Heliogábalo, a peça inédita de Jean Genet

Por Amanda Fievet Marques


Jean Genet. Foto: Tony Davis



Publicada em 4 de abril de 2024 pela Gallimard na Collection Blanche, a peça inédita do escritor francês, Jean Genet, Heliogábalo, escrita em 1942 durante sua prisão em Fresnes, na França, e encontrada recentemente em uma biblioteca de Harvard, acaba de sair no Brasil pela editora Ercolano, com tradução de Régis Mikail e Renato Forin Jr. A peça em quatro atos trabalha fatos históricos urdindo-os à ficção, e reimagina a vida e o assassinato do imperador romano Heliogábalo (203 d. C. – 222 d. C.). 

***

O primeiro ato se inaugura com um áugure que lê a sorte para a avó e a tia de Heliogábalo nas tripas de um frango. Prenuncia “pelo preto do fígado e pelo verde da moela” (Genet, 2025, p. 39) que ele morrerá de forma abjeta. O presságio recolhido no despojo do frango cujo estatuto é sagrado dá início a uma conspiração entre a avó e o general, ambos decididos a tramar contra a vida de Heliogábalo, já que ele arrasta o nome do Império na lama com sua desfaçatez, sua amizade com os valdevinos, os cafetões e as rameiras, suas orgias, seus vícios, seus banquetes com línguas de rolinhas (cf. p. 43), sua defloração de vestais, seu abandono da família, sua promiscuidade com os cocheiros, sua sapiência em balbúrdia. Ou seja, ele realiza a  dissolução de todas as fronteiras sociais e morais.

Para a avó é preciso detê-lo, pois o “neto destrói a si mesmo. Tendo se identificado com Império, ele destrói o Império” (idem). Essa fímbria de vontade se acentua sobremaneira quando a tia de Heliogábalo revela que naquela noite o imperador planeja se desfazer de suas propriedades, distribuindo-as às prostitutas e aos ladrões. Enquanto a avó e o general tramam, embora ela declare não agir brutalmente apenas por prudência, por exemplo, estrangulando-o, reconhece nele uma potência em que se imiscuem humanidade e divindade, a começar pela etimologia de seu nome: “Dentro dele estão o Sol e o deus Baal. El Gabail” (p. 48). O que há de maravilhoso e intangível nesse imperador que tanto se refestela no opróbrio e chafurda na ignomínia, é, além disso, sua capacidade metamórfica: “E a facilidade que ele, esse garoto imperador, sacerdote e deus, tem para se encarnar, ou até se metamorfosear, se quiser chamar assim, em marginal, em cafetão, em prostituta” (p. 49).

Apesar de se apavorar com o estatuto divino que assume encontrar no neto, a avó começa a especular junto ao general e a tia sobre a melhor forma de matá-lo, se por uma intriga amorosa, uma batalha, um envenenamento. Decidem, então, reunir os generais no salão setentrional onde retumbam os ecos, e o fariam dizer tanto que não é filho de Caracalla, quanto o que realmente pensava do exército, assim estaria armada a insídia que conduziria à sua derrocada. 

***

No segundo ato aparece, finalmente, Heliogábalo, que após travar breve diálogo com sua mãe, fica a sós com seu amante, o cocheiro Aeginus. Ao observar a crueza do imperador com sua mãe, Aeginus lhe revela o feixe de oposições que, em Heliogábalo, simultaneamente o atrai e repele: “Quase num piscar de olhos, passei do ofuscamento provocado pela aproximação do seu sol à exaustão causada pela sua amizade. Você me deixa ressequido” (p. 65). Para Aeginus, nele o orgulho o havia endurecido, petrificado: “Você não passa de uma coroa de espinhos. Eu me aproximo de você com toda a ternura que consigo juntar e a dilacero em seus ossos. Você tem aversão à minha simpatia” (p. 67). 

A Heliogábalo, no entanto, que se esquiva de qualquer monotonia, do medo e do respeito, que despreza a bondade e a piedade, não lhe interessa a simpatia de Aeginus. Interessa-lhe menos ainda que ele se atenha à sua imagem de imperador, que tanto se empenha em destruir. Aplica-se em apresentar seu rosto despido, sua imagem verdadeira, a que possa provocar asco. Deseja que ele lhe cuspa ao rosto, que nele escarre da cabeça aos pés, para que possam comungar de um amor na abjeção, o único que lhe parece eterno: “se apesar daquilo que eu lhe apresento de mais abjeto você continuar a me amar, se você não se afastar ao ver meu esterco, se sua amizade conseguir cruzar o cabo do esterco, nós nos amaremos até a danação. Você me amará no túmulo” (p. 68).

O homem-deus, imperador de Roma, vê-se como uma criança dedicada à semeadura de cinzas e podridão (cf. p. 70), a fim de permanecer sozinha, às voltas apenas consigo mesma do início ao fim da vida, qual “flor carregada de espinhos de aço” (p. 71). Aeginus, que antes o via como um vaso precioso e puro, passa a vê-lo como um jarro reles, “em que se guarda o óleo mais grosseiro” (p. 72). A despeito disso, e de temer ser arrastado ao mundo desolado e calcinado de Heliogábalo, não resiste aos seus encantos, e é tomado pela sensação vertiginosa da sedução: “Eu deslizo, deslizo para dentro de mim e tenho certeza de que é você que vou encontrar lá. Você está me conquistando…” (p. 75). Ao que Heliogábalo responde que o último passo rumo ao amor na abjeção é, justamente, a superação da repulsa para que restem sós no desespero: “Seremos mais fortes que o mundo porque vamos habitar o imundo” (p. 77).

Na última parte do segundo ato, Heliogábalo recebe a visita do diácono que espionava a tramoia da avó e do general e, portanto, relata o plano da avó de recebê-lo no salão setentrional para indispô-lo com o exército. O final desse ato é a inversão simétrica do primeiro, posto que nele matutam Heliogábalo e Aeginus um meio de matar a avó. O imperador se inclina ao envenenamento. Mesmo quando Aeginus lhe alerta que “o veneno é a arma dos covardes” (p. 83), ele não se furta à vontade de envenená-la, pois quer ser amado e amar enquanto covarde e capão. Quando a avó irrompe dentre as cortinas para lhe convocar ao salão setentrional, Heliogábalo lhe revela a visita do diácono e o seu próprio plano de lhe tirar a vida.

***

No início do terceiro ato, a avó revela à tia, o plano sobre o qual havia se decidido: desprender a laje da sacada onde o imperador se colocava para falar com o povo. A sacada dava acesso direto aos esgotos de Roma, de modo que se o imperador nela fosse ferido despencaria nas fossas e ali se asfixiaria. Todos se reúnem, portanto, no salão setentrional à espera das Legiões. Heliogábalo insiste que naquela noite ocorrerá a doação de todos os seus bens às prostitutas e aos ladrões, sendo o dispêndio uma parte do seu desejo de conduzir tudo à ruína, “conduzir o mundo ao nada” (p. 98). 


Ao levar tudo ao extremo e ao caos, Heliogábalo encarna uma forma de soberania radical, em que o poder se afirma na destruição do próprio poder, na condução do Império aos escombros. A ele não lhe apraz os louros nem as lisonjas: “É desprezo o que eu quero” (p. 99). O próprio Heliogábalo compreende-se em termos oximóricos. Para ele, sua alma “habita o mundo dos deuses, onde todos os sentimentos são terríveis” (p. 100). Ainda assim, considera-se um ser terno: “um jardim de violetas atapetava o peito de Varius Heliogábalo” (p. 101). Ele perfaz, concomitantemente, uma oscilação entre o numinoso e o impuro, em que a sacralidade só existe na medida em que se contamina com o interdito.

Ao final do ato, o plano da avó é posto à prova. Quando Heliogábalo dirige-se à janela para saudar as Legiões, Aeginus chega com o guepardo da avó que havia se perdido. Devido ao barulho da multidão, é o guepardo que despenca até o fundo do fosso após se lançar sobre a laje. Em discussão com a avó e a tia, Heliogábalo acaba por confessar que não é filho de Caracalla e, pelo efeito dos ecos, as Legiões o escutam e se põem a invadir o palácio. Heliogábalo foge com Aeginus, e a avó, diante dos soldados, declara o primo de Heliogábalo o verdadeiro filho de Caracalla, portanto, o legítimo imperador.

***

No quarto e último ato, encontram-se apenas Heliogábalo e Aeginus, escondidos nos aposentos dos empregados, particularmente, entre as latrinas, enquanto as patrulhas partem à procura de Heliogábalo. Enquanto lê as inscrições de amor feitas pelos escravos nas paredes, ele sente a proximidade da morte, e declara ser exatamente isso o que procurava nas suas escapadas e nas suas orgias: “era o mesmo aniquilamento nas profundezas de uma noite reconfortante” (p. 116-7). Incensado pelo esgoto, Heliogábalo percebe que agora é Aeginus que trama contra ele e, no entanto, não recua, mas começa a delirar e o incita a matá-lo: “Acabe com isso! Acabe com isso! Mate-me!” (p. 129). Assim Aeginus procede, e acaba por empurrá-lo dentro das latrinas e degolá-lo quando percebe que os homens armados estão na iminência de irromper pela porta.

***

Nota-se a presença marcante do erotismo em Heliogábalo, que é atravessado pela lógica do excesso e da abjeção, tal como concebe Georges Bataille o erótico, isto é, como uma experiência de transgressão que toca a morte — “Do erotismo, é possível dizer que ele é a aprovação da vida até mesmo na morte”  (Bataille, 1957, p. 9)¹ —, bem como o sagrado — “o erotismo sagrado, que concerne à fusão dos seres com um além da realidade imediata”  (p. 15). O que é perceptível especialmente em dois momentos. Primeiro, na relação de Heliogábalo com Aeginus, pois ele exige ser amado não apesar, mas através do abjeto, no esterco, no escarro e na degradação. O amor só se confirma quando ultrapassa a repulsa. Essa busca de comunhão no asco é precisamente o aspecto explorado por Bataille, do erotismo como ultrapassagem dos limites: “Queremos ultrapassá-los, e o horror sentido assinala o excesso a que devemos ascender, excesso ao qual, não fosse o horror preliminar, jamais teríamos podido ascender”  (p. 126).

Em segundo lugar, na fusão entre o divino e o imundo. Heliogábalo, imperador-deus, ao mesmo tempo flor e estrume, conduz o Império ao nada e busca no esgoto sua verdade. Essa coexistência do sagrado solar com a putrescência fétida evoca o entrelaçamento sugerido por Bataille, do sagrado com o impuro: “o sagrado, para o pagão, podia ser também o imundo”  (p. 195). O erotismo emerge como o território do risco onde se imbricam desejo e horror. Encenando uma dinâmica na qual o amor só é válido quando ultrapassa o limite do suportável, o poder só se realiza quando conduz ao nada, e a vida só ganha intensidade no risco da aniquilação, a dramaturgia de Genet encarna, assim, na figura de Heliogábalo, a experiência-limite em que convergem o sagrado, a abjeção, a violência e a morte.

______
Heliogábalo
Jean Genet
Régis Mikail e Renato Forini Jr. (Trads.)
Ercolano, 2025
144p.


Notas
1 Esta e as traduções seguintes, de Bataille (1957), são minhas. “De l'érotisme, il est possible de dire qu'il est l'approbation de la vie jusque dans la mort.”

2 “(...) l'érotisme sacré, qui touche la fusion des êtres avec un au-delà de la réalité immédiate (...).”

3 “Nous voulons les excéder et l'horreur éprouvée signifie l'excès auquel nous devons parvenir, auquel, s'il n'était l'horreur préalable, nous n'aurions pu parvenir.”


Referências
BATAILLE, Georges. L’érotisme. Paris: Les Éditions de Minuit, 1957.
GENET, Jean. Heliogábalo. Tradução de Régis Mikail e Renato Forini Jr. Prefácio de François Rouget. São Paulo: Ercolano, 2025.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

11 Livros que são quase pornografia

Dez poemas e fragmentos de Safo

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Com licença poética, a poeta (e a poesia de) Adélia Prado

Boletim Letras 360º #657

Boletim Letras 360º #639