Sem perdão por amar

Por Júlia Fernandes de Oliveira
 
Todos os que já chegaram à vida adulta já experimentaram a desilusão e as penas do fim de uma relação amorosa em que investiram o melhor de si. Esse é o tema dos dez contos que compõem o mais recente livro do escritor mineiro Adriano de Paula Rabelo, que acaba de ser publicado pela editora Minotauro, selo do grupo Alta Books. Impressiona a variedade das formas de seus textos, bem como a maneira envolvente como são escritos. Explorando diversas facetas dessa temática, Rabelo conduz o leitor por amores juvenis e maduros, hétero e homoafetivos, tradicionais e modernos, profundos e superficiais.
 
A escrita é ágil e reflexiva. Os personagens são complexos, às vezes engraçados, muitas vezes tristes, sempre frágeis como somos todos nós. A atmosfera é cativante, mesmo quando o autor expõe a violência e o patético de tantas rupturas amorosas. As formas dos textos variam bastante, como já se observou, indo de minicontos enfeixados numa série, passando por uma montagem com uma sequência de mensagens trocadas por um casal pelo celular, até pequenos capítulos que contam os estágios de um relacionamento do começo ao fim.
 
O título do livro remete a um verso de Dante na Divina Comédia, obra máxima da poesia ocidental, modelo tanto da mais alta literatura quanto das mais elevadas expressões do amor. A ironia de Adriano de Paula Rabelo já se faz presente nesse título, pois os amores que retratará, em conformidade com o rebaixamento do amor na vida repetitiva e burocrática que vivemos na contemporaneidade, agravados pelo individualismo moderno, são amores fugazes, pequenos, cotidianos e quase despretensiosos. É como se, em nossa era pós-utópica, marcada pelo exibicionismo dos elementos mais comezinhos do nosso dia a dia, pelo presente eterno em que estamos presos, tivéssemos perdido até mesmo os nossos projetos de longo prazo. Apesar da ironia, ou exatamente por causa dela, o título exprime com perfeição o espírito da nossa época, quando tantas pessoas desprezam o amor ao mesmo tempo em que anseiam por ele.
 
O primeiro conto do livro, intitulado “Penicilina”, já provoca um misto de ternura e horror. Ternura pela pureza de um amor adolescente cheio de sonhos e ilusões típicas dessa fase da vida. Horror pelo que ele foi reduzido depois de os amantes se separarem e passarem muitos anos vivendo em cidades diferentes. Quando se reencontram, ambos só têm a compartilhar o fracasso de seus projetos de vida e uma doença venérea que um acha que pegou de outro.



“Domingo, no fundo”, delicado e poético, mostra um reencontro imaginário de uma senhora de meia-idade, esposa e mãe, que, sozinha em casa, recebe a visita imaginária do marido, quando ele estava no fim da adolescência, e eles se amavam com mais intensidade. A história termina com um enigmático choro da protagonista, que pode expressar felicidade, frustração, culminação de um amor, seu declínio, realização profissional e pessoal, falta de algo mais essencial... ou tudo isso junto.
 
Em “A mulher inconsútil”, acompanhamos o relacionamento de um médico muito respeitado e uma mulher robô que ele encomendou a uma empresa japonesa. É uma história engraçada que realiza uma quebra na atmosfera triste da maioria das histórias contadas no livro. O mesmo ocorre com “Pequenos amores”, uma coleção de minicontos nos quais ressalta a ironia ferina do autor, que muitas vezes chega a ser cruel com seus personagens.
 
Em “Conversas protegidas”, compartilhamos o segredo de um homem que, após a morte da esposa, descobre que ela tinha um amante, vindo a conversar com ele por meio de uma troca de mensagens pelo telefone celular dela, na busca de uma compreensão do se passou em seu casamento, que ele tinha na conta bem-sucedido e feliz.
 
Em “Para sempre”, somos postos diante de uma audiência para a realização de um divórcio litigioso do qual ambos os ex-cônjuges saem com a sensação de haverem perdido a causa. A vida, quase sempre atroz, pregou-lhes uma boa peça.




 
“Cacos recolhidos” narra, com muita habilidade, uma história de amor pela simples justaposição de mensagens trocadas pelos amantes em seu celular. “Rastros de luz” também retrata esse grande mediador de nossas relações nos dias de hoje, mostrando com ironia o malogro das relações de uma moça chamada Letícia a partir dos aplicativos de relacionamento que ela utiliza para encontrar seus amores invariavelmente efêmeros. “Sete meses” expõe o surgimento, o desenvolvimento e o fim de um amor que começou num curso de inglês, com a irresponsabilidade afetiva de um homem que decide desaparecer sem explicações, o que hoje, por ser bastante comum, recebeu até um nome: ghosting.
 
A ironia do autor atinge o cume no último texto, em que ele a dispara contra si mesmo, ou talvez contra seu narrador, misturando ficção e realidade, chegando a reproduzir um excerto de seu diário, que não sabemos se é real ou inventado, a fim de criticar a própria escrita. Não bastasse a perplexidade do leitor com as mais variadas peças que a vida prega aos personagens de Rabelo, bem como a todos nós aqui, fora da ficção, fechamos o livro impressionados com o inusitado desse texto final. E saímos desse livro refletindo sobre nossos equívocos e nossas penas de amor. De fato, “a nenhum amado amar perdoa”.
 

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A nenhum amado amar perdoa
Adriano de Paula Rabelo
Editora: Minotauro, 2025
133 páginas
 
 
 * Júlia Fernandes de Oliveira é doutora em Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista  (Unesp - Araraquara); é professora de Literatura no Ensino Médio. 
 

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