Entre o mundo e Baldwin: notas sobre Da próxima vez, o fogo

Por Vinícius de Silva e Souza 




É muito fácil se perder no fluxo de “Carta de uma região de minha mente”, ensaio barra memória barra reflexão de James Baldwin que concentra quase toda a obra Da próxima vez, o fogo, traduzido por Nina Rizzi para a Companhia das Letras, casa que publicou o livro no Brasil em 2024. Entre relatos de sua infância, reflexões sobre religiosidade, exemplos de racismo da época em que foi escrito e relato de causos de sua vida adulta, o escritor nos leva, de maneira hipnótica, a refletir sobre a ligações entre religião (principalmente o islã) e a segregação racial de seu país. 

Na época, aos 39 anos, o que afirma o autor, aqui, é que nem a militância radical de Malcom X e nem a pacifica desobediência civil do Reverendo King são o caminho ideal para o fim da segregação. Mostrar-se como uma categoria mais elevada, exemplificar civilidade e honra são os caminhos que o autor parece querer traçar, fortemente opondo-se a ideia de revidar violência com mais violência. Não façamos com eles o que fizeram de nós, ele parece nos dizer, nas últimas páginas e parágrafos do ensaio, que se mostra profundamente interligado a seu tempo e que pode ser lido muito mais como testemunho de uma época (ou visão de um grande homem sobre seu tempo) do que como um ensaio que “venceu o poder do tempo” e que detém relevância para as discussões atuais.
 
Um ponto que caminha nessa direção, entretanto, seria quando o autor faz sua abordagem do amor e manifesta o convívio pacífico entre brancos e negros como a única saída para a construção de uma nação — tese conciliatória que se contrapõem a situação atual de seu país, forte e radicalmente dividido pelo segundo governo Trump, o que me faz perguntar o que Baldwin pensaria dessa situação.

Já no primeiro texto reunido em Da próxima vez, o fogo, uma carta a seu sobrinho (que também se chama James), o escritor manifesta seu pensamento e o legado a uma geração futura, como quem apresenta o mundo no qual o pequeno está sendo inserido. Similar ao exercício praticará mais tarde Ta-Nehisi Coates em Entre eu e o mundo ao expor as suas relações com o racismo para o filho adolescente. Baldwin revela como os brancos inferiorizam os negros, desumanizando-os e concluindo que o medo é o principal fundamento da segregação racial. 

Ao antecipar as situações que o recém-nascido poderá enfrentar no futuro, o escritor traça em “Carta ao meu sobrinho em ocasião ao centenário da abolição” um recorte nos mostrando também como ele mesmo enxerga o passado e mundo então vigente — e principalmente os Estados Unidos, seu país natal. James Baldwin nasceu em agosto de 1924 e depois que se mudou para Paris aos vinte e quatro anos, viveu o resto da vida na Europa.

Muito mais enxuto do que Notas de um filho nativo, mas não menos provocante, os ensaios que formam Da próxima vez, o fogo aprofundam o retrato de um autor multifacetado e que, como poucos, soube conciliar militância, revolta com o mundo ao seu redor e também compaixão e sensibilidade, adjetivos que delimitam um caminho para entender a profunda relevância de sua obra ainda hoje, mesmo depois de quase 40 anos da sua morte.


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Da próxima vez, o fogo
James Baldwin
Nina Rizzi (Trad.)
Companhia das Letras, 2024
136 p.


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