Seis poemas de “Corvo”, de Ted Hughes (1970)
Por Pedro Belo Clara
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Ted Hughes. Foto: Noel Chanan |
A PORTA
Debaixo do sol, um corpo.
É o crescimento do mundo sólido.
É parte do muro terreno do mundo.
As plantas da terra — como os genitais
E o umbigo sem flor
Vivem nas suas fendas.
E também algumas criaturas da terra — como a traça.
Todos enraizados na terra, ou alimentando-se de terra, terrenos,
Espessando o muro.
Apenas aí existe uma porta, uma porta no muro —
Uma negra porta:
A pupila dum olho.
Através dela vem Corvo.
Voando de sol em sol, encontrou a sua casa.
CORVO COMUNGA
“Bem”, disse Corvo, “O que fazer primeiro?”
Deus, exausto com a Criação, ressonava.
“O que fazer?”, disse Corvo, “O que fazer primeiro?”
O ombro de Deus era a montanha em que Corvo se sentava.
“Vem”, disse Corvo, “Vamos discutir o assunto.”
Deus deitado, boquiaberto, uma enorme carcaça.
Corvo arrancou um pedaço e engoliu-o.
“Irá o enigma revelar-se à digestão,
Por escutar além do entendimento?”
Por escutar além do entendimento?”
(Essa foi a primeira brincadeira.)
Sim, é verdade, de súbito sentiu-se mais forte.
Corvo, o hierofante, encurvado, impenetrável.
Semi-iluminado. Sem palavras.
(Horrorizado.)
UM DESASTRE
UM DESASTRE
Chegaram notícias duma palavra.
Corvo viu que matava homens. Comeu bem.
Viu que reduzia cidades inteiras a entulho,
Como um bulldozer. De novo, comeu bem.
Viu os seus excrementos envenenar os mares.
Ele tornou-se vigilante.
Viu o seu bafo queimar todas as terras,
Até ficarem poeira de carvão.
Corvo viu que matava homens. Comeu bem.
Viu que reduzia cidades inteiras a entulho,
Como um bulldozer. De novo, comeu bem.
Viu os seus excrementos envenenar os mares.
Ele tornou-se vigilante.
Viu o seu bafo queimar todas as terras,
Até ficarem poeira de carvão.
Ele voou e manteve-se observador.
A palavra vertia-se pelo caminho, toda ela boca,
Sem ouvidos nem olhos.
Viu que sugava cidades
Como se fossem os mamilos dum suíno,
Bebendo todas as pessoas
Até que ninguém sobrasse,
Todas elas digeridas dentro da palavra.
A palavra vertia-se pelo caminho, toda ela boca,
Sem ouvidos nem olhos.
Viu que sugava cidades
Como se fossem os mamilos dum suíno,
Bebendo todas as pessoas
Até que ninguém sobrasse,
Todas elas digeridas dentro da palavra.
Voraz, a palavra tentou colocar os seus grandes lábios
Na protuberância da terra, qual lampreia gigante –
Então começou a sugar.
Na protuberância da terra, qual lampreia gigante –
Então começou a sugar.
Mas o seu esforço enfraqueceu.
Nada mais poderia digerir a não ser pessoas.
Assim encolheu, enrugou-se, cada vez mais fraca,
Tornando-se uma poça,
Como um cogumelo em colapso.
Finalmente, um seco lago salgado.
A sua era terminou.
Nada mais poderia digerir a não ser pessoas.
Assim encolheu, enrugou-se, cada vez mais fraca,
Tornando-se uma poça,
Como um cogumelo em colapso.
Finalmente, um seco lago salgado.
A sua era terminou.
Tudo o que sobrou foi um frágil deserto,
Cintilando com os ossos das pessoas da terra,
Cintilando com os ossos das pessoas da terra,
Onde Corvo caminhou — meditabundo.
A TEOLOGIA DE CORVO
A TEOLOGIA DE CORVO
Corvo compreendeu que Deus o amava —
Se assim não fosse, estaria morto.
Premissa comprovada.
Corvo debruçou-se, maravilhado, sobre o bater do próprio coração.
E compreendeu que Deus falava a sua língua —
Existir, somente, era a Sua revelação.
Mas o que
Amou as pedras e falou a língua das pedras?
Também elas parecem existir.
E o que pronunciou aquele estranho silêncio,
Depois de desvanecido o clamor do seu crocitar?
E o que amou as pequenas balas
Escorridas daqueles corvos suspensos, mumificados?
O que falou o silêncio do chumbo?
Escorridas daqueles corvos suspensos, mumificados?
O que falou o silêncio do chumbo?
Corvo entendeu que existiam dois Deuses —
Um deles maior que o outro,
Amando os seus inimigos,
Senhor de todas as armas.
CORVO MAIS NEGRO QUE NUNCA
Amando os seus inimigos,
Senhor de todas as armas.
CORVO MAIS NEGRO QUE NUNCA
Quando Deus, enojado do homem,
Voltou-se para o paraíso;
E o homem, enojado de Deus,
Voltou-se para Eva,
Parecia que tudo ruiria.
Mas Corvo Corvo
Corvo pregou umas coisas às outras
Unindo de novo Céu e terra —
Assim o homem gritou, mas com a voz de Deus.
E Deus sangrou, mas com o sangue do homem.
Então, o Céu e a terra estalaram na sua junção,
Que se tornou gangrenosa, exalando mau odor —
Um horror sem redenção.
A agonia não diminuiu.
O homem não pôde ser homem nem Deus Deus.
A agonia
Cresceu.
Corvo
Com ironia sorriu
Gritando: “Esta é a minha Criação”,
E desfraldou a sua negra bandeira.
E desfraldou a sua negra bandeira.
CORVO E O MAR
Ele tentou ignorar o mar,
Mas era maior que a morte, maior que a vida.
Mas era maior que a morte, maior que a vida.
Ele tentou conversar com o mar,
Mas o cérebro fechou-se e os olhos franziram-se num esgar, como se diante
de chama viva.
Mas o cérebro fechou-se e os olhos franziram-se num esgar, como se diante
de chama viva.
Ele tentou ser simpático com o mar,
Mas este repeliu-o — como uma coisa morta te repela.
Ele tentou odiar o mar,
Mas logo sentiu-se um excremento seco de coelho, nojento, na falésia ventosa.
Ele tentou apenas estar no mesmo mundo que o mar,
Mas os seus pulmões não eram profundos o suficiente
E o seu sangue alegre saltou de pronto,
Como uma gota de água num fogão quente.
Finalmente
Virou as costas e afastou-se do mar,
Pois um homem crucificado não se pode mover.
Ligações a esta post:
>>> Em janeiro de 2024, esta seção trouxe outros poemas e resumo biográfico de Ted Hughes
* Selecção e versões a partir de Crow (Faber & Faber Ltd, 2020)
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