De como Virginia Woolf ajudou a salvar o “Guernica”




É difícil conseguir separar a vida de todo grande artista de sua obra. As pinturas apaixonantes de Francis Bacon não podem ser entendidas sem conhecer as tumultuadas relações com cada um de seus amantes. Para compreender o disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles é preciso entender o espírito de uma época quando o experimentalismo era uma nova forma de vida. E para entender a obra de Virginia Woolf, é preciso conhecer muitos traços de sua vida, como sua estreita relação com o mundo da arte, especificamente com o cubismo.

“Todos os membros do círculo de Bloomsbury – grupo de intelectuais britânicos entre os quais se encontravam antigos colegas da universidade do irmão da escritora, como o crítico de arte Roger Fry ou o economista J. M. Keynes –, especialmente os pintores do grupo, Duncan Grant e a irmã de Virginia, Vanessa Bell, sentiram a influência de Picasso. Por isso, o estilo de Virginia Woolf é sempre comparado ao cubismo”, explica o professor Juan Antonio Díaz, especialista em Literatura Inglesa. A sombra da escritora inglesa é, sem dúvidas, tão ampliada que muitas de suas histórias ficam escondidas por sua obra e sua personalidade, seu gosto por charutos, seus comentários ácidos ou seus pequenos amores lésbicos.

A história de como Virginia Woolf teve um papel fundamental na salvação do Guernica de Pablo Picasso é uma delas: a exposição Virginia Woolf. Art, Life and Vision (realizada em 2014 na National Portrait Gallery de Londres) aproximou os leitores visitantes de sua vida pessoal, construindo através de fotografias, cartas e objetos detalhes sobre sua vida que até então estavam escondidos detrás dessa lânguida sombra. Uma das passagens mais interessantes desse acontecimento foi certamente a sobre sua relação com a Espanha.

Os fatos se dão em 1937. No dia 26 de abril desse ano a Legião Condor alemã bombardeava o povoado de Guernica no País Basco. A pedido da República, Pablo Picasso, residente em Paris, pintava em tempo recorde uma das obras mais importantes do século XX, sua Guernica, que foi pela primeira vez exposta no pavilhão espanhol da Exposição Internacional de Paris convertendo-se num símbolo da resistência antifascista. Depois da exposição, a tela voltou para a casa do pintor enquanto ninguém podia permitir que fosse exibida na Espanha sob o crescente ameaça franquista. Assim, Guernica se tornava num exilado a mais e começava um longo percurso já convertido em símbolo da luta contra a guerra e o totalitarismo.

No mesmo ano era realizada uma tensa reunião em Bloomsbury embora com o grupo de participantes reduzido: Virginia e Leonard Woolf, Vanessa Bell, seu companheiro e seus filhos Quentin e Julian Bell. O motivo do encontro era convencer este último sobre a ideia de cruzar a Espanha passando pela França a fim de servir na luta armada contra o fascismo. Já era tarde; o sobrinho de Virginia Woolf havia entrado para o corpo de motoristas de ambulância na Espanha e nenhum argumento o faria mudar de opinião.

Ainda nesse ano, Julian Bell havia editado uma compilação de ensaios intitulada We Did Not Fight, um texto pacifista que já no prólogo admitia que, às vezes, a ação e a força são absolutamente necessárias: uma ideia que cresceu amplamente para si no início da Guerra Civil Espanhola e a consequente política de não-intervenção do governo britânico. Numa troca de cartas, Julian Bell acusava sua tia de fazer parte de uma geração “cuja falta de ação havia desencadeado no crescente fascismo”; acrescentava ainda que “era necessário lutar para evitar o pior”.

Depois da partida de Julian Bell para a Espanha, a Guerra Civil se converteu num assunto de interesse tanto político como pessoal na casa dos Woolf, como se demonstra no ensaio político de caráter feminista e antifascista Three Guineas (1938); no texto, Virginia Woolf considera o fascismo uma mostra da rigidez do patriarcado na sociedade. A escritora escreveu o ensaio em resposta à pergunta de uma leitora – “Como as mulheres, com um papel tão limitado em nossa sociedade, podem impedir a guerra?” – e ilustrou, além disso, com algumas fotografias de um jornal que mostrava as 71 crianças mortas numa escola depois de uma bomba lançada pelo regime de Franco.

Em 1937, Virginia Woolf e Vanessa Bell haviam participado ativamente do National Joint Committee for Spanish Relief com a intenção de arrecadar fundos para as crianças bascas refugiadas depois do desastre de Guernica, muitas das quais ficaram órfãs depois dos bombardeios. Para isso organizaram um leilão beneficente em que a família Woolf esperava contar com a presença de Pablo Picasso; o pintor não pode participar, mas doou um de seus desenhos que foi leiloado para a causa.

Nesse mesmo ano, Julian Bell morreu na Espanha. Vanessa Bell, depois de receber a notícia, caiu em profunda depressão. Foi sua irmã, a primeira que conheceu a enfermidade quem ficou ao seu lado dela para a recuperação do trauma. Cartas que vieram à luz posteriormente demonstram que Virginia Woolf não conseguiu superar as diferenças de opinião e os entraves que teve com o sobrinho e, com a morte dele, estas foram questões que ficaram por se resolver. Foi talvez por isso que, a partir de então, sua luta contra os regimes totalitaristas se tornou mais ativa até o ponto de aparecer na lista negra de Adolf Hitler.

O Guernica seguia, então, como um símbolo itinerante de protesto contra a guerra. Foi novamente graças ao National Joint Committee for Spanish Relief, que contava então entre os patrocinadores uma vez mais os Woolf e os Bell, que se pode permitir a viagem a Londres da famosa tela e de outras 67 peças assinadas pelo pintor espanhol para uma exposição especial na New Burlington Galleries. Embora o evento tenha sido um autêntico fracasso de público considerando-se nesse tempo a fama do pintor (algo em torno de três mil pessoas passaram pelo local), se considerou mais um movimento estratégico tendo em conta os acontecimentos que se sucediam no outro país: era preciso retirar o Guernica, exilá-lo não apenas de solo espanhol, mas de qualquer outro regime totalitário.

Virginia Woolf, então, considerada por alguns especialistas “a escritora cubista”, teve mais relações com o movimento artístico do que poderíamos imaginar apenas por seus livros e pela relação com a Espanha, país que visitou por três vezes e cujos relatos estão nos seus diários.

Londres também tem um pedaço de Guernica. É Mulher chorando, patente na Tate Modern, inspirada pelo terrível bombardeio e onde se pode apreciar Dora Maar, a amante de Picasso em 1937, com a face desfigurada como podemos ver em suas pupilas à medida que vamos nos aproximando.

* Este texto é a tradução livre de “De cómo Virginia Woolf ayudó a salvar el Guernica”, publicado no jornal El País.


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