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Ivan Klíma, resistir contra os totalitarismos com uma dose de esperança

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Ivan Klíma. Foto: David Konečný Ivan Klíma, nascido em Praga em 1931, descobriu que seus pais eram judeus depois da ocupação da Tchecoslováquia pelas tropas de Hitler. “Meus pais precisaram rejeitavar não apenas a religião, mas também sua identidade judaica. E já até o início da guerra, eu sequer tinha ouvido a palavra judeu, nem mesmo como um insulto.” Com a eclosão da guerra, ele foi forçado a usar a Estrela de Davi no peito com a palavra judeu escrita. O pequeno Ivan se trancou em casa e começou a ler sem parar.  Enquanto isso, uma proibição após a outra surgia. Primeiro, não era permitido sair da cidade, depois não era mais permitido ir ao teatro, ao cinema, à escola, ao parque... nem mesmo andar no primeiro vagão do trem.   E veio o campo de concentração. Ao ingressar em Terezín — a 80km de Praga —, ele se tornou um verdadeiro prisioneiro. Perdeu seu nome e passou a ser identificado com o código L54. Seu interesse pela literatura se solidificou ali. “A primeira coisa que ...

Boletim Letras 360º #659

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DO EDITOR Saibam que na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você pode obter um bom desconto e ainda ajuda a manter o Letras . A sua ajuda é essencial para que este projeto permaneça online . Javier Cercas. Foto: Pere Francesch LANÇAMENTOS Dois livros do escritor catalão Javier Cercas de distintas feições ganham edição quase simultânea no Brasil neste segundo semestre de 2025 .  1. O louco de Deus no fim do mundo é uma obra única em que Javier Cercas recebe do Vaticano o convite inédito para estar perto de seus membros e do próprio papa. Motivado por um questionamento ― se a mãe, católica fervorosa, reencontrará o pai na vida eterna ―, o autor transforma uma premissa incomum em uma narrativa magistral e íntima, entrelaçando suas obsessões pessoais com algumas das questões mais inquietantes da humanidade, como o papel da espiritualidade e da religião e a busca pela imortalidade. A narrativa é dividida em três momentos: antes do voo, quando Cercas ...

Best-sellers de outros tempos: Pavel Melnikov nos bosques

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Por Javier Pérez  Pavel Melnikov , Ivan Kramskoi. Pavel Ivanovich Melnikov — porque seu patronímico é necessário aqui para evitar confusão com o engenheiro e militar Pavel Petrovich Melnikov — é um daqueles autores que poderíamos dizer que escreveu em um lugar remoto sobre coisas remotas. Tanto que, apesar de seu enorme sucesso local, sua obra só começa a ser traduzida e publicada por algum editor excêntrico no início da década de 1960. E, no nosso tempo, no caso em que tenha sido traduzido, é preciso mergulhar no fundo dos sebos para encontrar seu livro mais conhecido: Nos bosques .¹ Nascido em 1818 em Nijni Novgorod em uma família nobre, mas de forma alguma rica, até mesmo a data exata de seu nascimento permanece controversa devido às muitas mudanças e adversidades vividas por seu pai, um militar de baixa patente. Recebeu sua educação inicial de sua mãe, que herdou uma importante coleção literária de autores clássicos, russos e franceses, o que lhe incutiu o interesse pelas ...

A advertência de Ian McEwan

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Por León Krauze   Ian McEwan. Foto: Joel Saget Embora não fosse muito dado a conceder entrevistas, Cormac McCarthy explicou certa vez que a intenção de seu romance pós-apocalíptico, A estrada — vencedor do Prêmio Pulitzer em 2007 e logo convertido em uma grande obra da literatura — era imaginar como a humanidade conseguiria “carregar o fogo” após o fim do mundo. A origem da história foi íntima: ele a escreveu pensando em seu filho pequeno e em como protegê-lo em um planeta devastado. Apesar de sua capacidade de retratar o lado mais brutal da condição humana — como em Meridiano de sangue — McCarthy deu este A estrada um coração terno. Seu retrato de pai e filho avançando por paisagens cinzentas deixa em aberto a possibilidade de a humanidade ter sido vítima, e não culpada, de sua própria ruína. Em seu valioso novo romance O que podemos saber (2025)¹, Ian McEwan não oferece tal consolo: aqui, não há dúvida sobre quem apagou o futuro. Assim como em Reparação (2001), sua obra mais ...

Natália Correia: a mulher que morreu de pé

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Por Pedro Fernandes Nascida na ilha de São Miguel, nos Açores, Natália Correia chegou a Lisboa em 1934, alguns anos depois de quando a família foi abandonada pelo pai que emigrou para o Brasil. Como era comum às mulheres do seu tempo, não conseguiu alcançar os estudos mais avançados. Fosse pela necessidade de sobrevivência, fosse pela natureza própria, esta que se forma no artista muito antes de tomar qualquer decisão profissional, ela ingressou cedo por territórios dos mais diversos até se afirmar como um dos nomes essenciais da poesia portuguesa do século XX. Foi cantora e locutora de rádio, passou pela televisão como apresentadora e roteirista, barista do Botequim, que fundou em 1971, foi diretora de editora, atuou continuamente para os jornais, militou ativamente contra a ditadura, dedicou-se a todas as frentes da literatura — além da poesia, o teatro, o romance, o ensaio, a literatura para infância, a tradução — e outras searas da escrita, assumiu uma cadeira no Parlamento no perí...

Planvs ad coeli lilia

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Por Eduardo Galeno  A segunda freira. Chaucer. MeisterDrucke. A hagiografia nem seria um gênero. (Às vezes, pensando no nome pelo qual ela insere sua estrutura, seu discurso e sua prática, sinto que seja.) O que me dá, certamente, uma conclusão, e prefiro começar o texto assim, é que a forma hagiográfica não pode ser exposta à penúria da biografia (ver o ensaio de Flora Süssekind que exagera a proposição referida). O viés do elogio, isto é, da sutileza em resguardar a autoridade, mas ao mesmo tempo a humildade, é o que reparte. Ao contar a história dos santos, não se conta nada além da ascensão (mesmo, por exemplo, que eles tenham vivido uma vida de pecado anteriormente). Tudo é sobre o Amor, a clausura da revelação e do domínio sagrado, tudo é sobre como um santo pode salvar os outros fiéis (e, quem sabe, os gentios). Hegel cita que o saber não subtrai a substância divina, já que ela própria se designa a se mostrar conhecimento. Essa é a tese que a dialética hegeliana interpõe. O...