Eugénio de Andrade



Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.


Se vivo estivesse o poeta português completaria neste ano de 2010 87 anos de vida. Nascido, portanto, em 1923, em Póvoa de Atalaia, Fundão, Eugénio de Andrade, depois de passar por Castelo Branco, Lisboa, Coimbra, para, e encontra lugar de residência no Porto. Portador de um curso de Filosofia incompleto, escolheu a poesia como modo de escrita e de vida; trabalhos que viriam certamente marcados pela presença de outras vozes poéticas como as de Guerra Junqueiro e António Botto, escritores que o fizeram se decidir pelos territórios da literatura.

Entretanto, não foram apenas estes os que seriam, usando dos termos do crítico Harold Bloom, seus pais poéticos. Também a lírica galego-portuguesa e o simbolismo agudo de Camilo Pessanha é presença constante na constituição da sua poesia. Se se pode falar de tema específico de sua obra poética, poderíamos dizer que Eugénio de Andrade centra-se num humanismo latente e procura de rotas ou linhas que tracejem o que muito comumente se chama de laços de uma identidade individual e coletiva; outra marcante é o tempo - este que tanto lhe pesou na vida pessoal, conforme disse sua mulher, em entrevista recente dada ao Caderno de Artes do jornal português Diário de Notícias.

De sua vasta obra podemos citar: Adolescente (1942); As Mãos e os Frutos (1948); Os Amantes sem Dinheiro (1950); As Palavras Interditas (1951); Até Amanhã (1956); Conhecimento da Poesia (1958); O Coração do Dia (1958); Os Afluentes do Silêncio (1968); Obscuro Domínio (1971); Limiar dos Pássaros (1972); Véspera da Água (1973); Memória de Outro Rio (1978); Matéria Solar (1980); O Peso da Sombra (1982); Poesia e Prosa, 1940-1989 (1990), O Sal da Língua (1995), Alentejo (1998), Os Lugares do Lume (1998) e Antologia Pessoal de Poesia Portuguesa (1999).

Num extenso e belo ensaio intitulado "Morte e ressurreição dos mitos na poesia de Eugénio de Andrade", Óscar Lopes, destaca-o "o mais consumado entre os nossos poetas feitos no decénio de 40. Trouxe-nos da poesia espanhola, de Lorca sobretudo, as sensações despertas; do surrealismo, a imagem liberta – mas as suas raízes maternas em coisas simples da terra, da lavoura e do gado souberam impor uma certeira medida a todos os recursos modernos da poesia, que levam tantos outros poetas a esquecer-se de nos levar inteiros, lá até onde querem ir, talvez aos mesmos confins do espaço interestelar onde algumas pessoas imaginam chegar vazias de humanidade. Neste poeta sentimo-nos densos, tão densos quanto entre nós tem sido possível. E assim, se me pedissem, num só autor, o apuro líquido mais incontestável dos últimos decénios de poesia portuguesa, eu não hesitava em apontar Eugénio de Andrade".

No mesmo texto, ressalta que a "linhagem deste poeta ascende, é certo, até à mais antiga poesia mítica das metamorfoses elementais. Cada poema seu contém uma metamorfose que, embora mais essencializada pela experiência humana milenar, lembrar as de Homero, Hesíodo, Apuleio e Ovídio, ou talvez mais ainda, lembra as daqueles poetas metafísicos gregos que entre si discutiram sobre a primordialidade da água, do ar, do fogo, da terra ou de um qualquer quinto elemento, inefável, talvez infinitamente divisível (ou não), ou a primordialidade de infinitos elementos-qualidades sem qualquer coisa substancial correspondente. Aqui que contudo, e sob tal aspecto, mais admiro em Eugénio de Andrade é o seguinte: ao contrário de muitos poetas modernos, aliás admiráveis mas que eu considero neste ponto como impuros (Yeats, Dylan Thomas, entre nós Sá-Carneiro, Jorge de Sena), Eugénio de Andrade dissipa qualquer confusão entre a metamorfose no modo indicativo real (comumente real) e a metamorfose em qualquer modo do imaginário (que não deixa de corresponder a uma realidade, mas nunca imediata e comum – uma realidade mais realizável do que realizada, uma natura naturans, à Espinosa). Essa confusão só aceitável e pura na fase mítica, pré-científica, do pensamento grego, ou, em geral, antigo".

A multissignificativa obra deu a Eugénio de Andrade inúmeras premiações, como, por exemplo, o prêmio da Associação Internacional dos Críticos Literários (1986), o grande prêmio da Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989), o Jean Malrieu (França, 1989), o APCA (Brasil, 1991), e o prêmio Camões (2001). Morreu em junho de 2005.

A seguir editamos um catálogo com 6 fac-símiles de poemas do escritor publicados entre 1971 e 1978 na Revista Colóquio / Letras da Fundação Calouste Gulbenkian. A edição inclui ainda um manuscrito de Eugénio de Andrade.







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