A forja de Eneias
Por Juliano Pedro Siqueira
“A sorte favorece os destemidos.”
— Virgílio, 70 a.C-19 a.C
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Giacomo del Po. A luta entre Eneias e o rei Turno. |
A Eneida é considerada um dos épicos fundadores da cultura ocidental, tanto por sua urgente relevância histórica quanto por sua brilhante narrativa poética. Ao longo do tempo, tem servido de inspiração a vários autores, os quais bebem das suas límpidas e inesgotáveis fontes. Com este poema, Virgílio legou à humanidade uma notável epopeia. Assim como Homero concebeu Odisseu — narrando sua incansável batalha no regresso à Ítaca —, o poeta romano, por sua vez, deu vida ao herói Eneias, o guerreiro forjado pela fúria dos deuses e pelas ciladas perpetradas por ardis tiranos que segue firme na obstinada missão de apossar das plagas que viria ser o novo reino entregue aos descendentes de Ascânio.
Eneias é tomado por grandes virtudes. Na sua peregrinação infernal — que inclui a travessia do Estige ao encontro do velho pai Anquises —, perpassa por convulsivos mares e sombrios bosques. Essas aventuras lapidam sua personalidade, tornando-o uma espécie de arquétipo da coragem. Em terra cartaginesa, esbarra no coração deletério de Elissa de Tiro (Dido), que após exasperar-se de paixão e sentir-se desprezada pelo troiano, evoca sobre sua tropa, terríveis maldições. Eneias resiste-lhe à volúpia e à sedução emanadas dos melífluos lábios da desolada amante; segue desperto para sua única e exclusiva missão: embarcar sua tropa fugidia rumo as cobiçadas Hespérias.
Lembremos que Eneias é um réprobo humilhado, contrito pelas ruínas fumegantes de Tróia, massacrado pela perda da amada Creusa; restando-lhe como fruto deste amor, o primogênito Ascânio. O herói testemunhou ainda a desgraça acometida sobre Príamo e Hécuba, conterrâneos considerados membros de sua família. Mesmo cingido por tragédias — sendo provado por inúmeras adversidades —, ele se mantém confiante, o que fortalece seu indelével caráter. Virgílio construiu um herói cuja lealdade à promessa de fundar um novo país, não o permitiu furtar-se da árdua tarefa, comportando-se como impávido soldado. Exílio, luto, nostalgias, frustrações, Eneida é o tipo de narrativa que expõe as contingências da vida de forma visceral, ensinando-nos que mesmo diante de forças desconhecidas, o homem valer-se-á das próprias escolhas, na busca de maiores triunfos.
A coragem de Eneias pode ser traduzida em resiliência, uma vez se permitir a renunciar distrações e prazeres momentâneos, ofertados por anfitriões estrangeiros durante sua saga; navegar em busca dos próprios domínios, mesmo que tais promessas existissem apenas no plano das profecias e do onírico; demonstrou sua intrepidez no palácio de Latino — com o qual estabeleceu imprescindível aliança e ainda desposou sua bela filha, Lavínia. Em nenhum momento seu espírito se detém por certos caprichos e hospitalidades, concentrando sua energia na conquista das paragens itálicas.
Apesar de encontrar no seio de Lavínia as delícias de um novo amor, falta a Eneias seu maior tento: a conquista definitiva do reinado que perpetuaria sua descendência. Em razão da união com Lavínia, o herói viria despertar o ódio dos rútulos, na figura do rei Turno, que reivindicava o amor da mesma mulher, outrora prometida por seu pai Latino. Sinais e providências seguem os passos do incansável guerreiro troiano — que mesmo em face da fúria incontida da deusa Juno —, encontra refúgios provisórios em reinados que lhe garantem ancoragem, sustento, alianças e decisivas profecias; sem as quais seria impossível cruzar violentos mares.
Foi incumbido a Públio Virgílio Maro, um desafio colossal, talvez inviável, diante da débil saúde. Compor uma dispendiosa epopeia, tendo como narrativa a triunfante gênese de Roma, tornando-a marco da literatura do mundo Antigo. Para Virgílio, significaria propor — ao lado de Homero — um legado atemporal, sobrevivendo às infindáveis guerras e aos avanços civilizatórios. Sob a exaustão e certo ceticismo, o agônico poeta desejava que sua obra-prima resplandecesse como luzes cintilantes a história do povo romano.
Reza a lenda que no declínio da enfermidade, o poeta teria renegado Eneida, que seria sua maior criação. Em possível delírio, desejou destruí-la, tendo o pedido recusado por César Augusto, seu apreciador incondicional. As razões pelas quais o poeta relutou por sua publicação é o tema central do romance A morte de Virgílio do escritor austríaco Hermann Broch. Este romance concentra-se nas últimas horas de vida do poeta, quando chegou à cidade portuária de Brundísio, assombrado por inquietações existenciais e hesitante em relação a própria obra. O drama vivido pelo poeta latino, não deixa de refletir o exílio sofrido pelo próprio Broch — em decorrência da ocupação nazista — estabelecendo assim, uma intensa discussão filosófica na relação ambígua entre o artista e sua obra.
Cercado por conflitos, Virgílio não poderia imaginar que seu herói Eneias alçaria voos tão longínquos; do exílio e da humilhação perante os gregos à imortalização nos anais da literatura. Do aguerrido troiano, que ileso saiu de várias batalhas (divinas e terrenas), para reivindicar sobre si, a árdua e nobre tarefa da fundação de Roma. Eneida propiciou — através da persona de Eneias —, profícua análise da natureza humana, facilmente identificável por sua inabalável temperança. Sempre atento aos desdobramentos e conflitos de seu tempo, Eneias não negligenciou seu propósito: proteger seu filho Ascânio, reservando-lhe um reino seguro, o qual pudesse vingar sua estirpe.
Eneias é grandioso e superior às adversidades e às dores que o afligem, desenvolvendo valores, habilidades e sensibilidades ora ratificados por intermédio de oráculos e profecias. Não menos importante, se vale da sabedoria e conselhos que muitas vezes absolve nas revelações divinas, garantindo-lhe a esquiva de todas as conspirações malignas que o cerca. É válido e justo destacar sua tropa, formada por inabaláveis e leais séquitos, que se mantêm fiéis ao comandante; mesmo testemunhando incontáveis perdas, somadas por carnificinas, maremotos, lutos, solidões e privações.
Eneias é símbolo da resistência, servindo para aos seus valentes homens, como inabalável fortaleza. É sua firmeza de caráter que alimenta a esperança dos devotos homens que juram a máxima fidelidade ao líder troiano. É impressionante o grau de lealdade daqueles valorosos homens, que labutam ao lado do seu herói, vindo sonhar o sonho de seu senhor, sem que a tentação da usurpação e a covardia, envenenem seus corações.
As dores do mundo é uma forma legítima de levar o homem a suportar os próprios infortúnios, de provar, verdadeiramente, seu real valor. Não apenas da força advinda das falácias ou dos braços ágeis, mas da junção entre equilíbrio interior e coragem, construindo um forte elo para o enfrentamento da vida. No limiar da dor, da fadiga, dos pensamentos confusos e do terror paralisante, nasce o vigor que transcende todas as circunstâncias adversas. Através da saga de Eneias presenciamos lições perenes, que dificilmente seriam absolvidas em períodos de bonança e paz entre as nações. A conquista da Itália — que seria erguida em solo estrangeiro — custa a Eneias e a seus fiéis homens, duros aprendizados, como quem é lançado à fornalha e dela forjado feito resistente metal; nação que nasceu do sangue, da disputa dos deuses, e acima de tudo, do esforço brutal de tropas que se digladiavam ferozmente no intuito de fazer valer a obstinada realização dos troianos.
Eneias cultiva em seu íntimo, virtudes e valores inegociáveis, forjando, assim, seu nobre caráter; é prova cabal de que a maior guerra que um homem pode travar é contra si. Ameaçado por deuses enciumados, que disputam interesses distintos, o herói não deixa abalar, mantém-se em riste, como sua espada manchada de sangue, contra ferrenhos inimigos. O estabelecimento em Roma foi apenas a reta final da egrégia conquista celebrada ao lado do filho Ascânio e seus séquitos guerreiros. Eneias tornou-se a lenda retumbante que é, por ter sido lapidado pelos mais terríveis infortúnios, que o assombrava desde o expurgo de Tróia.
O troiano não tem o de um herói presunçoso como Aquiles, que confia desmedidamente na força física e na destreza de inflamadas faláricas. Eneias faz valer da sabedoria que duramente adquiriu quando esteve submerso na própria miséria. É um homem que acredita nas habilidades militares das suas tropas, mas não despreza a paz emanada do éter, que germina em seu íntimo. Menos ainda, ignora as oportunidades de estabelecer importantes pactos com próceres reis. O troiano detém na alma uma cativante confiança, a ponto de atrair famigeradas figuras que se aliam às suas demandas bélicas; fornecendo para si, não apenas frotas inteiras, como também, o próprio filho. Assim o fez Evandro, rei de Palatino — talvez a aliança mais decisiva —, que na guerra entre latinos e rútulos — como voto de lealdade à aliança selada —, enviou seu filho Palante para guerrear ao lado das tropas de Eneias, a fim de salvar Ascânio das investidas dos selvagens rútulos. Palante, o filho amado de Evandro, veio sucumbir à espada impiedosa de Turno, em nome da lealdade a Enéias.
Virgílio nos garantiu muito mais que uma epopeia que narrasse a aventurada peregrinação de Eneias na posse de terras itálicas. Moldou pela eternidade, um exímio guerreiro forjado pela dor, coroado por sua inigualável valentia, sacrificando-se, não em nome da própria glória, mas sim, para garantir a imortalidade histórica de uma nova nação.
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