”, publicado aqui, em Jot Down.

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