Carlos Drummond de Andrade e o tempo das revistas

“Essas revistas, lidas, relidas, alisadas no excelente papel couché, fizeram minha iniciação literária, muito imperfeita mas decisiva. Guardo até hoje visualmente de cor, por assim dizer, páginas e páginas das duas. Sei a posição das gravuras, os títulos das matérias”. 

Drummond, Tempo vida poesia 

(clique na imagem para ampliar) Capa da 1ª edição de A revista, de julho de 1925. O periódico tinha com um dos dirigentes Carlos Drummond de Andrade. Quase todo ele também foi escrito pelo poeta. Foto: Arquivo on-line da Brasiliana/ USP. Reprodução/Divulgação.

Quando eu era criança, lembro-me que minha avó costuma guardar entre uma pilha de velhos papéis aquilo que ela chamava por folhetos. Havia entre eles os cordéis e estes sim eram os folhetos, mas havia também algumas revistas; O cruzeiro era uma delas, lembro-me bem. Esses papéis avulsos eram o entretenimento dela nas horas vagas na fazenda. Devem ter sido lidos de frente para trás e trás para frente até serem incorporados nas histórias que contava para os netos, misturando-se aí o inventado com o acontecido. Como minha avó e muitos do interior do Brasil, as primeiras revistas surgidas no eixo Rio-São Paulo – em Natal, depois fiquei sabendo que houve algumas – serviram para ligar os brasileiros uns aos outros, contar do que se passava na realidade grande, projetar imaginários sobre um povo.

Também Drummond teve seu primeiro contato com o universo da escrita por através das revistas. E pode-se mesmo dizer, sem erro, porque o próprio poeta assim admitiu, que elas foram de grande importância para a construção de sua personalidade literária. Dissemos por aqui que um dos contatos com a arte do desenho (Ver Carlos Drummond de Andrade e a arte de desenhar) se deu pelas páginas da O Tico-tico, onde leu a adaptação para os quadrinhos As aventuras de Robinson Crusoé. Terá sido também pelas páginas das revistas que no interior de Minas, o poeta teve contato com o que se fazia em termos de poesia e prosa na cena literária do Brasil.

Criadas como veículos de forte e rápida expansão nas comunicações, as revistas fizeram conexões que fugiam do laço escritor-leitor e promoveram alguns importantes nomes. Um poeta potiguar, Jorge Fernandes, do interior do país, não teria alcançado o “caráter” literário que ganhou nas próprias letras do seu estado se não fosse, por exemplo, as várias publicações que fez na Revista de Antropofagia. Foram também nas revistas, onde se formou a maior parte dos escritores que ocuparam a cena do movimento literário modernista. Enfeitiçados pela ideia da rapidez e precisão comunicativa já tão bem experimentada na Europa, a ideia de se fazer revistas espalhou-se Brasil inteiro.

Na década de 1920, seduzido por esse movimento de revistas, Carlos Drummond de Andrade juntou-se a outros escritores modernistas de Minas Gerais e deram pulsão a um periódico que atendeu pelo nome de A revista. Como as publicações de vanguarda, a revista só durou três números, mas o suficiente para servir de intercâmbio entre os escritores da província e os de renome nacional como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho... O próprio Drummond terá se beneficiado dessa troca porque logo aparece sendo publicado nas páginas de alguns dos periódicos mais importantes dirigidos por esses escritores, como a já citada Revista de Antropofagia lançada em São Paulo, em 1928. É nela, aliás, onde ocorre a primeira publicação do seu poema mais famoso, “No meio do caminho”, celeuma entre os literatos da época. De modo que, vamos perceber que a revista terá sido o importante espaço para o exercício da escrita. Muitos dos poemas publicados aí foram depois reescritos e com alterações para os livros.

A revista teve edições publicadas entre o biênio 1925-26. A seu respeito, Drummond certa vez, numa entrevista deixou dito: “Realmente, como eu disse, nós não tínhamos consciência plena de que estávamos fazendo um movimento de renovação literária. A nossa tendência era renovadora, nós fugíamos aos cânones clássicos, mas também não tínhamos um programa. Quando nós fundamos A revista, recebemos um conselho muito sábio de Mário de Andrade, que era o seguinte: ‘Você deve fazer uma revista compósita, uma revista misturada, em que o novo se misture com o velho.’ Então nós publicamos lá, por exemplo, um trabalho de doutor Orozimbo Nonato, um advogado muito conceituado, muito simpático, que depois foi ministro do Supremo Tribunal. Ele escrevia em linguagem quinhentista. Numa revista moderna isto mostrava as contradições internas. E mesmo porque se nós tentássemos fazer uma revista exclusivamente modernista nós não conseguiríamos, o nosso grupo não era bastante forte, nem numeroso para fazer uma revista de 40, 50 páginas só de um ponto de vista, de um ângulo modernista. Nós tínhamos que combinar pessoas, combinar nossos espíritos, nossas tendências com as de outras pessoas que eram contrárias a nós e que nos toleravam, tinham boa vontade para conosco, compreendeu?¹” 

O comentário de Carlos Drummond se refere a uma correspondência recebida pelo poeta de Mário de Andrade: “Você parece ter vergonha da revista. Meu Deus! quanto temor e quanta dúvida. Quem dá o que tem não fica devendo. Vocês não podem e nem Rio nem São Paulo podem fazer uma revista moderna às direitas sem ficar igrejinha como Klaxon. E isso é contraproducente, Carlos. Façam uma revista como A revista botem bem misturado o modernismo bonito de vocês com o passadismo dos outros. Misturem o mais possível. É o único meio da gente fazer do público terra-caída amazonense. E isso é que é preciso. Ele pensa que está firme no passadismo e de supetão vai indo de cambulhada, não sabe e está se acostumando com vocês. E quanto à parte de vocês afirmo que está mais interessante. Li, gozei, discuti, não fiquei de acordo com certas coisas fiquei de acordo com outras pulei de contentamento afirmo que vocês são uns bichos. Pro Martins de Almeida já comentei rapidamente isso. Continuem. Se A revista morrer por falta de subsistência também não faz mal. Viveu. Eis o importante. Façam de mim o que quiserem. Sou de vocês.²” 

***
O Letras reuniu num fôlder algumas das publicações de Carlos Drummond de Andrade na sua A revista. Com base no material disponibilizado on-line pela Brasiliana/USP fizemos um recorte das diversas faces do incipiente poeta nos idos de 1925 e 1926.


***


Notas:

1. CURY, Maria Zilda Ferreira. [Entrevista]. In . Horizontes modernistas: o jovem Drummond e seu grupo em papel jornal. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

2. Carta datada de 23 de agosto de 1925. Manuscrito preservado pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira.

 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #604

A vegetariana, de Han Kang

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597

Seis poemas de Rabindranath Tagore