Pensar a morte, escrever o abismo: leituras de Emil Cioran

Por Amanda Fievet Marques

Emil Cioran. Foto: Arnaud Baumann 


 
O filósofo romeno de expressão francesa, Emil Cioran, construiu uma obra marcada por um pensamento sem sistema, um pensamento deliberadamente fragmentário centrado nos limites da existência, na irremediabilidade da morte e na falência das construções metafísicas. Sua escrita, aforismática e corrosiva, recusa a retórica e rejeita qualquer lenitivo. Este ensaio propõe-se examinar algumas de suas reflexões sobre a morte, as vicissitudes da vida e a escrita, a partir de quatro obras: Lágrimas e santos (1937), Breviário de decomposição (1949), Silogismos da amargura (1952) e Esboços de vertigem (1979). A leitura parte da hipótese de que, em Cioran, a morte não é apenas um tema, mas uma força formal: ela estrutura a linguagem, impõe ritmo ao pensamento, corrompe a esperança e funda um estilo. Pensar a morte, para ele, é escrever contra a ilusão, e escrever, portanto, no abismo. Trata-se de um gesto que recusa a transcendência e encara a vida como erro, intervalo e fadiga.
 
I. Lágrimas e santos (1937)
 
Em Lágrimas e santos (1937), Cioran elabora uma visão da morte marcada pela tensão entre intensidade existencial e desencanto metafísico. A morte, para ele, só adquire sentido quando a vida foi vivida com paixão (cf. Cioran, 1986, p. 10). Lidar com a morte é assumir o medo, confrontar o terror que ela inspira (p. 14-15). Cioran rejeita tanto a serenidade da sabedoria antiga quanto a submissão cristã, considerando-as como formas de trapaça espiritual. Deseja uma morte orgulhosa, quase heroica, enfrentada a músculos tensos, que recuse a rendição passiva (p. 23). Ao criticar o distanciamento da ciência e da cultura, que abafam a consciência da finitude (p. 70-71), Cioran reafirma que só a meditação constante sobre a morte confere profundidade ao ser. Sugere que a morte é uma espécie de libertação do saber, não uma solução, mas um apagamento necessário (p. 75).
 
Em Lágrimas e santos, Cioran também traça uma visão da vida como oscilante entre o vazio e a ilusão necessária. Ele recusa qualquer busca de sentido objetivo para a vida, pois indagar se ela tem sentido é, para ele, apenas uma forma de perguntar, no limite, se ela é suportável (p. 20). A vida, desprovida de substância (p. 21 e 50), é apresentada como ondulação, pirueta, histeria, formas de movimento sem centro. Ele afirma que “só a vida existe, apesar do absoluto da morte” (p. 62),1 o que aponta para uma afirmação paradoxal da vida em sua própria precariedade. A leitura dos pessimistas o faz gostar mais da vida, talvez porque esta, como sonho, seja habitada por uma mistura de charme e terror à qual sucumbimos (p. 71). A linguagem de Cioran, convém dizer, é ondulante como o tema, marcada por imagens contraditórias (vida como sonho, como histeria, como resistência ao absoluto), uso de antíteses e ritmo aforístico. A forma é rapsódica, espelhando a inconsistência própria à vida.
 
Cioran pensa, enfim, a escrita, sobretudo a escrita poética, como intensidade e estremecimento estético desvinculado de Deus. Para ele, a poesia é mais radical que a santidade, pois porta “frissons sagrados sem Deus” (p. 31). O sagrado só interessa enquanto lirismo, jamais enquanto salvação (p. 42). A grandeza da escrita reside em sua capacidade de perturbar: os delírios do Rei Lear ou de Ivan Karamázov valem mais que toda a sabedoria (p. 46-47). Mas, ele mesmo se percebe fora da poesia e da filosofia, pois dotado de lucidez suficiente para ser condenado. Ou seja, com uma consciência crítica, sem transcendência nem lenitivo, que o impede de se perder na criação ou se proteger pela abstração. A escrita e a leitura são, desse ponto de vista, formas de lidar com o insuportável. Não se busca nelas o saber, mas esquecimento e dissolução do tédio existencial (p. 82).
 
Essas primeiras formulações em Lágrimas e santos revelam um Cioran ainda profundamente imerso nas tensões entre mística, lirismo e desencanto filosófico, onde a morte é pensada como experiência vertiginosa e a escrita, como meio de resistência sem redenção. Mas, é apenas mais tarde, em Breviário de decomposição (1949), que essas intuições ganham contornos mais densos, marcados por uma recusa ainda mais drástica de qualquer transcendência. A morte deixa de ser apenas um confronto necessário e passa a constituir a própria estrutura da consciência, presença irrefutável que permeia toda forma de vida, linguagem e pensamento.
 
II. Breviário de decomposição (1949)
 
Em Breviário de decomposição, Cioran aborda a morte não como evento terminal, mas como presença constitutiva da consciência. Saber que se morre, saber com toda a vitalidade que se morre, e não poder ocultar essa verdade, é, para ele, um ato de barbárie (cf., Cioran, 1949, p. 15). Há nisso uma ética invertida, o saber vital da morte torna-se uma violência contra a ilusão, uma lucidez que não dá trégua. A morte, para Cioran, não apenas encerra, ela delimita e distingue: “A morte é implacável; todas as razões estão do seu lado” (p. 17). Ela é, por definição, irrefutável. Mais do que isso, ela funda uma diferença insuperável entre tipos de humanidade (p. 18).
 
O pensamento da morte, porém, não se apazigua por meio de racionalizações ou esperanças. Cioran recusa essas estratégias e propõe um enfrentamento direto: “Para triunfar sobre esse apetite, há apenas um único ‘método’: é vivê-lo até o fim” (p. 19). O apetite de morrer deve ser vivido com plenitude, não evitado nem negado. Nesse horizonte, o suicídio emerge como possibilidade: “Mas há riqueza maior do que o suicídio que cada um carrega em si?” (p. 54). A simples consciência da possibilidade de se matar já constitui um bem, uma linha de fuga da existência.
 
Para Cioran, o suicídio é uma invenção humana, uma marca distintiva da espécie (p. 55). Paradoxalmente, é ao nos sabermos capazes de morrer por nossas próprias mãos que nos tornamos mais vivos, ou, ao menos, mais próximos da vertigem. Ainda assim, a maioria sobrevive: “cadáveres que se aceitam” (idem). Vivemos como quem adia uma resolução, sustentando uma existência cuja única finalidade parece ser o protelamento da própria extinção. A morte infiltra-se mesmo na beleza: “a Beleza é só a morte que se pavoneia nas flores que desabrocham” (p. 97). A primavera é, para ele, um desfile de carniças em seu esplendor. A fascinação pela morte, longe de ser apenas destrutiva, é também fonte de energia: “o contato com ela fortalece nossas forças” (p. 116). Há, nesse confronto, um duplo movimento de enriquecimento e aniquilação. Por fim, ela nos reduz ao dilema derradeiro, o recolhimento ascético ou o abandono dionisíaco: “o convento ou o cabaré” (p. 117).
 
Ainda em Breviário de decomposição, Cioran oferece uma meditação sobre a vida, concebida não como dádiva, mas como ruína em curso. A vida, para ele, surge do delírio e se desfaz no tédio (p. 22), sendo este último “a revelação do vazio” (p. 21-22), o momento em que se evidencia a falência da ficção que sustenta a existência. A vida, assim, não passa de um “estado de não-suicídio” (p. 29), suportado pela imaginação e pela memória, as únicas faculdades que impedem o colapso ante o absurdo. Cioran vê na existência uma maldição: “existir só tem um sentido: mergulhar no sofrimento” (ibid., p. 35).
 
Viver é sinônimo de sofrer, e a alma só cresce ou perece conforme a quantidade de insuportável que aguenta. A vida seria inconcebível sem as forças que a negam, e é na proximidade com o nada que ela adquire alguma pungência, mesmo que ilusória: “tudo o que se faz na terra emana de uma ilusão de plenitude no vazio” (p. 100). Há, por isso, uma recusa do universal e uma constatação do indivíduo como núcleo irredutível da solidão: “todo ser está necessariamente só pelo simples fato de ser um indivíduo” (p. 79). Ainda assim, a vida segue: como torpor, como “uma caricatura de um sol interior” (p. 75), como farsa que se salva por uma frase bem colocada (p. 109). Em última instância, viver é mentir e se mentir, pois a vida é “o romance da matéria” (p. 119), um embuste cujo sentido se esvai com os anos.
 
Cioran atribui à escrita, à poesia, uma função paradoxal. Ela não salva, mas também não trai. Ao contrário da filosofia, que tenta provar algo e fracassa em sua ambição racional, a poesia “tem — como a vida — a desculpa de não provar nada” (p. 27). Ela desvela o clima do inacabado, ela é divagação cosmogônica do vocabulário (p. 93), e permanece fiel ao “eu” sem se degradar em missão ou doutrina. Para Cioran, “a salvação é a morte do canto” (p. 41), e o poeta que busca redenção abandona sua própria verdade. A linguagem, em sua insuficiência, revela o vazio: “O artista que abandona seu poema […] prefigura o desarranjo do espírito descontente” (p. 112-113).
 
As palavras são indigentes, mas ainda assim nelas jaz o único lenitivo: “que ela [a vida] seja ao menos salva por um torneio verbal!” (p. 109). Essa salvação verbal, mínima e cínica, é tudo o que se espera da literatura. Não que ela transforme a vida, mas que a orne com frases nos momentos de crise. O efeito da escrita é sempre ambivalente, ela comove, mas permanece virtual, diferida, teatral. Só Nero teria consumado a literatura como real espetáculo incendiário, feito seus relatos com as cinzas de seus contemporâneos. Afora isso, se a vida é o romance da matéria, o escritor é seu falsário: “A mentira […] tal é a impostura do gênio e o segredo da arte” (p. 93). Além disso, a arte é uma forma de loucura. “A música, a loucura do silêncio!” (p. 36), diz Cioran. A escrita, nesse sentido, é apenas uma forma refinada de delírio, mas uma que, por não prometer redenção, ainda é um gesto legítimo.
 
Do embate entre delírio e lucidez que marca Breviário de decomposição, emerge um Cioran mais atento à degradação da vida, do tempo, do próprio pensamento. Em Silogismos da amargura (1952), ela ganha forma estilística. A fragmentação se intensifica, o sarcasmo se agudiza, e a morte vira rotina, não mais evento. A amargura, como o título anuncia, organiza o olhar e contamina a forma. Aqui, a obsessão pelo fim já não visa desestabilizar certezas. Ela é, paradoxalmente, só o que resta quando todas as certezas ruíram.
 
III. Silogismos da amargura (1952)
 
Em Silogismos da amargura, a morte não é apenas um tema, mas um princípio organizador da consciência e da escrita. Cioran investe nela como obsessão decantada, fonte de sarcasmo e lucidez. O livro inteiro é um exercício de convivência íntima com a ideia do fim, não como algo pontual, mas como atmosfera permanente. A morte, aqui, perde a solenidade. Ela é banalizada, ridicularizada, reciclada em frases curtas como estilhaços de uma metafísica implodida: “Nada nos lisonjeia tanto quanto a obsessão pela morte: a obsessão, e não a morte” (Cioran, 1987, p. 59). Essa distinção é central. Não se trata de morrer, mas de ruminar o impensável, fazer da morte um vício de linguagem e de espírito. Há, inclusive, um tom de cansaço: “Quanto mais envelheço, menos quero bancar meu Hamletzinho” (p. 61).
 
O patetismo do trágico já não seduz, então resta a ironia. Assim, o suicídio aparece de modo ambíguo, como possibilidade fundadora: “só continuo vivo porque tenho o poder de morrer…” (p. 74). Mas, também como figura esgotada, repetida, quase caricatural: “aposentado do suicídio” (p. 149). A vida só se sustenta porque a morte está à disposição. A linguagem filosófica, sugere Cioran, fracassa ante a morte. Mas há ainda quem tenha algo a dizer: “sobre esse tema [a morte], as interjeições de uma velha analfabeta nos iluminam mais do que o jargão de um filósofo” (p. 84). A morte não se conceitua, ela se encarna, escorre, se experimenta nas falhas do corpo, na química do sangue, nas agonias que já não produzem efeito. Em suma, Silogismos da amargura faz da morte não um fim, mas uma ferramenta, aquilo com que o pensamento fere, corta.
 
Em Silogismos da amargura, a vida é tratada com a mesma corrosividade que Cioran reserva à morte. Não como contraponto luminoso, mas como erro primordial, equívoco reiterado. Desde o início, ela surge não como dádiva, mas como uma armadilha de sentido. “O pessimista precisa inventar todo dia novas razões para existir” (p. 20), escreve Cioran, vendo no sentido da vida um impasse para os que enxergam demais. A vida, para ele, não é apenas uma ilusão metafísica, mas também uma falha estética: “falta de gosto que nem a morte, nem mesmo a poesia conseguem corrigir” (p. 27). Nenhuma sublimação, nem lírica, nem trágica, redime a vulgaridade essencial.
 
A matéria viva é suspeita, grotesca, e encontra seu espelho mais fiel no mundo dos insetos, criaturas que revelam a raiva e a inutilidade, verdadeiros emblemas da condição animada. A vida como ocupação de inseto (p. 89) sugere um automatismo cego, sem grandeza, sem direção. O que se apresenta como impulso vital é visto como uma farsa. O esperma é o bandido em estado puro (p. 151), a palavra “vida” é sintoma de doença (p. 52), o desejo utópico é a miragem de um bêbado desiludido (p. 139). Mas, há também um tipo de resistência silenciosa, quase cômica, na forma como Cioran se adapta à existência: “Mudei de desespero como quem troca de camisa” (p. 140). A vida, embora repulsiva, não é descartada. Ela é suportada, zombada. Mais do que celebrá-la ou condená-la, os Silogismos da amargura escarnecem da vida, e a ela sobrevivem.
 
Já a escrita, aqui, é menos um ofício que um sintoma. Para Cioran, ela não nasce do dom, mas da insuficiência, do desajuste, da vergonha: “As ‘fontes’ de um escritor são suas vergonhas” (p. 17). Escrever é uma forma de lidar com a ruína e, para Cioran, essa forma é uma ferida em sua origem: “Toda palavra me fere” (p. 15). A literatura, longe de ser um território de grandeza, aparece também como operação de superfície, um artifício para mascarar o vazio: “vestir o vazio, existir pela palavra” (ibid., p. 23). Nesse universo, o estilo não se associa a uma busca pela beleza ou pela verdade, mas é o que sobra quando já não se pode crer: “Onde há certezas, não há estilo” (p. 11). O cético, por não ter um chão onde repousar, agarra-se aos signos, refugia-se na obsessão verbal. O verbo torna-se então um vício, um câncer: “a literatura vive da pletora de vocábulos, do câncer da palavra” (p. 25).
 
A relação com a linguagem é sempre ambígua, entre o fascínio e o asco. Cioran despreza a verborragia, e declara que somos uma “raça de falastrões, de espermatozoides prolixos” (p. 21), mas reconhece, ainda assim, não poder escapar dela: “nós estamos quimicamente ligados à Palavra” (idem). A escrita é o ruído de quem não consegue calar, é o delírio de um organismo em crise. Por isso, talvez o modelo de estilo, para Cioran, seja o juramento, o telegrama, a epígrafe. Formas breves, quase extintas, onde a linguagem se aproxima de sua falência (p. 15). No fim, o autor é apenas “um escroque do Abismo” (p. 29). Alguém que ronda o abismo, furta-lhe alguns vestígios, e foge, pois sempre aquém da experiência que tenta traduzir.
 
Entre Silogismos da amargura (1952) e Esboços de vertigem (1979), há um intervalo de quase três décadas. Esse hiato temporal, contudo, não implica ruptura, mas amadurecimento de uma forma e de uma obsessão. O que era sarcasmo corrosivo se torna silêncio rarefeito. O estilo aforístico, já consolidado, depura-se ainda mais, convertendo a escrita em murmúrio, em vestígio. Se os Silogismos tratam a morte como atmosfera e método, os Esboços abordam-na como impasse e revelação, menos como um tema e mais como exaustão ontológica. A mesma desconfiança em relação à vida, ao sentido e à linguagem persiste, mas agora filtrada por uma lucidez mais cansada, menos explosiva. O riso dá lugar à vertigem. A morte deixa de ser apenas vício de espírito para tornar-se a dobra onde vida e pensamento se desfazem. Nesse percurso, Cioran não recua, e tudo se passa como se, ao fim de uma longa ruminação, restasse apenas a oscilação entre o grito e o suspiro.
 
IV. Esboços de vertigem (1979)
 
Em Esboços de vertigem, Cioran aborda a morte como um escândalo ontológico, uma revelação daquilo que a vida tenta constantemente ocultar, o absurdo da existência. A morte, longe de ser um evento natural ou sereno, é vivida como degradação, perda do estatuto de sujeito: “A morte, que desonra! Tornar-se de repente objeto…” (cf. Cioran, 1979, p. 29). E, ao mesmo tempo, como aquilo que corrige a anomalia que é viver. A morte é o retorno ao que seria o estado normal, ao passo que a vida se apresenta como desvio, aberração, intervalo entre dois nadas. Não há, porém, transcendência nessa consciência. O que Cioran oferece é uma filosofia do esvaziamento, onde o suicídio — “único ato realmente normal” (p. 66) — surge não como gesto desesperado, mas como possibilidade de lucidez.
 
A liberdade suprema consistiria na recusa voluntária de existir, ideia que ele retoma com um elogio à posição de Plínio, segundo o qual a faculdade de se matar é o maior dom concedido aos homens. Ao mesmo tempo, Cioran ironiza a patologização do suicídio, pois foi apenas por uma aberração cultural que esse gesto passou a ser “o apanágio dos desequilibrados” (idem). A vaidade, contudo, funciona como obstáculo a essa lucidez. Nos momentos que antecedem a morte, o homem se agarra a trivialidades, fingindo não saber o que escondem: “ilude-se o vazio com algo ainda mais vazio” (p. 59).
 
A consciência da morte nos força a uma espécie de sinceridade brutal. Por isso mesmo, nos momentos em que despreza a morte, o sujeito se engrandece artificialmente. Mas, quando se a encara com medo e fraqueza, paradoxalmente, torna-se mais verdadeiro. Não há saída discursiva, dizer que a morte é o fim da vida soa tão banal quanto inevitável. Ainda assim, é o único enunciado que resta, “mas, o que dizer além disso?” (p. 104). Se a vida é feita de engodos e discursos, a morte é o único dado sólido, “o que a vida inventou de mais sólido até agora” (p. 121). Mas, até esse sólido se dissolve, pois a percepção do vazio mina também a consistência da morte. Por que ela, afinal, teria mais realidade que o resto? Se nada é real, tampouco a morte o é. Cioran gira em torno da morte como quem contorna um centro de gravidade irredutível. Ela é, ao mesmo tempo, a única verdade e a maior impostura. Persistimos em viver, em adiar esse fim, porque seu mistério ainda nos é útil. Sem ele, a vida perderia até mesmo o traço residual de sentido.
 
 Em Esboços de vertigem, a vida é tratada, por Cioran, com desconfiança. Longe de ser celebrada como milagre, ela é vista como “uma estripulia, uma fantasia dos elementos, um capricho passageiro da matéria” (p. 69). Há nela um desajuste essencial. Viver é desequilibrar-se, afastar-se do ponto de repouso que a morte encarna. Por isso, vida e desequilíbrio tornam-se sinônimos perfeitos. Essa desconfiança se traduz em uma relação ambígua com o próprio viver. Cioran define sua existência como um “terror perpétuo ante os dogmas” (p. 44), ou seja, não apenas como medo dos sistemas consolidados, mas inclusive dos nascentes.
 
A vida não é enfrentamento do mundo, mas desgaste frente a ele: “luto contra uma força maior, contra meu cansaço do mundo” (p. 49). Viver, para ele, é suportar a duração, não porque ela seja densa, mas porque é repleta de vazio, um nada consternador que anima momentaneamente a matéria e desaparece com ela, deixando perplexidade. A vida é, antes de tudo, um espetáculo absurdo montado por si mesma e para si mesma: “Que teatro é o sopro!” (p. 57). No entanto, essa consciência não impede certo apego ambíguo. A vida, mesmo em sua forma mais cruel, pode ser individuada a ponto de se tornar suportável: “minha vida foi um inferno, meu inferno, um inferno a meu gosto” (p. 64). Há aqui um sarcasmo lúcido, que reconhece no próprio sofrimento uma espécie de escolha estilística. Porque, apesar de tudo, o maior obstáculo à morte não é o medo, mas a familiaridade: “O apego à vida, essa é a questão. Pois a vida é um vício” (p. 85). O tédio, nesse contexto, surge como lente de avaliação existencial. Ele não empobrece a vida, mas permite entrever seu valor, ou a falta dele. Cioran afirma que é sob o domínio invisível do tédio que tudo se revela insignificante. Viver, portanto, é manter-se nesse fluxo entre o insignificante e o irremediável, entre o vício de estar vivo e a lucidez de saber que não se deveria estar.
 
A escrita, para Cioran, em Esboços de vertigem, não é um ato de transmissão, mas de combustão. O autor não escreve porque tem algo a dizer, mas porque sente um impulso de dizer, um movimento visceral, anterior a qualquer conteúdo. A linguagem, longe de ser veículo de clareza ou de felicidade, é experimentada como inadequação. Um “descaramento sobrenatural” (p. 61) é necessário para persistir nas palavras quando se conhece sua nulidade. E mesmo quando se consegue dizer algo, o que se escreve é sempre fragmentário, nascido de extremos: “no ponto mais alto ou mais baixo de si mesmo” (p. 73). Nesse contexto, o fragmento e o aforismo não são escolhas arbitrárias, mas formas honestas, pois refletem a impossibilidade de apreender o real de modo contínuo. No aforismo, o verbo se torna absoluto, Deus não como ente, mas como intensidade linguística: “Mais ainda do que no poema, é no aforismo que a palavra é deus” (p. 110). Ao contrário do livro “leve” (p. 113), que sufoca por sua leveza, o bom livro é aquele que fere, interroga, desnorteia.
 
Escrever é provocar, remexer feridas ou criá-las. A recusa da linearidade, do didatismo e da clareza proposital está ligada ao valor do inacabado e da opacidade como modos de manter vivo o enigma. O estilo sincopado, os silêncios, a elipse e o balbucio têm mais força que o discurso articulado. A escrita deve nascer de uma espécie de frenesi ou iluminação, onde o eu se desfigura e se abre à possibilidade de dizer o indizível. Por fim, para Cioran, escrever não é elaborar um sistema ou eternizar ideias, mas anotar sensações (p. 92). A escrita verdadeira, se há uma, não se alça à pretensão de ser bem-sucedida nem à ilusão de comunicar algo pleno. O que conta é o que não cabe na palavra.
 
Notas
1 Esta e todas as traduções no restante do texto são nossas.
 
Referências
CIORAN, Emil. Des larmes et des saints. Traduction et postface de Sandra Stolojan. Paris: Éditions de l’Herne, 1986.
CIORAN, Emil. Ébauches de vertige. Paris: Gallimard, 1979.
CIORAN, Emil. Précis de décomposition. Paris: Gallimard, 1949.
CIORAN, Emil. Syllogismes de l’amertume. Paris: Gallimard, 1987.
 

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