Luis Fernando Verissimo e a extinção dos seres inteligentes
Por Afonso Junior

“Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.”
Cito trecho da crônica de Machado de Assis de 19 de maio de 1888 para lembrar que, diante do absurdo, a coisa mais séria a fazer pode ser o humor. Não se deixe enganar pelo normal. Além disso, as modas acadêmicas e o mercado de páginas podem esquecer tradições, direcionar desejos e “empoderar” gêneros, legitimando sentimentos e enobrecendo certos produtos, se não formos espertos.
Em terra de Clarice Lispector, quem faz rir é rei. Viva a diversidade. O humor quase sempre foi visto como um primo do banal e um filhote do inútil (ainda mais num cômico país triste que coloca na Academia, na sucessão de Moacyr Scliar, Merval Pereira), mas a falta de humor revela a enfermidade da sociedade e um puritanismo incapaz de conviver com a troca de palavras. Somente a extinção dessa espécie de seres, os inteligentes, nos faz ver o ouro de olhar a realidade de cima, a importância da alegria.
A sátira, como tudo que não faz acumular o capital de modo rápido, está a ponto de desaparecer. Vemos mesmo como os produtores de gado podem, trocando um professor por uma plataforma fugaz, acabar com o público capaz de ser tão sagaz quanto seu autor voraz. Se nascesse hoje, talvez tocasse sertanejo, escrevesse roteiros virais do TikTok e fosse impedido de viajar aos Estados Unidos por postar algo nas redes sociais — até mesmo criaria um estilo viral (o veribuste) que é um embuste de Verissimo feito por inteligência artificial.
Como alguém pode ser tão inteligente por tanto tempo, é isso que me pergunto quando Luis Fernando Verissimo vira livro. Ele superou um pai famoso, um país censurado e uma classe média sem paciência para a cultura. Foram 5 milhões de superadas vendidas.
A crônica (seja lá o que for) cria uma rápida intimidade com o leitor — lembra que compartilhamos um universo. Se consigo rir com o humor que ela pode conter significa que tudo podia ser diferente, ainda não fui derrotado. Além disso, com os anos, tornam-se registros dos modos de vida e documentos das relações objetais — não aquelas dos kleinianos, mas das coisas que pegamos e usamos, como os pacotes de embrulho sob o braço (provavelmente erva-mate). O analista de Porto Alegre, como um Aristófanes subtropical, não nos deixará esquecer.
Mas, se a beleza e a leveza são direitos inalienáveis, esses seres eram capazes de mostrar também o medo invisível. Em “Condomínio”, do livro Outras do Analista de Bagé, de 1982, João sai transtornado do elevador e diz à mulher, a qual, de rebelada contra a polícia se tornou classe média acomodada e reclama porque ele suja seu carpete novo, ter subido com o homem que o torturou em 1968: “Você não entende o que isso significa?”. Já em “História”, do livro Comédias da vida privada (1994), Branco, preso por questões políticas, não é torturado, mas é colocado numa cela com Tocão, para quem tem de contar histórias sem parar ou...
A única vez que o vi pessoalmente foi em uma palestra na feira do livro de Porto Alegre em que falou sobre seu pai. “Um estilo norte-americano de narrar”. Misturando alhos com caramelos, eu admiro Ana Terra (1949), acho Incidente em Antares (1971) uma obra-prima, pude me deliciar, apesar do tom antigo, com Olhai os lírios do campo (1938) e alguns outros. Mas muitas passagens, mesmo de O tempo e o vento, perdem força, nem todos os personagens carregam a mesma complexidade, somos levados pelo dever e pela História, com seu olhar severo.
Nunca com os textos do pequeno Balzac do Continente Sul, a natureza corrigiu-se na outra geração. São escolhas de ritmo e moldura. Balzac mesmo, ou vejamos essa descrição de capa do Comédias da vida pública: 266 crônicas datadas: “Watergate e Collor, AI-5 e Tancredo, Saddan Hussein e Malvinas, Carandirú e Riocentro, Garrincha e Cruyff, Allende, Reagan, Figueiredo, Éfe Agá e outros”. Tudo isso é quem somos. Isso também é Brasil. Não foi à toa a fama nacional.
As cobras é um clássico do veneno. Ed Mort foi livro, foi tira, foi filme e mais. Entre 1995 e 1997, A comédia da vida privada na TV Globo parecia prometer uma televisão leitora do mundo. Sempre surpreendente, na paródia policial Os espiões (2009), lê-se: “O camaleão é um bicho que se adapta a qualquer circunstância e desaparece contra o fundo. Desde então é isso que eu faço.”
Rever sua obra é lembrar do passado: época em que existia música, inteligência nos bares e vida fora da internet. E, na imprensa, alguma verdade sobre a sociedade (e não um espelhar da burrice). Em que as construtoras do deserto de cimento e o latifúndio cultural ainda não eram um monopólio no Rio Grande. Da Porto Alegre gloriosa em que a Livraria do Globo publicava mais de 2 mil títulos, do estado em que Brizola fez mais de 6 mil escolas e reforma agrária, e se aplicou um Orçamento Participativo.
Secretamente, cada gaúcho que é visto como “patrimônio brasileiro” nos causa uma perplexidade angustiada — finalmente nosso país nos aceita. “Mas bá” — devia acabar assim uma crônica sobre um monstro. Ou, sua mensagem secreta aos seus, com aquela expressão gaúcha: “Não me faz te pegá nojo”, para quem infla seu ego. Também o vejo dizendo “Deu pra ti, Brasil”. Parece que decidiu ir embora antes que seja eleito outro capitão.
Mas talvez a extinção dos seres inteligentes seja reversível, porque somos palavras e recontamos o fatal. Como na crônica “Histórias”, em que um pobre coitado e um aristocrata são velados lado a lado, e um amigo sacaneia o destino criando uma nova história sobre a sua vida, acabando num discurso frente a uma multidão, “bem-vindo à glória eterna!”. Não sejamos ingênuos, ele nos fez pensar enquanto estávamos sorrindo.
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