O estranho caso dos poemas de Gullar que não chegaram à URSS
Por Rafael Bonavina
O grande poeta maranhense Ferreira
Gullar é um daqueles escritores que, apesar de sua obra importantíssima, ainda
se encontra praticamente não traduzida; só aqui e ali encontramos algumas
traduções de excelente qualidade. Porém, é preciso chamar a atenção para um
caso bastante peculiar em que alguns de seus poemas poderiam ter alcançado
outro idioma, mas morreram na praia, ou melhor, na neve. Para isso, começaremos
por uma breve explicação de como Gullar foi parar na União Soviética em plenos anos
1970.
Como sabemos, o poeta maranhense era
bastante incômodo para a Ditadura Militar por causa da sua atuação política, tanto
poética quanto militante; diga-se de passagem, que não se tratava de um ator de
segunda categoria, e sim de importância fundamental naquele momento. Por
exemplo, sua voz grave e impactante era muito requisitada para a narração de
filmes do Cinema Novo, como Maioria absoluta (1964), do diretor Leon
Hirszman, o que lhes emprestava também o peso cultural e político a essa
figura. A tensão entre Gullar e o regime continua crescendo ao longo da década
de 1960 até que a corda estoura, claro, do lado mais fraco, e o poeta engajado se
vê obrigado a sair do país e, para fazê-lo, recebe ajuda do Partido Comunista
do Brasil. Para isso, a jornada é longa, envolve um passaporte falsificado e
uma série de manobras com malas e fronteiras, mas, depois de muito aperto, finalmente
Gullar consegue passar por entre os dedos dos militares e chega à URSS, onde
passa a morar por um ano.
Verdade seja dita, Gullar não foi o
primeiro literato brasileiro a chegar às estepes russas, e não seria difícil
traçar uma origem até o século XIX, por exemplo, quando Aleksandr Púchkin,
poeta nacional russo, traduz um poema de Tomás Antônio Gonzaga do francês para
o russo.1 Além disso, no século XX, quase todos os leitores
soviéticos tiveram bastante contato com a obra de Jorge Amado, cujos romances
foram um grande sucesso na URSS, esgotando tiragens gigantescas de São Jorge
dos Ilhéus e Gabriela, cravo e canela. As revistas soviéticas
publicaram dezenas de notas, entrevistas e cartas trocadas com intelectuais
brasileiros, alguns deles até chegaram a ser convidados para visitar a União
Soviética e a registrar suas experiências (em geral ambígua, porém às vezes
significativamente negativa), como Pagu, Graciliano Ramos, Dinah Silveira de
Queiroz e mesmo o próprio Jorge Amado. Queremos deixar claro com isso, enfim,
que existem laços profundos entre o Brasil e a Rússia, tanto políticos quanto
culturais.
Como dissemos, então, Ferreira
Gullar é levado à URSS em busca de asilo político, e a leitura mais comum é que
ele de fato o encontra, mas é preciso olhar essa questão cum grano salis.
Quando o poeta chega, sua sensação não poderia ser de maior entusiasmo e
euforia, como se nota pelo que deixou registrado em sua autobiografia Rabo
de foguete: os anos de exílio.2
“Tinha a sensação de passar para uma
outra realidade, ou melhor, de uma realidade pouco consistente para a ficção:
aquele país, na minha cabeça, eram as histórias e personagens de Gogol e
Dostoievski, de Tolstoi e Checov, a que se somavam as figuras épicas de Lênin, Stalin
e Trótski, os poemas de Maiakovski e as audácias pictóricas e plásticas de Malevitch,
Tatlin e Rodchenko. À medida que o avião se aproximava do solo aumentava em mim
a sensação de que eu descia não num país como os outros mas numa outra dimensão
da realidade onde a tomada do Palácio de Inverno e a revolta do encouraçado
Potiômkin voltavam a ocorrer continuamente.” (Gullar, 2008, p. 52)
Os elementos usados por Gullar
compõem um esboço do que seria a URSS no imaginário de um intelectual
brasileiro daquele momento: Realismo Crítico do século XIX, ideário
revolucionário e as vanguardas russas. É interessante notar, aliás, a presença
da figura de Maiakóvski, tão significativo para a poesia brasileira da segunda
metade do XX, lado a lado com Stalin, o algoz das vanguardas. A coexistência
desses dois nomes parece uma contradição gigantesca e, se olharmos bem, talvez esse
curto-circuito ideológico também seja bastante significativo.
Apesar dessa aterrissagem cheia de expectativa,
o que vemos ao longo do relato de Gullar é um processo de desencanto com o
sonho da União Soviética, que, a meu ver, fica mais evidente ao chegarmos no
episódio dos Novos Urais. Depois de uma longa preparação para a visita, a
comitiva de latino-americanos finalmente chega ao local e se depara com uma
realidade muito diferente da que estava acostumada, vivendo em Moscou.
“Tratava-se na verdade de um povoado
com poucas ruas sem calçamento. O local onde nos hospedaram mais parecia um
decadente prédio de apartamentos do que um hotel, ainda assim, um prédio sui
generis pois os apartamentos, do segundo ao quinto andar, não tinham água encanada,
conseqüentemente não possuíam nem banheiro nem vaso sanitário. Tudo o que havia
ali era uma pia diminuta, com um pequeno depósito de água no alto; mal dava
para lavar o rosto e as mãos. Banho só descendo ao térreo, onde havia dois
chuveiros, um que servia aos homens, outro às mulheres. Para as demais
necessidades, tinha-se que atravessar a rua e penetrar numa espécie de telheiro
murado, onde estavam as latrinas cavadas no chão, sem tampa e tendo apenas em
volta um estrado ele madeira para a pessoa se apoiar. Também havia a divisão,
homens de um lado, mulheres de outro, mas só: entre as diferentes latrinas não
havia separação alguma, de modo que um defecava à vista do outro. Fiquei chocado,
não tanto com a pobreza mas com a incongruência de se erguer um prédio de cinco
andares sem poder provê-lo de água e dependências sanitárias. Depois me
explicaram que faltava à cidade uma elevatória.” (Gullar, 2008, p. 125-126)
Esse contraste entre o triunfo
socialista vendido pela propaganda oficial e a realidade dura e precária dos
trabalhadores dos rincões da URSS se torna ainda mais flagrante quando surge a
imagem de um teatro: “mal contive o espanto quando me deparei com um teatro
luxuoso e grande, capaz de conter talvez toda a população do povoado. Não era
fácil entender uma concepção de socialismo que deixava de calçar as ruas e
melhorar o fornecimento de água para gastar uma fortuna com um teatro de luxo”
(Gullar, 2008, p. 126). Nesse momento, o autor de Dentro da noite veloz
parece confessar a sua ruptura com a idealização da União Soviética que possuía
até então, embora seja importante levar em consideração que essas memórias
foram escritas a frio, e o relembrar sempre traz muito de construção a partir
do presente.
É claro que antes de chegar a essa
ruptura, Gullar passa por uma série de pequenas desilusões, como machadadas que
pouco a pouco derrubam um poderoso carvalho, mas enumerá-las todas exigiria
muito espaço e seria um pouco enfadonho, então preferimos apontar para o que
nos pareceu o golpe decisivo. A partir disso, podemos retomar nosso tema
central: os poemas que não foram traduzidos para o russo, o que pode parecer um
contrassenso, afinal a maioria dos poemas do mundo não foi traduzida para esse
idioma, mas há uma razão de esses poemas serem especiais.
Como nos conta em sua autobiografia,
Gullar conhece, em dado momento de sua estadia em Moscou, um editor da revista
soviética, a Literatura estrangeira (Иностранная литература), e
essa pessoa rapidamente se interessa pela estranha figura desse poeta
brasileiro, convidando-o a colaborar com o periódico com alguns poemas para
serem traduzidos e a resposta de uma espécie de ensaio-entrevista. E Ferreira
Gullar aceita esse convite, entrega todo o material.
O ensaio é publicado em russo pouco
depois, cujo título foi, na nossa tradução, “As tradições do Realismo e a
contemporaneidade (Notas de literatura e arte no Brasil)”. Embora não tenhamos
espaço para explorar profundamente o assunto, é bastante evidente a proximidade
desse texto com as ideias presente em Cultura posta em questão, texto
claramente baseado na ideia de uma literatura politicamente engajada e
socialista. Já os poemas nunca vieram à luz, e há nisso, a nosso ver, algo de
misterioso e instigante, mas cuja explicação, parcial, aparece no próprio Rabo
de foguete.
“Passados alguns dias, levei os
poemas e recebi o questionário para a entrevista, que saiu publicada dois meses
mais tarde. Já os poemas, não. Depois de algum tempo, Boris sentiu-se na
obrigação de me dar explicações. Disse-me que os havia encaminhado a uma
tradutora, a que melhor vertia poesia de língua portuguesa para o russo. Ela
teria se entusiasmado com os poemas mas adoecera gravemente e por isso passara
a tarefa a outra tradutora.
‘Esta’, disse Boris, ‘negou-se a
traduzi-los.’
— Negou-se, é?
— Vou ler para você a carta que ela
me enviou, expondo suas razões.
Na carta, a tradutora dizia que meus
poemas não eram marxista-leninistas e sim expressões da ideologia
pequeno-burguesa. Por isso, se sentia impedida de traduzi-los. Fiquei perplexo
com o que ouvia. Boris aduziu:
— Como não temos mais ninguém que
traduza poesia de língua portuguesa, somos obrigados a cancelar a publicação
dos seus poemas. É uma coisa lamentável, porque os considero excelentes.”
(Gullar, 2008, p. 94)
Como vemos, então, Boris tinha o
intuito de publicar os poemas de Gullar na Literatura estrangeira, e
certamente o convite não foi feito no escuro, sem algum conhecimento do estilo
do poeta. Surgem então diversos pontos de perplexidade.
Em primeiro lugar, um dos principais
veículos de difusão da literatura brasileira na União Soviética, a revista Literatura
estrangeira, só contava, segundo Gullar, com duas tradutoras de português.
A princípio, podemos pensar que o editor teria dado uma desculpa qualquer para
se desvencilhar da obrigação dos poemas, seja por não ter gostado do material
ou por algum outro problema, mas a prontidão com que apresenta o documento
justificando o posicionamento da tradutora nos faz pensar que, provavelmente,
não se trate de uma desculpa, e sim de uma impossibilidade. Como dissemos no
início, a língua portuguesa não encontra tanta penetração quanto o inglês ou o
francês, então é compreensível que haja poucos tradutores, principalmente ao
pensarmos em tradução de poesia. Ainda assim, seria possível levantar algumas
dúvidas em relação ao relato, por exemplo, seria um posicionamento da tradutora
pessoal ou oficial? Ou seja, a recusa em traduzir os poemas de Gullar não seria
uma espécie de censura realizada pela tradutora?
Essas dúvidas dão origem a mais um
problema, de que falamos rapidamente no começo do texto: ora, seria esse asilo
político tão acolhedor assim? Afinal, se houvesse uma plena liberdade artística
e política, não haveria qualquer razão para que se recusasse a tradução dos
poemas, exceto, talvez, a falta de apreço estético por determinado texto, o
excesso de trabalho ou algo assim. Porém não é isso que se nos apresenta, e sim
a recusa política dos poemas de Gullar como uma explicação do porquê não se
deve apresentá-lo ao público soviético.
Por fim, se a resposta para as últimas
perguntas parece óbvia — todos sabem que havia censura e perseguição política na
URSS —, ela não diminui a sensação de perplexidade, quase cômica para nós, que Ferreira
Gullar sentiu ao ver sua obra ser acusada de expressar a ideologia burguesa. E
nessa perplexidade se escondem dezenas de outras dúvidas, por exemplo, a
possibilidade de se produzir poesia livremente; a origem mesmo da poesia, se racional,
inconsciente ou ambas; e a que certamente se destaca entre as demais: o que
Gullar encontrou na carta dessa tradutora que recebera do editor? A averiguação
desse caso, principalmente de um ponto de vista interno ao processo editorial
da revista, daria base para uma pesquisa muito interessante acerca da estadia
de Gullar na URSS.
Com a triste partida de Ferreira
Gullar, não será mais possível transmitir essa pergunta a ele, e ainda que
pudéssemos, o caso aconteceu há cerca de meio século. Por mais que a memória de
Gullar fosse muito boa, provavelmente, os detalhes já teriam se perdido dentro
daquela noite veloz. Resta-nos apenas a esperança, ainda que ínfima, de
encontrar algum resquício nos arquivos russos que, felizmente, são muito bons. Se
a carta fosse encontrada, o que exigiria uma pesquisa séria de arquivo, talvez finalmente
poderíamos compreender os argumentos que tentam explicar o inexplicável caso do
poeta brasileiro que foge do seu país por ser comunista e, chegando no seu
asilo político, sofre com a censura de um país comunista. Se bem que, tirando a
questão de ser um poeta brasileiro, até que não era tão incomum assim.
Notas
1 Por muito tempo houve um debate acerca do original consultado por Púchkin, se francês ou brasileiro. Diversos intelectuais brasileiros, como Boris Schnaiderman, já tocaram no assunto e, por aqui, é mais consensual que a tradução tenha sido triangulada.
2 Há muito esgotada, Rabo de
foguete mereceu uma reedição pelo selo José Olympio, do grupo Record, em
2024. O livro pode ser adquirido aqui.
Referências
GULLAR, Ferreira. Rabo de foguete: os anos de exílio. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
Ferreira Gullar, 1965. Foto: França. Arquivo Correio da Manhã (Reprodução) |
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1 Por muito tempo houve um debate acerca do original consultado por Púchkin, se francês ou brasileiro. Diversos intelectuais brasileiros, como Boris Schnaiderman, já tocaram no assunto e, por aqui, é mais consensual que a tradução tenha sido triangulada.
GULLAR, Ferreira. Rabo de foguete: os anos de exílio. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
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