O estranho caso dos poemas de Gullar que não chegaram à URSS

Por Rafael Bonavina
 
Ferreira Gullar, 1965. Foto: França. Arquivo Correio da Manhã (Reprodução)


O grande poeta maranhense Ferreira Gullar é um daqueles escritores que, apesar de sua obra importantíssima, ainda se encontra praticamente não traduzida; só aqui e ali encontramos algumas traduções de excelente qualidade. Porém, é preciso chamar a atenção para um caso bastante peculiar em que alguns de seus poemas poderiam ter alcançado outro idioma, mas morreram na praia, ou melhor, na neve. Para isso, começaremos por uma breve explicação de como Gullar foi parar na União Soviética em plenos anos 1970.
 
Como sabemos, o poeta maranhense era bastante incômodo para a Ditadura Militar por causa da sua atuação política, tanto poética quanto militante; diga-se de passagem, que não se tratava de um ator de segunda categoria, e sim de importância fundamental naquele momento. Por exemplo, sua voz grave e impactante era muito requisitada para a narração de filmes do Cinema Novo, como Maioria absoluta (1964), do diretor Leon Hirszman, o que lhes emprestava também o peso cultural e político a essa figura. A tensão entre Gullar e o regime continua crescendo ao longo da década de 1960 até que a corda estoura, claro, do lado mais fraco, e o poeta engajado se vê obrigado a sair do país e, para fazê-lo, recebe ajuda do Partido Comunista do Brasil. Para isso, a jornada é longa, envolve um passaporte falsificado e uma série de manobras com malas e fronteiras, mas, depois de muito aperto, finalmente Gullar consegue passar por entre os dedos dos militares e chega à URSS, onde passa a morar por um ano.
 
Verdade seja dita, Gullar não foi o primeiro literato brasileiro a chegar às estepes russas, e não seria difícil traçar uma origem até o século XIX, por exemplo, quando Aleksandr Púchkin, poeta nacional russo, traduz um poema de Tomás Antônio Gonzaga do francês para o russo.1 Além disso, no século XX, quase todos os leitores soviéticos tiveram bastante contato com a obra de Jorge Amado, cujos romances foram um grande sucesso na URSS, esgotando tiragens gigantescas de São Jorge dos Ilhéus e Gabriela, cravo e canela. As revistas soviéticas publicaram dezenas de notas, entrevistas e cartas trocadas com intelectuais brasileiros, alguns deles até chegaram a ser convidados para visitar a União Soviética e a registrar suas experiências (em geral ambígua, porém às vezes significativamente negativa), como Pagu, Graciliano Ramos, Dinah Silveira de Queiroz e mesmo o próprio Jorge Amado. Queremos deixar claro com isso, enfim, que existem laços profundos entre o Brasil e a Rússia, tanto políticos quanto culturais.
 
Como dissemos, então, Ferreira Gullar é levado à URSS em busca de asilo político, e a leitura mais comum é que ele de fato o encontra, mas é preciso olhar essa questão cum grano salis. Quando o poeta chega, sua sensação não poderia ser de maior entusiasmo e euforia, como se nota pelo que deixou registrado em sua autobiografia Rabo de foguete: os anos de exílio.2
 
“Tinha a sensação de passar para uma outra realidade, ou melhor, de uma realidade pouco consistente para a ficção: aquele país, na minha cabeça, eram as histórias e personagens de Gogol e Dostoievski, de Tolstoi e Checov, a que se somavam as figuras épicas de Lênin, Stalin e Trótski, os poemas de Maiakovski e as audácias pictóricas e plásticas de Malevitch, Tatlin e Rodchenko. À medida que o avião se aproximava do solo aumentava em mim a sensação de que eu descia não num país como os outros mas numa outra dimensão da realidade onde a tomada do Palácio de Inverno e a revolta do encouraçado Potiômkin voltavam a ocorrer continuamente.” (Gullar, 2008, p. 52)
 
Os elementos usados por Gullar compõem um esboço do que seria a URSS no imaginário de um intelectual brasileiro daquele momento: Realismo Crítico do século XIX, ideário revolucionário e as vanguardas russas. É interessante notar, aliás, a presença da figura de Maiakóvski, tão significativo para a poesia brasileira da segunda metade do XX, lado a lado com Stalin, o algoz das vanguardas. A coexistência desses dois nomes parece uma contradição gigantesca e, se olharmos bem, talvez esse curto-circuito ideológico também seja bastante significativo.
 
Apesar dessa aterrissagem cheia de expectativa, o que vemos ao longo do relato de Gullar é um processo de desencanto com o sonho da União Soviética, que, a meu ver, fica mais evidente ao chegarmos no episódio dos Novos Urais. Depois de uma longa preparação para a visita, a comitiva de latino-americanos finalmente chega ao local e se depara com uma realidade muito diferente da que estava acostumada, vivendo em Moscou.
 
“Tratava-se na verdade de um povoado com poucas ruas sem calçamento. O local onde nos hospedaram mais parecia um decadente prédio de apartamentos do que um hotel, ainda assim, um prédio sui generis pois os apartamentos, do segundo ao quinto andar, não tinham água encanada, conseqüentemente não possuíam nem banheiro nem vaso sanitário. Tudo o que havia ali era uma pia diminuta, com um pequeno depósito de água no alto; mal dava para lavar o rosto e as mãos. Banho só descendo ao térreo, onde havia dois chuveiros, um que servia aos homens, outro às mulheres. Para as demais necessidades, tinha-se que atravessar a rua e penetrar numa espécie de telheiro murado, onde estavam as latrinas cavadas no chão, sem tampa e tendo apenas em volta um estrado ele madeira para a pessoa se apoiar. Também havia a divisão, homens de um lado, mulheres de outro, mas só: entre as diferentes latrinas não havia separação alguma, de modo que um defecava à vista do outro. Fiquei chocado, não tanto com a pobreza mas com a incongruência de se erguer um prédio de cinco andares sem poder provê-lo de água e dependências sanitárias. Depois me explicaram que faltava à cidade uma elevatória.” (Gullar, 2008, p. 125-126)
 
Esse contraste entre o triunfo socialista vendido pela propaganda oficial e a realidade dura e precária dos trabalhadores dos rincões da URSS se torna ainda mais flagrante quando surge a imagem de um teatro: “mal contive o espanto quando me deparei com um teatro luxuoso e grande, capaz de conter talvez toda a população do povoado. Não era fácil entender uma concepção de socialismo que deixava de calçar as ruas e melhorar o fornecimento de água para gastar uma fortuna com um teatro de luxo” (Gullar, 2008, p. 126). Nesse momento, o autor de Dentro da noite veloz parece confessar a sua ruptura com a idealização da União Soviética que possuía até então, embora seja importante levar em consideração que essas memórias foram escritas a frio, e o relembrar sempre traz muito de construção a partir do presente.
 
***
 
É claro que antes de chegar a essa ruptura, Gullar passa por uma série de pequenas desilusões, como machadadas que pouco a pouco derrubam um poderoso carvalho, mas enumerá-las todas exigiria muito espaço e seria um pouco enfadonho, então preferimos apontar para o que nos pareceu o golpe decisivo. A partir disso, podemos retomar nosso tema central: os poemas que não foram traduzidos para o russo, o que pode parecer um contrassenso, afinal a maioria dos poemas do mundo não foi traduzida para esse idioma, mas há uma razão de esses poemas serem especiais.
 
Como nos conta em sua autobiografia, Gullar conhece, em dado momento de sua estadia em Moscou, um editor da revista soviética, a Literatura estrangeira (Иностранная литература), e essa pessoa rapidamente se interessa pela estranha figura desse poeta brasileiro, convidando-o a colaborar com o periódico com alguns poemas para serem traduzidos e a resposta de uma espécie de ensaio-entrevista. E Ferreira Gullar aceita esse convite, entrega todo o material.
 
O ensaio é publicado em russo pouco depois, cujo título foi, na nossa tradução, “As tradições do Realismo e a contemporaneidade (Notas de literatura e arte no Brasil)”. Embora não tenhamos espaço para explorar profundamente o assunto, é bastante evidente a proximidade desse texto com as ideias presente em Cultura posta em questão, texto claramente baseado na ideia de uma literatura politicamente engajada e socialista. Já os poemas nunca vieram à luz, e há nisso, a nosso ver, algo de misterioso e instigante, mas cuja explicação, parcial, aparece no próprio Rabo de foguete.
 
“Passados alguns dias, levei os poemas e recebi o questionário para a entrevista, que saiu publicada dois meses mais tarde. Já os poemas, não. Depois de algum tempo, Boris sentiu-se na obrigação de me dar explicações. Disse-me que os havia encaminhado a uma tradutora, a que melhor vertia poesia de língua portuguesa para o russo. Ela teria se entusiasmado com os poemas mas adoecera gravemente e por isso passara a tarefa a outra tradutora.
 
‘Esta’, disse Boris, ‘negou-se a traduzi-los.’
 
— Negou-se, é?
 
— Vou ler para você a carta que ela me enviou, expondo suas razões.
 
Na carta, a tradutora dizia que meus poemas não eram marxista-leninistas e sim expressões da ideologia pequeno-burguesa. Por isso, se sentia impedida de traduzi-los. Fiquei perplexo com o que ouvia. Boris aduziu:
 
— Como não temos mais ninguém que traduza poesia de língua portuguesa, somos obrigados a cancelar a publicação dos seus poemas. É uma coisa lamentável, porque os considero excelentes.” (Gullar, 2008, p. 94)
 
Como vemos, então, Boris tinha o intuito de publicar os poemas de Gullar na Literatura estrangeira, e certamente o convite não foi feito no escuro, sem algum conhecimento do estilo do poeta. Surgem então diversos pontos de perplexidade.
 
Em primeiro lugar, um dos principais veículos de difusão da literatura brasileira na União Soviética, a revista Literatura estrangeira, só contava, segundo Gullar, com duas tradutoras de português. A princípio, podemos pensar que o editor teria dado uma desculpa qualquer para se desvencilhar da obrigação dos poemas, seja por não ter gostado do material ou por algum outro problema, mas a prontidão com que apresenta o documento justificando o posicionamento da tradutora nos faz pensar que, provavelmente, não se trate de uma desculpa, e sim de uma impossibilidade. Como dissemos no início, a língua portuguesa não encontra tanta penetração quanto o inglês ou o francês, então é compreensível que haja poucos tradutores, principalmente ao pensarmos em tradução de poesia. Ainda assim, seria possível levantar algumas dúvidas em relação ao relato, por exemplo, seria um posicionamento da tradutora pessoal ou oficial? Ou seja, a recusa em traduzir os poemas de Gullar não seria uma espécie de censura realizada pela tradutora?
 
Essas dúvidas dão origem a mais um problema, de que falamos rapidamente no começo do texto: ora, seria esse asilo político tão acolhedor assim? Afinal, se houvesse uma plena liberdade artística e política, não haveria qualquer razão para que se recusasse a tradução dos poemas, exceto, talvez, a falta de apreço estético por determinado texto, o excesso de trabalho ou algo assim. Porém não é isso que se nos apresenta, e sim a recusa política dos poemas de Gullar como uma explicação do porquê não se deve apresentá-lo ao público soviético.
 
Por fim, se a resposta para as últimas perguntas parece óbvia — todos sabem que havia censura e perseguição política na URSS —, ela não diminui a sensação de perplexidade, quase cômica para nós, que Ferreira Gullar sentiu ao ver sua obra ser acusada de expressar a ideologia burguesa. E nessa perplexidade se escondem dezenas de outras dúvidas, por exemplo, a possibilidade de se produzir poesia livremente; a origem mesmo da poesia, se racional, inconsciente ou ambas; e a que certamente se destaca entre as demais: o que Gullar encontrou na carta dessa tradutora que recebera do editor? A averiguação desse caso, principalmente de um ponto de vista interno ao processo editorial da revista, daria base para uma pesquisa muito interessante acerca da estadia de Gullar na URSS.
 
Com a triste partida de Ferreira Gullar, não será mais possível transmitir essa pergunta a ele, e ainda que pudéssemos, o caso aconteceu há cerca de meio século. Por mais que a memória de Gullar fosse muito boa, provavelmente, os detalhes já teriam se perdido dentro daquela noite veloz. Resta-nos apenas a esperança, ainda que ínfima, de encontrar algum resquício nos arquivos russos que, felizmente, são muito bons. Se a carta fosse encontrada, o que exigiria uma pesquisa séria de arquivo, talvez finalmente poderíamos compreender os argumentos que tentam explicar o inexplicável caso do poeta brasileiro que foge do seu país por ser comunista e, chegando no seu asilo político, sofre com a censura de um país comunista. Se bem que, tirando a questão de ser um poeta brasileiro, até que não era tão incomum assim.
 
Notas
1 Por muito tempo houve um debate acerca do original consultado por Púchkin, se francês ou brasileiro. Diversos intelectuais brasileiros, como Boris Schnaiderman, já tocaram no assunto e, por aqui, é mais consensual que a tradução tenha sido triangulada.
 
2 Há muito esgotada, Rabo de foguete mereceu uma reedição pelo selo José Olympio, do grupo Record, em 2024. O livro pode ser adquirido aqui
 
 
Referências
GULLAR, Ferreira. Rabo de foguete: os anos de exílio. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

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