O azul de Giotto ou o nascimento da pintura moderna

Por Almudena Blasco Vallés


As cores são as ações da luz; as ações e as paixões.

— Goethe, Tratado das cores


Giotto. O beijo de Judas.


No mundo da arte, ser um artista de vanguarda significa, para muitos críticos, apostar no futuro, embora eu me incline mais a considerar um artista de vanguarda alguém que faz da negação algo positivo. De qualquer forma, respeito a opinião da maioria que segue a Modern Painting de George Moore e aceito que as técnicas pós-impressionistas da década de 1890 são um conjunto de linhas dissonantes que forjaram vários “ismos”, do cubismo ao expressionismo. E acrescentaria também que não podemos ignorar os debates sobre a cor na pintura, pois nos guiam para uma mudança de atitude em relação ao valor e ao significado das obras de arte.
 
Isso me leva a considerar o que se dizia em meados do século XIX das fotografias em livros de arte: todas em preto-e-branco, naturalmente, embora algumas fossem da mais alta qualidade, como as que Carlo Naya, reunindo a coleção do pintor e viajante Jean-Paul Milliet sobre Bel Paese, a Itália, particularmente as tiradas na Capela Scrovegni, em Pádua, hoje abrigada no Museu de Orsay. Milliet, como um verdadeiro membro do grupo de Barbizon, usa Naya para destacar a diferença entre o desenho exuberante daquela capela e as imagens anteriores, numa espécie de desejo de comparar o que acontecia por volta de 1300 com o que acontecia em sua época ao longo da linha que ia de Corot a Manet.
 
Nesse sentido, sempre achei admirável ver mestres como Bernard Berenson analisando as pinturas de Giotto com fotografias em preto e branco, enquanto questionavam a extensão de seu cromatismo. Então, na década de 1950, quando a cor se deteriorou devido à falta de cuidado com os afrescos, o debate centrou-se no valor exato do azul, o que entusiasmou André Malraux e serviu de ponto de partida para a análise de Georges Duby de que estamos testemunhando uma furiosa obra de vanguarda que inaugura a pintura moderna.
 
Quanto ao fato de as cores estarem associadas a um estado de espírito, uma análise do azul de Giotto é capaz de nos dar o que uma pintura de vanguarda faz de melhor: iluminar a noite escura. É por isso que vejo certos paralelos entre o azul de Giotto e o azul de três grandes obras da vanguarda do século XX: A noite estrelada (1899), de Van Gogh, O quarto azul (1901), de Picasso, e O cavaleiro azul (1903), de Kandinsky. Esses paralelos me permitem enfatizar o azul de Giotto na execução da obra encomendada por volta de 1305 pelo mecenas Enrico Scrovegni para decorar as paredes da Capela da Arena em Pádua (hoje bem visíveis depois da restauração). Desde o início, várias cenas são de grande intensidade emocional, muito distantes da monótona representação dessa história sagrada feita por artistas anteriores. Esse argumento foi enfatizado pela primeira vez há um século e meio por John Ruskin em seu livro Giotto and his Works in Pádua. Particularmente, gosto que Ruskin coloque Giotto na encruzilhada dos grandes artistas na criação da luminosidade com base em uma melhor compreensão das cores puras — digamos aqui, o azul; e gosto disso porque estou convencida de que o efeito da cor nasce do respeito ao silêncio dos anseios humanos mais profundos. E se para Van Gogh, Picasso ou Kandinsky, o azul é a expressão da melancolia trazida por uma época de mudanças aceleradas, para Giotto, o azul é a expressão da gravidade com que ele encara a transformação da pintura na arte maior da cultura ocidental.
 
A escolha pictórica só pode ser explicada lembrando que o azul de Giotto favorece o projeto de retratar as paixões humanas descritas pelo franciscano Tomasso de Celano. Se a pintura da Pregação aos pássaros, na Basílica Inferior de Assis, surge como um convite a pensar o mundo de forma diferente, é porque o fundo que sustenta o gesto do santo é azul. Se nos concentramos no invisível, é porque há um forte cromatismo que ilumina esse aspecto da ação humana. Se nosso olhar vê o milagre, é porque nosso olho foi treinado nas maneiras de captar a natureza que, em última análise, forjaram o humanismo por aqueles oradores dos quais Michael Baxandall falou em um livro famoso.
 
Baseando-se em seu conhecimento da natureza e buscando tornar seus temas inteligíveis, Giotto concentrou sua habilidade artística no esforço de transferir as imagens de seu espírito para as paredes de um modesto edifício retangular abobadado, percebendo essa mudança abrupta na arte da pintura mural como uma variação cromática que permite aproximar-se de um estado interior não apenas físico, mas também espiritual. Uma pintura, portanto, que responde a uma narrativa sobre a vida de Cristo e da Virgem Maria e que situa cada cena, escreve C. A. Isermeyer, em uma ilusão geral qui viendrait lier le tout.
 
O mesmo ponto de partida para os mosaicos de Monreale em Palermo ou as pinturas em painel de Cimabue, é seguido por Giotto em Pádua, assumindo o caráter teatral da narrativa e, ao mesmo tempo, alterando o espaço pictórico para que as personagens desenvolvam os gestos de uma mímica expressiva que conferem ao pensamento cristão a aparência pulsante da carne e da realidade do sangue. E ele os coloca contra um pano de fundo original. Esse pano de fundo é azul. Mas não o azul do céu, como se acreditava até recentemente, devido às alterações químicas da pigmentação, mas um azul-cobalto, que substitui o fundo dourado dos mosaicos de Palermo. Um azul que, em última análise, é um conceito para mergulhar em ideias do mais alto significado teológico: a Criação, o pecado original, a redenção do mundo, a disciplina moral do homem, o Juízo Final e a suprema bem-aventurança ou o castigo eterno.
 
Talvez o uso do azul por Giotto seja um eco inconsciente do que os gregos do período clássico chamavam de chroma, isto é, um remédio para a alma e o corpo; portanto, um Pharmakon, em seu duplo sentido, de veneno e de remédio curativo. Na Capela da Arena, o azul serve para transportar a cena para além do cotidiano por meio de um processo empírico em consonância com a filosofia indutiva de Guilherme de Occam. Isso confere aos afrescos da Capela da Arena um significado de época ao conceber, como escreve John White em seu estudo sobre o nascimento e o renascimento do espaço pictórico, novas articulações entre o espaço pictórico e a superfície das paredes de mármore.
 
A realidade teológica descoberta nos afrescos é fruto e produto do espírito indutivo. Para isso, Giotto tinha vastas áreas de paredes para cobrir com suas figuras, realçadas pelo movimento da nova vida da qual Dante falava naqueles anos. Assim, meditando sobre o que está por vir, ele transforma os antigos elementos da representação — rochas, árvores, construções, figuras — em elementos realistas necessários para desenvolver a peça de atores imersos em uma irrealidade discordante.
 
Às vezes, como no cortejo nupcial de Maria, o azul cria um espaço entre os músicos e os homens que a precedem e as mulheres que a seguem, que nunca se tocam. A figura de Maria em estado contemplativo demonstra uma sensação de distanciamento, como se convicta da passagem de Provérbios 8, 7-8: “Veritatem meditabitur guttur meum et labia mea detestabuntur impium” (Pela minha boca falará a verdade, e meus lábios abominarão a maldade).
 
Em outros momentos, esse mesmo azul nos permite compreender o efeito quase fantasmagórico do Encontro na porta de ouro, em que se experimenta o choque de cores tal como se apresenta aos olhos do espectador e lhe mostra os caminhos para a percepção da beleza; o observador é cativado por uma mulher que cobre metade do rosto com seu manto.
 
O mesmo ocorre na cena da Ressurreição de Lázaro: o azul distingue cada um dos presentes no milagre com seus tons onde gesto e cromatismo constituem uma experiência existencial única — ação e paixão, morte e ressurreição. Não é à toa que o renomado crítico de arte Cesare Gnudi afirmou que essa pintura é uma émouvante meditation acerca da realidade humana. Com o jogo de forma e cor (azul), as figuras modificam seus rostos. É aqui que começa a pintura moderna.
 
Seus discípulos, os Gaddi de Florença, os Lorenzetti de Siena, Spinello de Arezzo, Andrea Orcagna, Domenico Veneziano e Pucio Capanna, todos insistem em explorar as cores como uma experiência existencial, embora o pintor que melhor articula a função do azul seja Simone Martini, que mantém o ouro em A anunciação, mas se aproxima do azul no controverso afresco na Sala del Mapamundi, no Palazzo Publico de Siena, que retrata o condottiere Guidoriccio de Fogliano.
 
Após muito debate acalorado, concluiu-se que o fundo azul contra o qual ele retrata o comandante do exército de Siena tomando o castelo de Montemassi, em Maremma, em 1328, não é seu; permanece um mistério se Martini já havia escolhido dar esse passo de situar o azul como uma expressão etérea do universo, uma vez que o conceito de vazio sobre o qual repousa o retrato potencial do condottiere representa um exemplo altamente significativo do desejo de Giotto de impor o azul como fundamento da pintura moderna. Porque com o azul, abandonam-se os tons góticos e adota-se um cromatismo que facilita a perspectiva, com Massacio em primeiro plano, e mais tarde com Paolo Ucello e Piero della Francesca. Vitalidade prodigiosa. O azul de Giotto desempenhou um papel iniciático: foi uma terapia para a alma que levou ao Renascimento.
 
E então, no momento certo, em 1959, o neodadaísta Yves Klein, em uma palestra proferida na Sorbonne, foi tomado pelo espírito de Giotto após uma visita aos afrescos em Assis que retratam a vida de São Francisco e, sob a influência de O ar e os sonhos, de Gaston Bachelard, patenteou um azul intenso com o nome IKB (International Klein Blue) e o legitima ao afirmar que este azul não tem dimensões, enquanto outras cores têm. A ideia foi tão eficaz que logo as grandes casas de moda começaram a falar em azul Klein ou azul style. É por isso que, quando vemos uma blusa azul estilo Issey Miyake, tão plissada e prática, vemos não apenas o efeito estético adotado em Veneza no início do século XX por Mariano Fortuny e Henriette Negrin, mas também o legado daquele passado distante, o mundo das artes por volta de 1300, quando uma sociedade imbuída da ética franciscana contemplou o azul de Giotto pela primeira vez. 


* Este texto é a tradução livre de “El azul de Giotto o el nacimiento de la pintura moderna”, publicado aqui, em Jot Down.

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