Noivado, de Shmuel Agnon



Por Pedro Fernandes


Shmuel Agnon. Foto: David Rubinger.



Há uma moral da história em Noivado, de Shmuel Agnon¹, indispensável à unidade da narrativa: uma promessa quando realizada com o devido fervor jamais deixará de se cumprir. Na infância, Jacob Rechnitz, contrai um enlace afetivo com uma menina sua vizinha, Susan Ehrlich. O episódio, apesar da inocência de duas crianças que se gostam, acompanha toda a vida dessas duas personagens, muito embora o tempo e as circunstâncias estabeleçam para Jacob o progressivo distanciamento dos dois e, com ele, um apagamento da promessa pueril: primeiro é sua saída da morada vizinha à propriedade dos Ehrlich, depois, sua ida para estudar fora do país e seu estabelecimento em Jafa como professor e pesquisador de botânica, e, por fim, o irrecusável convite para uma cátedra na universidade de Nova York.

Ou melhor, aquilo que se estabelece ainda na nossa infância tem contínuas implicações para a vida adulta, o que significa dizer, é esta uma narrativa sobre as filigranas do destino e a impossibilidade do homem em se estabelecer fora delas. É também uma narrativa sobre as implicações do passado no presente, como aquele não está reduzido ao acontecido e, logo, ao irrepetível. Mas, embora resista algumas prevalências, como a manutenção do prometido no imemorial do tempo, não é meramente de sobreposições que fala o texto de Shmuel Agnon. A tentativa é de conciliar um traço da tradição na modernidade ou ainda estabelecer enlaces entre os saberes popular e científico, ao menos é isso que sugere o desfecho aberto mas encaminhado em Noivado. Ou pelo menos é esta uma possibilidade a ser ventilada pelo leitor.

Depois de eleger a ciência como a amante de toda uma vida e a mais fiel de todas, ao ponto de mesmo cercado de mulheres interessadas em estabelecer um vínculo amoroso esse enovelamento só se realizar pelos caminhos do gozo intelectual, Jacob reencontra, muitos anos depois, com Susan e se vê envolvido numa série de dilemas alheios àquele juramento infantil, mas que, fora da sua perspectiva, se coloca como uma interferência da ordem do destino. Esse retorno do passado interfere radicalmente na sua maneira de estar em Jafa – seja porque lhe altera a rotina estabelecida em torno dos seus afazeres de ensino, sua relação com os habitantes da cidade, sua dedicação aos trabalhos acadêmicos desenvolvidos na simplicidade e na solidão de seu hábitat de ermitão – e, por vezes, se articula como um grande fado a que está condenado a responder dada a estreita relação de afetos e ajudas financeiras do pai de Susan.

O que chama atenção mesmo em Noivado é o estabelecimento de uma variedade de interditos distribuída entre segredos e silêncios entre as três personagens centrais da narrativa: Jacob, Susan e o cônsul, pai da jovem, Herr Gotthold Ehrlich. Que este saiba ou não sobre o que se passou nas longas companhias de infância entre os dois primeiros não é algo trazido à superfície da narrativa, mas é isso o que, instaura, no rapaz, pela relação de afeto e também capital assumida entre Gotthold e Jacob, todo um impasse à medida que se prolonga o tempo de permanência do pai e da filha em Jafa. Os dois, à princípio fariam uma visita de cinco dias para conhecer Jerusalém, findam substituindo o tempo por uma estação e mais tarde se vislumbra a permanência na cidade. De maneira que, o convite para Nova York poderá se constituir outra vez numa resposta do tempo àquilo do que foge inconscientemente Jacob.

São os silêncios que estabelecem um movimento de tensão às relações entre as três personagens: Susan sabe da promessa estabelecida com Jacob, mas a maneira fria como é recebida por ele na sua nova vida coloca essa certeza em suspeição; o rapaz sabe que Susan recorda esse passado, como descobre mais tarde e a partir de então deixa a cargo do tempo a determinação entre a realização ou não do prometido mesmo que repita os sentidos do juramento pueril; Herr Gotthold, se não sabe desse episódio, suspeita, talvez desde quando se propõe a ajudar Jacob, que a filha e o quase enteado constituíram um casal ideal. E é isso que, descontada a inocência do acontecimento, o que medra o rapaz, isto é, se o compromisso envolve indiretamente o pai de Susan e a ele, Jacob deve uma obediência moral e quase cívica pela confiança nele depositada; assim, não cumprir com o que ficou estabelecido no passado, constitui uma ruptura de confiança entre os dois.

Esse imbróglio não estabelece um tratamento de suspense à narrativa. O narrador de Noivado está interessado exclusivamente em contar a história de Jacob e Susan e comprovar ou não a determinação fabular que sustenta o fio do relato. A suspeição é colocada a partir das relações entre as personagens, dos diálogos entre elas e sobretudo no que é refletido por Jacob na conduta do conde para com ele. O pesquisador apaixonado pelo mar, que descobre o seu chamado numa leitura de Homero, reflete cautelosamente o envolvimento de Gotthold com ele, e está sempre entre os modos dos dois na infância e na renovação dessa relação no convívio quase diário em Jafa.

Mas, quais as razões para o temor quase infantil de Jacob ante Herr Gotthold? A pergunta é válida para que possamos estabelecer quais os segredos que se ocultam entre as duas personagens. Falávamos sobre um compromisso moral e quase cívico do rapaz para com o velho e é nisso que repousa o impasse do homem judeu inseguro no interior de uma modernidade ocidental; é a ruína das relações entre gerações que aqui se confunde com os demônios pessoais de Jacob, chamados pela tensão amorosa, a incerteza dele e da própria Susan e certa confusão de sentidos vivida pelos dois. Assim, o único segredo que existe entre o cônsul e Jacob é o respeito estabelecido entre os dois, desde sempre; não é à toa que o rapaz se sinta totalmente constrangido quando presencia Gotthold na gargalhada franca e desbocada com o barão no encontro casual no jardim das nove palmeiras. O que o choca é a descoberta de um prosaísmo do qual não é permitido aos dois participação porque estão separados por gerações distintas; contrariar esse princípio é ruptura moral grave. Reside nisso o temor do respeitado professor. Isso significa dizer que Noivado é uma narrativa que funciona por sinédoque; através dela, o autor busca identificar e interpretar as tensões implicadas na ordem social vigente, um tratamento que parece recorrente na literatura de Agnon, conforme sublinha críticos como Nancy Rozenchan².

A leitura de um especialista sobre a literatura de Shmuel Agnon ou mesmo de um leitor versado no imaginário e nas simbologias judaicas revelará uma variedade de outras questões não alcançáveis pela leitura de alguém cuja formação se difere totalmente desse universo cultural. Mesmo assim, esse leitor não versado na cultura judaica ou nos dilemas étnicos culturais que envolvem os do médio oriente não deixará de evidenciar questões e situações que se fazem universais. Aliás, este terá sido o motivo principal que levou o escritor a dividir o prêmio Nobel de Literatura com Nelly Sachs em 1966. Os impasses entre tradição e modernidade, os enovelamentos amorosos, a condição de desenraizado, entre outros, incluindo as que evidenciamos na leitura desta novela³, estão acessíveis em todas as culturas.  

Notas

¹ Shmuel Agnon não é um desconhecido entre os leitores brasileiros. O texto envolvido nestas notas está em Noivado e outros contos, antologia publicada no Brasil pela extinta editora carioca Opera Mundi em 1973 e que publicou, dentre outros trabalhos, parte de uma coleção francesa intitulada Biblioteca dos Prêmios Nobel de Literatura. O livro foi traduzido a partir do francês por Rachel de Queiroz. Mas, o leitor encontra por aqui outros livros do escritor da era de ouro da literatura israelita; até agora Novelas de Jerusalém, Uma história simples, Hóspede por uma noite e Contos de amor, todos pela editora Perspectiva.

² Refiro-me ao texto “A representação literária do drama social em Agnon”, texto do livro Literatura hebraica: vertentes do século XX (Associação Editorial Humanitas, 2004).

³ Refiro-me a Noivado como novela, embora seja um texto apresentado na antologia citada, e fora do Brasil em algumas situações, como conto. Entendo que se trata de uma narrativa que preenche as características que determinam a forma narrativa novela; a principal delas, é que o núcleo narrativo está envolvido por protoenredos que estabelecem conexão entre si e conduzem a vários pontos altos com resolução imediata, além do arco temporal que cobre as situações narradas.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Dalton por Dalton

Boletim Letras 360º #575

Boletim Letras 360º #570

Boletim Letras 360º #574