Vertigem do chão, de Cezar Tridapalli

Por Pedro Fernandes

Cezar Tridapalli. Foto: Agata Schmitt



A emigração é o grande tema literário do nosso tempo. Os motivos para a afirmativa podemos especular sob os mais diversos pontos de vista. E este fenômeno que remonta nossas origens e o prosseguimento da espécie adquire de novo contorno parece resultar do embate com um modelo radical e de raízes profundas que na formação dos estados passou a se chamar nacionalismo. O emigrante instaura, assim, um complexo confronto no interior daquelas sociedades mais ou menos estabilizadas em torno de uma identidade cultural há anos e anos idealizada e modelada de acordo com determinadas diretrizes de posse que permitem a um grupo distinguir-se sobre os demais. Quer dizer, o tema radica especificamente o desfazimento dessas fronteiras mais ou menos solidificadas a muito custo e cujas linhas começam a se liquefazer à medida que se multiplicam os processos de trocas culturais, parte das grandes transformações impostas pela globalização.
 
No âmbito de um debate que envolve tantas frentes possíveis, e uma vez falarmos sobre globalização, parece pertinente pensar como esse choque de forças se estabelece por um dos braços da economia de produção. Faz sentido que, em algum momento, os povos periféricos, reduzidos a este epígono por um grupo de uso e consumo bastante elevado, encontre nos intercâmbios turísticos um meio de usufruir de um modus vivendi que foi construído direta e indiretamente por eles: direta se pensarmos no aproveitamento da mão-de-obra para os serviços braçais, estes quase sempre feitos pelo homem-migrante e indiretamente se pensarmos que o conforto aproveitado por esse grupo depende não somente dos meios de produção de seu país, mas da exploração bruta de outros países.
 
As primeiras garantias assumidas, em parte, pelos Estados desenvolvidos foi encontrar alternativas de integração dos fluxos migratórios no seu interior, assistindo-o com as mesmas leis ou com políticas de equidade próprias. Aqui se instaura um impasse ainda sem alternativa porque incapaz de responder por aquela unidade nacional, nenhum pouco desfeita mesmo nas nações organizadas mais abertas, e pela chegada de tanta gente, arribada agora não apenas pelo interesse na vida de algum conforto, mas porque seus lugares de origem encontram-se profundamente erodidos por essa ordem em que uma pequena parcela usufrui do que uma grande parcela desenvolve. Isso significa que os motivadores para o emigrante não são apenas de ordem econômica, mas de ordem social variada, da política ao meio-ambiente, passando pelos direitos civis ou mesmo os confrontos pelo Estado-nação.
 
Esses apontamentos apenas respondem por uma superfície nodal e o intuito de levantá-los aqui é para dizer de que maneira essas questões se infiltram no literário. É preciso dizer que se o tema é agora uma recorrente não implica acreditar que só então se tornou interesse para os escritores. A errância e as situações dela derivadas constituem, na literatura, tema tão antigo quanto o nomadismo humano: note-se, para citar uma das peças da base tornada ocidental, o Livro do Êxodo, registro sobre como todo um povo deixa a vida de escravidão no Egito motivado pelo ideário da terra prometida; ou o impasse registrado por Sófocles em Antígona, tragédia que em tempo de refugiados se tornou símbolo do homem desterrado. No caso específico desse texto, o que nos chama interesse é o dilema ético de corte individualizante, isto é, o registro da vida individual marcada pelo drama da pátria retirada.
 
Em Vertigem do chão, de Cezar Tridapalli o tema é enfrentado a partir de duas realidades: a de um brasileiro que insatisfeito com os destinos do seu país e da vida pessoal e profissional decide ir para Utrecht, leste da Holanda e a de um holandês que marcado diretamente pelos conflitos entre os do seu país e de imigrantes mulçumanos faz o itinerário oposto, decide vir para Curitiba. As escolhas dessas duas personagens ditas assim parecem aleatoriedades do discurso ficcional. Não é. Leonel herda traços imperceptíveis do sangue holandês de sua mãe, embora esteja condenado a parecer um brasileiro: é filho do embate racial entre pretos e brancos e disso herda a cor parda e o sobrenome invariável de Silva. Mas, a escolha por esta cidade é feita em parte por isso, em parte porque conheceu dela um casal de dançarinos e com eles se sente motivado a elaborar o sonho com a arte que lhe é uma obsessão desde a tenra infância.
 
Já Stefan é atraído pelo Brasil quando país vive toda a efervescência que o coloca no centro dos principais interesses ao redor do mundo; a saída da terra natal é, assim, uma tentativa de escapar do radicalismo crescente. Embalado por um senso comum que desde então apenas tem se alastrado na União Europeia de que o continente será integralmente absorvido pelos povos mulçumanos, o holandês vê no nosso país certa alternativa, como nós mesmos ousamos uma vez acreditar, como o lugar de perfeita integração e liberdade entre os povos, crenças e ideologias. O romance não avança especificamente sobre como essa mentalidade é produto em parte da mesma força autossuficiente do senso comum dominante no imaginário de Stefan e em parte fruto da lista interminável das nossas hipocrisias que resultam naquela cordialidade tão bem conceituada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Mas, as consequências não deixam de ser aproveitadas sobretudo com o perfeito acompanhamento sobre nossos dramas de classe, de raça, nosso servilismo ao estrangeiro daquele bloco que apenas nos vê como sua mão-de-obra, os dilemas de feições religiosas com os levantes dos radicalismos neopentecostais, as mais variadas formas de violência, incluindo os efeitos de enfretamentos físicos em nome dos princípios de fé que atingem uma parte da ala muçulmana, nosso espírito vadio e aproveitador, no sentido mais mesquinho, enfim, o total oposto, ainda que não captado pela compreensão do holandês, do que ele terá estabelecido como a imagem do Brasil, salvo raras exceções: a alegria e a espontaneidade talvez sejam as mais visíveis.
 
O mesmo acontece com as percepções de Leonel sobre a Europa. Sua permanência desde à chegada em Utrecht se confunde um pouco com sua própria maneira de pensar a dança contemporânea. Integrado a um estética pós-estrutural, todo seu esforço é por encontrar um movimento capaz de transpor as zonas fronteiriças que separam a expressividade do corpo, do corpo individual e de outros corpos, do corpo e do espaço, do corpo e do público. E sua aprendizagem passa por uma tomada de consciência que confunde o que, ainda no Brasil, lhe era invisível: ao invés de encontrar a reafirmação capaz de corroborar com o ideal homem desconstruído descobre-se involuntariamente preso pelas mesmas determinações estruturais. Um exemplo disso se oferece em pelo menos três situações: o desfazimento de alguns reducionismos, como o que enxerga o mulçumano uma figura da margem do mundo, tão à margem que inferior à própria condição brasileira, ponto de vista este que é derivado em parte da imagem radical e universal estereotipada pelos mídias segundo a qual todo mulçumano é integralmente alienado pelas leituras reducionistas dos dogmas religiosos; por mais que se esforce, é penosa a descoberta de que em território europeu ele é figura apartada e inferior; e claro, que a Europa, ainda que lhe ofereça o melhor acesso aos bens simbólicos-culturais, padece de problemas tão ou mais graves que o seu país de origem, sobretudo para aqueles que formam a grande massa de indigentes amalgamada pelo mesmo Estado que vende o conforto e o acesso avançado em todos os aspectos. Nesse sentido, a escolha de Cezar Tridapalli parece se revestir de uma ironia visceral: fala-se de um impasse social, político e ideológico num país considerado o mais desenvolvido em questões que mesmo o restante da chamada Europa desenvolvida ainda engatinha ou patina em solucioná-las.



 
O que se estabelece em Vertigem do chão é um jogo de similitudes. Isto é, as duas vidas observadas guardam estreitamentos verificados desde as suas vivências diárias e anseios, passando pelo dilema de pouco à vontade em seus próprios mundos e findando no longo trabalho de descobrir quais as implicâncias que fundamentam esse impasse. O cruzamento dessas duas existências primeiro ao alcance apenas da narrativa se evidencia na própria forma do romance. As duas histórias se narram por passos que as duas vidas se cruzam nas ausências dos seus próprios indivíduos. A forma adotada do que se conta é espelhar e, por vezes, cada qual invadindo o mundo particular do outro (as perspectivas, os lugares, os convívios). Isso se confunde de uma maneira, como se um e outro desempenhasse simultaneamente, continuidades, sombras e projeções, de maneira que as lacunas da vida de um se respondem pela vivência do outro. Existe aqui uma forma que capta perfeitamente a ideia de entre lugar, a zona pela qual transitam os sujeitos migrantes. E num mundo de grandes fronteiras, mas todas mapeadas, a narrativa parece se colocar num papel zombeteiro, joga com os encontros desencontrados, como se um deus que a tudo testemunha se ri de uma condição imposta por ele próprio às suas criaturas.
 
Há um episódio, registrado do lado de Leonel, quando vagueia pelos arredores da Universidade de Utrecht, onde trabalha a Professora Fadilah, uma mulçumana que se coloca como se uma orientadora capaz de levar a personagem a se descobrir uma presa de suas próprias condenas, que parece explicar perfeitamente o procedimento formal da narração em Vertigem do chão; o jovem divaga sobre o seu entorno acerca de organizar uma maneira de expor através do seu inglês rudimentar seu projeto criativo que não gratuitamente se intitula dEUs. Nesse instante, descobre uma criança que olha para uma estátua e se coloca numa posição de efeito triangular no plano cenográfico ― utilizemos a expressão na ausência de uma melhor ―, o que o narrador descreve com certa tautologia como: “era uma observador [ele, Leonel] observando a observação [a criança para a estátua]”. Essa perspectiva explica a forma do romance ora lido porque a narrativa se desenvolve especificamente como um ponto de vista em observação sobre um mundo que se observa.
 
É por esse motivo que Cezar Tridapalli escolhe um narrador que está sempre à parte das suas personagens e, portanto capaz de capturar todas as suas expressões, tecer comentários sobre o que pensam, ora por conta do próprio fluxo da consciência de cada uma, ora pela intervenção das vozes que se afirmam como o Outro desses sujeitos. A escolha por esse foco narrativo expande ainda mais o complexo jogo de espelhamentos que se estabelece no desenvolvimento do enredo. Mas esse não é um narrador que se coloca acima das suas personagens e, por vezes, a posição assumida oferece certo grau de intimidade com elas, o que é típico do discurso indireto livre; em algumas dessas ocasiões, o leitor mais atento não deixará de reparar certos deslizes para com a verossimilhança. O exemplo mais notável é a Babel linguística em que se vê metido o brasileiro quando chega ao novo país. Primeiro, sabemos das suas enormes dificuldades com o inglês, incapaz até de desenvolver uma simples pergunta com alguém na sua mesma condição de estrangeiro. Não temos notícia sobre sua proficiência em língua espanhola, mas já no dia seguinte o encontramos enredado por todos os meandros da vida de Fadilah, numa conversa que se faz alongada mais em espanhol ― esta sim proficiência da professora porque viveu largo tempo em Espanha ― e em inglês que ela, à vista da nossa personagem, também sabe fluentemente. Esse é um caso isolado, mas acontece pelo menos outras duas situações que toldam a acertada maneira com que o escritor decide organizar as múltiplas histórias que formam as duas vidas aqui observadas. Coisinhas que um tempo a mais de maturidade e outras releituras se aplanariam mas em nada interfere na riqueza deste romance.
 
No mais, Vertigem do chão é um romance que tem um fôlego inventivo inusual na literatura brasileira vigente. Constrói-se ainda repisando uma variedade de simbologias ― do tempo, do corpo, do espaço, da viagem, da cidade, do chão ― cada uma capaz de revelar nuances das mais variadas ou camadas de leitura, ampliando os próprios limites do primeiro tecido textual. Além de explorar com propriedade geografias e contextos, dentro e fora do país, e discutir múltiplos caminhos acerca do tema dominante, sempre com um ceticismo em torno das certezas administradas pelas personagens sobre seus mundos ― certezas que encontram muito de perto as que muitos de nós depositamos sobre o lugar que habitamos.
 
Nesta visada cética não sobra muito para acreditar numa radical transformação dos povos, talvez dos indivíduos; e ao explorar as lógicas do destino e do acaso as transformam em duas forças com as quais não podemos contar. Nem administrar. E é preciso viver, independente que se manifeste o milagre do encontro, afinal, nem sempre este pode ser lido como um milagre. Mas isso é um assunto que ficará sob responsabilidade do leitor para descobrir por conta própria na leitura desses dois homens de lugares tão estranhos, de vidas tão próximas e integrados ou passados a integrar o movimento das roldanas de seus mundos, afinal, as mais caras das lições aprendidas com a desterritorialização (e também o que nos salva nesse drama de cidadãos do mundo) são descobrir nosso próprio mundo e o do outro, nós mesmos e o outro. Esses encontros, sim, para mal e para bem, sempre nos surpreenderão.
 

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