A bagaceira, de José Américo de Almeida

Por Pedro Fernandes




Houve um tempo não muito distante que o Brasil em sua boa parte era rural – sobretudo as regiões Norte e Nordeste porque quase dotadas de uma incumbência cultural (e também histórica) de produzir para a subsistência e o consumo urbano e, logo, do restante do país. Nesta última parte, duas vistas se destacaram, as extensas monoculturas no sertão e no litoral, em que as produções se concentravam entre os grandes senhores de terra, os donos dos latifúndios, estes que se beneficiavam além das benesses trocadas das estreitas relações com os setores da política ruralista do esforço sem fim dos trabalhadores do campo que eram despossuídos de terra ou de recursos para o cultivo, visto que os investimentos econômicos estavam intimamente ligados às tais relações políticas. Quer dizer, houve esse tempo ou esse tempo ainda é atual? 

Entre esse tempo e o atual o que se modificou mais acentuadamente foi a paisagem rural pelas extensas migrações para a zona urbana; mas, no que se refere ao latifúndio, pouco foi feito e ainda é comum estourar vez ou outra cativeiros em que trabalhadores rurais trocam sua subsistência por horas de sofrimento e submissão aos patrões. Além disso, os conflitos de terra fazem elevados níveis de mortes. Como sempre ocorre no Brasil, os problemas do país e as conquistas do seu povo são frutos e resolvidos quase sempre à base de conluios e medidas paliativas, quase nunca em nome de um modelo capaz de responder efetivamente pela erradicação dos problemas ou ser uma conquista estável para a sociedade. Isto é, ao povo nenhum direito parece, para vergonha nossa, obter alguma estabilidade e segurança que se espera de todo direito, porque no nosso país o mando ainda se concentra nas mãos daqueles que não representam o seu povo. 

O romance de José Américo de Almeida A bagaceira foi publicado em 1928 e motivado por duas condições: uma estética, o regionalismo, cujos precursores como Franklin Távora e Euclides da Cunha já haviam apresentado alguns caminhos; e outra política, o da literatura engajada, capaz de denunciar a realidade histórica, social e política através da ficção. Esta última dialoga diretamente com a proposta de Os sertões, que é o de registrar o escamoteado pelo poder dominante ou apresentado de maneira enviesada e distorcida abrindo assim os caminhos para toda sorte de iniquidades contra o povo simples como se é comum até hoje nos esquemas sujos entre mídia, capital e política. O Brasil se é feito por uma sorte diversa de amaneiramentos, distorções, disfarces da verdade. De maneira que, o próprio romancista não deixa de registrar num capítulo que abre o seu romance: “Há muitas formas de dizer a verdade. Talvez a mais persuasiva seja a que tem a aparência de mentira”. 

José Américo tem, portanto, plena ciência da existência de A bagaceira: ser uma obra que sirva de tradução da verdade amaneirada, distorcida, disfarçada pelo poder. Isso faz com que a narrativa em questão se construa de outro exercício estético, o mesmo tardio realismo e naturalismo que alcançam a literatura brasileira com a obra de nomes como Machado de Assis e Aluísio Azevedo, respectivamente: o que aqui podemos chamar de neorrealismo. Desta maneira, o narrador de José Américo transita entre um certo tom elevado, erudito, e outro popular marcado pela linguagem popular, a que se ouve no Brasil rural, muito mais rica que a linguagem da gramática e do dicionário. Essa maneira de organizar a linguagem nos coloca em estreita relação com o narrado e com determinadas nuances da nossa língua que, marcada pela reprovação escolarizada do erudito, estão em acelerada extinção.

Avesso ao traço romântico que dominou parte alta da literatura brasileira ao ponto de apagar a aparição precoce do registro da denúncia, até esperado num contexto como o brasileiro em que o trabalho de construção de uma identidade nacional se consolidava à maneira de um embuste, A bagaceira introduz a relação amorosa sem se ater à narrativa de alcova ou de sentimentalismo individual. 

O possível amor é naturalizado como uma revoada de desejo do corpo pelo corpo assim como se manifesta nas demais espécies; aliás, o leitor deverá reparar que todo o enlace amoroso entre Soledade, a moça da família Pedreira, o grupo de retirantes do sertão que se aloja na fazenda de Dagoberto Marçal, e Lucio, o filho do patrão, se dá enquanto toda a natureza em seu entorno está afoita ao esteio do sexo. Ao dizer isto, é preciso acrescentar ainda que, há uma estreita correlação entre o homem e o mundo – não que o escritor tenha interesse por recuperar aquela totalidade perdida, porque em falar nesses termos é desprezar o epicentro da narrativa, que é o do desenraizamento e luta do homem em meio submissão imposta pelo seu semelhante. 

Assim, se não é uma história de amor o que se conta em A bagaceira, qual é sua narrativa? Justamente esta: a do poder de posse do homem pelo homem, a partir de uma injúria natural, a seca, transformada em elemento valioso nesse processo de obnubilação, poder e domínio. O que José Américo nos oferece, além dessa denúncia, é um painel diverso sobre duas partes do Nordeste brasileiro que, pelas suas peculiaridades produzem homens e jeitos culturais diferentes, além de estabelecer uma aposta entre qual deles melhor traduzem uma identidade da região do país. 

A família Pedreira é composta de retirantes do sertão que encontram lida numa fazenda na região litorânea do Nordeste conhecida popularmente como o brejo. A oposição entre as duas sub-regiões serve de metáfora aos tipos que o narrador engendra nesse ínterim: enquanto o sertanejo é o homem de fibra forte, de palavra e portanto senhor de suas leis, capaz de resolver na valentia sua honra, o homem do brejo é amolecido pelas circunstâncias, pantanoso, de fibra frágil capaz de se romper ao primeiro interesse particular e cujas leis são modeladas portanto em nome desse favor. 

Isto é, A bagaceira é o meio do caminho do retirante Severino, de João Cabral de Melo Neto: o homem que sai do sertão para servir de mão de obra barata e escrava nas lavouras de cana-de-açúcar; é o tempo áureo do engenho que entrará em decadência quando vier a literatura de outro José, o Lins do Rêgo. Por isso, o título da obra: bagaceira refere-se à área de ao redor do engenho dos engenhos onde se dispõe os restos da cana moída. E é este entorno o que observa a narrativa de José Américo: onde habita a arraia miúda, a gente simples, tomada pela extrema miséria e responsável pela manutenção de todo funcionamento da geringonça: do corte da cana à moagem, do feitio do açúcar, do mel, da rapadura, do melado. 

Nesse ínterim, a narrativa discorre sobre as relações embrutecidas entre os senhores de engenho e os trabalhadores, entregues de corpo ao trabalho e ainda assim à serviço de toda sorte de agruras nas mãos dos capatazes. Entre o sofrer da labuta, a narrativa abre clareiras para discorrer sobre as tentativas de ser feliz da gente simples: o canto, as histórias, as festas, as celebrações ao tempo e os namoricos de ocasião. E, sem perder o tom da condição trágica do homem sertanejo ou mesmo de certa incompatibilidade entre raças imposta pelos exercícios de poder, não perde a narrativa de imprimir nesse multicolorido o sangue das lutas pela posse. 

Ou seja, A bagaceira não descuida de reproduzir todos os tons que compõem a vida rotineira nas fazendas de cana-de-açúcar. Essa diversidade se oferece em multiperspectivas: em parte, essa diversidade é percebida não pelo olhar do narrador, mas das personagens – principalmente quando o disparate em questão é o social, melhor revelado pela posição de Lucio, o filho do proprietário do engenho, quem passa mais tempo fora para os estudos que no sítio onde se envolve com a Soledade. Esta, por sua vez, tem uma visão muito própria dos dois mundos com os quais mantém relação, o seu e o do senhorzinho – ela própria se oferece como uma releitura da Iracema de José de Alencar, a terra virgem e livre que é seduzida pelos modos do homem branco de posses, muito embora Soledade não se deixe dominar por essa força e desempenhe melhor o papel da figura feminina incitadora da revisão dos caminhos determinados pelo destino. 

Ela, por exemplo, enfada-se como as delicadezas de Lúcio e o tem mais como irmão além de não se envolver com seus jogos de imaginação forjada a partir do convívio com os livros. A certa altura da narrativa, ela é comparada a Carlota, mulher fatal sertaneja que trazia o fogo sob as saias e senhora do mando e do poder, para recuperar as palavras de M. Cavalcanti Proença na rica introdução reproduzida na entrada de edição de 2017. 

Além disso é a mutabilidade das formas sertanejas, a começar por sua natureza invariável – de extrema seca e extensa vida no período de chuvas – onde recai os olhos do narrador de José Américo em A bagaceira. Ao testemunhar essas transições, talvez queira o escritor, no âmbito de seu projeto de denúncia sobre um mundo primitivo e esquecido do resto do país, dizer que o mal não está na natureza sertaneja, como então se aviltava (e comumente ainda se avilta) e sim na falta do esforço do Estado em criar situações capazes do refrigério ao homem do sertão: “A seca chegou a aprazar suas irrupções com a lei da periodicidade. Todo o mundo tinha a previsão da catástrofe em datas fatais. E os poderes públicos não a atalharam; não procuraram corrigir os acidentes da natureza incerta que dá muito e tira tudo de uma vez. Essa vitalidade aleatória ficou, até hoje, à espera da intervenção racional que demovesse os obstáculos do seu aproveitamento e fixasse o sertaneja no sertão.”

Nessa perspectiva sabemos que a literatura não dispõe de instrumentos para rever a realidade e a coisas, mas tem um papel fundamental em problematizá-las e conhecê-las, tal como faz A bagaceira, um romance em nada ultrapassado e que muito nos diz sobre um Brasil cujo interesse do poder foi apenas o do usufruto e da opressão. Nada mais atual para um contexto que de geração em geração se perpetua e se repete, muitas vezes, disfarçadamente, veladamente pelos aparelhos da ideologia. Fundamental, portanto.    


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