Walter Benjamin: fragmentos de uma biblioteca

Por Georgina Cebey



 
Certa tarde de 1933, a fotógrafa judia Gisèle Freund deixou sua casa na Alemanha. Pegou um trem com destino à França; entre os seus poucos pertences, os dois mais importantes eram sua câmera e uma carta de aceite da Sorbonne, onde continuaria seus estudos em sociologia. Apesar de ter conhecidos na cidade, Freund passava as tardes na Biblioteca Nacional de Paris, um lugar que se tornou o seu predileto para estudar, mas também uma espécie de suposto lar. Desse lugar, a fotógrafa relembrava em Le Monde et ma caméra (trad. livre O mundo na minha câmera):
 
“A sala de leitura, muito maior, era coberta por uma cúpula de vidro através da qual se filtrava uma luz difusa e acinzentada. A maioria dos leitores eram frequentadores assíduos de longa data. Cientistas, pesquisadores, jornalistas e monges eruditos compartilhavam mesa com deputados que ali iam preparar seus discursos. O ar exalava a poeira e a um desinfetante adocicado que um guarda ocasionalmente borrifava. Todos trabalhavam em grande silêncio.”¹
 
Nessa biblioteca, conheceu o filósofo alemão Walter Benjamin, com quem passou a jogar xadrez em um café próximo após o fechamento da biblioteca. Em 1937, ela o fotografou nesse espaço de estantes empoeiradas onde o filósofo trabalhava. É uma foto em preto-e-branco que define claramente um contexto de trabalho. Benjamin está em primeiro plano, com estantes numeradas e outras duas pessoas trabalhando ao fundo.
 
É provável que o filósofo não tivesse consciência da presença da câmera, pois na imagem bem concentrado em algo, talvez em uma de suas fichas, alguma anotação que mais tarde seria incorporada à sua constelação de ideias, esse mapa de um pensamento fragmentado e complexo. Suas mãos estão ocupadas, uma segurando uma caneta e a outra apoiando a página; seus óculos e o bigode característico são visíveis em seu rosto, mas seu olhar está perdido: “Ele era o que os franceses chamam de un triste. [...] Considerava um melancólico”, observa Susan Sontag.2
 
A fotografia não permite ver claramente os títulos dos livros com os quais Benjamin trabalha; no entanto, a imagem revela a ideia construída por aqueles que escreveram sobre o filósofo: sua obstinação ou compulsão em transferir a frase do livro para a ficha. No retrato, podem ser vistos todos os conceitos fundamentais do intelectual, esses sobre os quais ele constantemente apontava: carta, biblioteca, livro, ficha, arquivo, texto, laboratório, nota, tempo, transitoriedade.



Outra das fotografias mostra o filósofo compartilhando a mesa de trabalho, algo comum em uma biblioteca pública, mas que não anula o caráter evocativo da companhia. As maiores mentes da época trabalharam nessa biblioteca, uma delas foi Sigfried Giedion, historiador da arquitetura suíço, que já havia trocado cartas com Benjamin sobre o livro que escreveu em 1928, Bauen in Frankreich, Bauen in Eisen, Bauen in Eisenbeton (trad. livre Construir na França, construir em ferro, construir em ferroconcreto).
 
E a respeito do livro de Giedion, Benjamin registrou em uma de suas cartas (reproduzida na introdução feita por Sokratis Georgiadis para a edição de língua inglesa do livro de Giedion) uma premonição pelo que parece o entusiasmava na arquitetura: o conhecimento prévio de algo, mesmo antes de ter contato com isso, tornava as experiências significativas, e ele citava um livro como exemplo. A mesma ideia assombraria o filósofo anos depois, quando colecionava notas sobre suas viagens pelas passagens francesas.
 
O gosto do filósofo por livros explica suas longas estadias em bibliotecas. Benjamin mantinha uma relação complexa com esses objetos; era colecionador de exemplares raros e sabe-se que frequentava leilões de livros. Ao se referir à sua coleção, observava que “posses e bens estão relacionados à estratégia”. Talvez com essa frase explicasse por que, devido às suas circunstâncias pessoais e à impossibilidade de manter-se próximo de sua biblioteca, viajava com alguns livros na mala.
 
Por essa razão também, o filósofo colecionava notas ou citações sobre coisas importantes. Seus cadernos, que após sua morte seriam publicados em livro com o título de Passagens, constituem uma coleção de anotações e reflexões sobre frases interessantes, mas também são o vestígio de uma biblioteca que não podia viajar com o autor. Para Susan Sontag, em Sob o signo de saturno, o exercício de Benjamin consistia em tornar os fragmentos portáteis:
 
“Miniaturizar é tornar portátil — a forma ideal de possuir coisas, para um errante ou um refugiado. Benjamin, é claro, era tanto um errante, em trânsito, como um colecionador, sobrecarregado por coisas; ou seja, de paixões. Miniaturizar é esconder. Ele era atraído pelo extremamente pequeno, como por tudo o que havia decifrado: emblemas, anagramas, caligrafia.”
 
Para Gisèle Freund, a fotografia deveria capturar a consciência do indivíduo, razão pela qual os retratos que fazia de escritores não eram encenados com poses estudadas. Ao contrário, a fotógrafa buscava ambientes de trabalho onde os retratados se sentissem confortáveis ​​e familiarizados, mas também onde ocorria o fluxo da consciência do fotografado. Talvez seja por isso que a fotografia de Walter Benjamin na Biblioteca de Paris seja tão hipnótica.
 
Ter uma edição das Passagens e ler alguns trechos aleatoriamente é uma forma de compreender como o universo benjaminiano se estrutura, um tanto caótico, mas sempre destacando a lucidez e a profundidade oculta de um conceito.



 
Notas da tradução
1 A tradução é livre a partir do original em língua espanhola. O livro de Gisèle Freund está traduzido em língua espanhola: El mundo y mi câmara (Ariel, 2008). Desconhecemos a tradução desta e de outras obras de Freund no Brasil até agora.
 
2 A passagem é de Sob o signo de Saturno; esta e seguinte são da tradução de Rubens Figueiredo (Companhia das Letras, 2022). 


* Este texto é tradução livre de “Walter Benjamin: fragmentos de una biblioteca”, publicado aqui, em Letras Libres.

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