Dois poemas de Clarice Lispector por Benjamin Moser

Por Pedro Fernandes

Clarice Lispector, 1944 (detalhe).  



Ainda há muita coisa para se descobrir sobre Clarice Lispector. Numa entrevista do seu mais recente biógrafo, Benjamin Moser, autor de Clarice, ele disse ter escrito algo em torno de duas mil páginas acerca da escritora brasileira, das quais, aproveitou pouco mais de seiscentas. Fato é que, revendo, desta ocasião, o blog da Cosac Naify, editora pela qual saiu a biografia em questão, encontro uma face de Clarice pouco conhecida do público e que Moser revela como a face de poeta. Vejamos. Clarice admitiu alguma vez ter se dedicado ao ofício do verso, mas nada aproveitou dessas experiências. O dois textos que provam o contrário, segundo Moser, são os que transcrevo a seguir:

A mágoa,

Os telhados sujos a sobrevoar
Arrastas no vôo a asa partida
Acima da igreja as ondas do sino
Te rejeitam ofegante na areia
O abraço não podes mais suportar
Amor estreita asa doente
Sais gritando pelos ares em horror
Sangue escoa pelos chaminés.
Foge foge para o espanto da solidão
Pousa na rocha
Estende o ser ferido que em teu corpo se aninhou,
Tua asa mais inocente foi atingida
Mas a Cidade te fascina.
Insiste lúgubre em brancura
Carregando o que se tornou mais precioso.
Voas sobre os tetos em ronda de urubu
Asa pesa pálida na noite descida
Em pálido pavor
Sobrevoas persistente a Cidade Fortificada escurecida
Capela ponte cemitério loja fechada
Parque morto floresta adormecida,
Folha de jornal voa em rua esquecida.
Que silêncio na torre quadrada.
Espreitas a fortaleza inalcançada.
Não desças
Não finjas que não doi mais
Inútil negar asa partida.
Arcanjo abatido, não tens onde pousar.
Foge, assombro, inda é tempo,
Desdobra em esforço a sua medida
Mergulha tua asa no ar.


Descobri o meu país

Azas zumbiam
em harmonias fragílimas
e vozes de arcanjos louvavam a paz.
Derramaram sobre meu corpo
sete balsamos purificadores
e fizeram-me beber
ambrosia e mel.
Banharam-me no rio da música
e eu saí ingénue
como o canto de uma criança.
E depois surgiram novos anjos
e não havia noite
e não havia dia.
E a ambrosia e o nectar
deslisavam com fartura celestial.
E novas canções se entoaram
sempre em louvor a Deus.
E não havia noite
E não havia dia.
E aos poucos cresceu dentro de mim
o desespero
e eu busquei em vão os olhos celestiais.
Eles nada diziam
e cantavam a paz.
E aos poucos uma nostalgia
me enlanguesceu
e eu era o arco distendido
sem a flexa
e eu buscava o ar
sem respirar.
Um anjo me interrogou: mais nectar?
Eu gritei: quero cheiro da terra!
E o anjo me perdoou
E eu cansei de ser perdoada,
eu queria sofrer.
E não havia noite e não havia …
Quebrei minhas azas,
desci a montanha
e vivi na Terra!
………………………………….
Homens amavam
e cansavam do amor.
Homens bebiam sangue
e descobriam
que não desejavam brigar
Entoavam-se canticos místicos
onde só havia a insatisfação.
E depois homens morriam
e todos sabiam que era o fim.
………………………………….
Nem a terra,
nem o céu!
………………………………….
Fechei-me num quarto,
inventei outro Deus,
outro céu, outra terra
e outros homens.


Preservados na grafia original, esses dois textos não são restos de anotações achados nos arquivos da autora de Perto do coração selvagem; foram publicado no Diário de São Paulo em 5 de janeiro de 1947, o primeiro, e no jornal carioca Dom Casmurro, em 25 de outubro de 1941 o segundo. 

A leitura dessas publicações continua a provar que, se alguma vez Clarice Lispector escreveu poesia, foi uma experiência até agora desconhecida publicamente. Embora apareça organizado em versos e se revista do traço poético que se fará recorrente na sua prosa, os textos são pura prosa. Os dois, parecem mesmo parte de um só material, sendo o segundo uma reescrita do primeiro. 

Situado entre a imaginação e a confissão íntima, "Descobri meu país", se lê um relato em primeira  pessoa de uma narradora em fuga, um anjo caído, situada à fronteira de dois mundos, o de renascença mística e o terrenal. Sem se decidir por um dos dois planos, o eu se rebela e se diz o fabricador de outro universo, distinto dos colocados à escolha. É o tema corriqueiro em Clarice: o incerto destino do ser e o seu refúgio na palavra.

Além da continuidade frasal, desfeita apenas para sustentar um ritmo ou uma respiração do texto, o que performa mais o dramático que o lírico, é possível destacar mesmo uma linha narrativa que costura os três instantes de desenvolvimento da narração: a primeira refaz um tempo imemorial, que pode ser lido como um instante de despertar do It, depois a existência frugal no plano terreno e a negação, quando o It tornado verbo pode assumir uma via própria de ser. Essa mobilidade, o lado de dentro do nascer, o leitor encontra em Água viva.

O impasse entre o celestial e o terreno é o motivo para o segundo texto. É nesse interstício que se localiza a personagem, em voo. Esse anjo decaído, sem se admitir como tal, em peregrinação e à procura de qualquer coisa, é a mesma narradora de "Descobri meu país"; partida em outro, ela se faz  personagem do mundo que se desenvolve no apelo descritivo da voz narrativa. Embora a noção de narrativa seja questionável em "A mágoa", o lírico cede para o timbre do teatral.

Enfim, continuamos à espera dos poemas de Clarice Lispector. Lirismo e verso não são elementos suficientes para simplesmente afirmar que estamos diante de um poema. Não quero negar, evidentemente, o lirismo da prosa clariciana, do contrário, estou reafirmando sua engenhosa intersecção. Mas esses dois textos são poemas apenas na régua do pesquisador deslumbrado que quer estender à sua força as fronteiras do feito literário de uma escritora que fez o suficiente no território que se decidiu cultivar. Clarice é uma exímia prosadora. Poeta não.

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