Vaim, de Jon Fosse
Por Pedro Fernandes
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| Jon Fosse. Foto: Tom A. Kolstad |
E se descobríssemos que a nossa vida foi determinada por escolhas alheias a nós? E se a vida que levamos com alguma determinação própria for, na verdade, a repetição de outra vida que também ignoramos? E se em algum momento, por uma razão desconhecida, pudéssemos assumir a consciência dessas duas possibilidades, o que faríamos com isso? Essas podem ser algumas das questões encontradas na base das três narrativas que constituem Vaim, o primeiro romance de Jon Fosse depois do prêmio Nobel de Literatura e o primeiro de uma trilogia sobre a povoação fictícia que dá título ao livro. O leitor da obra desse escritor não deixará de primeiro reparar nessa que pode ser uma das suas obsessões, o uso da numerologia com variável sentido simbólico, nesse caso, o número três.
Três livros à volta de Vaim, mas este primeiro estrutura-se em três partes, constituídas como dissemos em três narrativas, em torno de três personagens que formam um inusitado triângulo amoroso marcado por três acontecimentos interceptados em algum momento e que, nessa ocasião, redefinem os eventuais sentidos estabelecidos na vida de cada uma dessas figuras. Se quisermos ainda nos prolongarmos pelas coincidências à volta do três, são três os narradores e os acontecimentos levantados se estruturam por três momentos. Três são ainda as variações dos nomes próprios dos protagonistas: Jat, Geir e Jatgeir; Eline, Josefine e Frenka; Frank, Olaf (o mesmo nome das suas três gerações anteriores) e outro inominado e só apreendido pela leitura quando se descobre o homem que repete a vida e as circunstâncias de Jatgeir.
Sem avançarmos ou nos aprofundarmos nos sentidos desse número, encontramos sua marca desde a organização de uma das bases da nossa cultura ocidental — o cristianismo se define, entre outras simbologias, pela trindade — às composições mais intrínsecas de nossa própria vida — o nascer, o viver e o morrer —, e a maneira como estruturamos o tempo, o passado, o presente e o futuro. Por isso, o três se relaciona com a criação — uma das bases, conforme adiantamos, da trilogia agora proposta por Fosse —, o equilíbrio e a perfeição. Se a segunda dessas significações é compreendida pelos aspectos estruturais, composicionais e formais desse romance, como sublinhados, a terceira cobra-nos o contato com o restante da trilogia, embora não seja improvável pelo que conhecemos do restante da obra do escritor norueguês.
A primeira parte de Vaim é narrada por Jatgeir. O homem repete uma travessia que sempre fizera no verão entre o seu lugar e Bjørgvin; sem saber ao certo o motivo da viagem se vê impelido a comprar linha e agulha para pregar botões. Por entre o seu pequeno périplo pela cidade acompanhamos várias circunstâncias pinçadas pelo volteio interior: a reflexão acerca da necessidade de comprar esses produtos, a busca de sentido para a cobrança inflacionada pelo carretel de linha e agulha; outras idas a Bjørgvin, o passeio pelo mercado, a boa refeição, quando a viagem foi ao lado do amigo Elias, a nomeação do barco dedicada a uma jovem por quem desenvolve um interesse amoroso, o casual e improvável reencontro com essa mulher que se apresenta em fuga do seu casamento. Nota-se que o discurso do narrador (também é assim com o dos outros dois narradores) parece se mover como uma correnteza marítima; vagueia entre um passado e um presente e se interrompe ante o futuro, tempo acessado pelos narradores seguintes, uma vez, seguimos Jatgeir até o instante da fuga de Bjørgvin para Vaim trazendo consigo Eline.
O passo seguinte é atualizado via indireta por Elias. O narrador recorda o convívio com Jatgeir, o único amigo em Vaim, de onde só saiu para a viagem malfadada a Bjørgvin; recorda o progressivo obnubilar da relação em face dos impasses desde a entrada oficial de Eline na vida de Jatgeir; o convívio com a vida religiosa no grupo de orações que frequenta e o distanciamento de Jatgeir desses assuntos. Se na primeira parte da narrativa, o acontecimento inesperado é a materialização do encontro com Eline e o apagamento do platonismo do primeiro protagonista de Vaim, na segunda, é o recontro de Elias com Jatgeir, embora nesse episódio, o inusual é convertido em insólito, uma vez descobrirmos a improbabilidade desse momento devido ao destino trágico do proprietário do Eline, a ruptura da segunda linha narrativa. Também é a partir daqui que começa a ficar mais nítida a presença nuclear do barco; no jogo metafórico de linha e agulha, este é o objeto que cerze as narrativas.
A terceira parte do romance é narrada por Frank. Sabemos do seu encontro com Eline em Bjørgvin e como os dois passaram a viver juntos em Sund; descobrimos, afinal, as variações dos nomes próprios dos protagonistas; revisitamos os episódios que encerram as duas primeiras partes de Vaim e do que se passou com Eline (e com Elias); de como Eline impôs os rumos do que descobrimos (porque assumimos) como (possível) triângulo amoroso; como Frank ocupa uma vida em tudo derivada da vida de Jatgeir. Normalmente, em romances com essa concepção, uma das partes — e esta cumpriria essa função — exerce o papel de esclarecer ou ajustar as lacunas plantadas pelos demais fios narrativos. Não é o caso aqui.

Ao privilegiar não apenas o ponto de vista dos narradores, mas a narração em primeira pessoa, mesmo que esta seja com alguma constância interrompida por passagens de diálogos conduzidos à maneira de um teatro, afastamo-nos da credibilidade do que é contado. É verdade que, se fosse o caso de aceitar alguma verdade, acataríamos o discurso de Elias, porque, aparentemente, ele se encontra fora o circuito amoroso que governa as relações entre Jatgeir, Eline e Frank. Mas, o estreitamento entre os dois ou mesmo a eventual dificuldade com Eline, também o coloca na mesma posição dos demais. Além, é claro, das várias interrogações que friccionam a superfície do que nos foi contado pelos esclarecimentos (é modo de dizer) apresentados nessa terceira parte.
Qual a profundidade da relação entre Jatgeir e Elias? Elias nutria amizade ou algum platonismo incorrespondido e ocultado ou obnubilado pela religião? Até ponto o moralismo religioso interfere aqui, no convívio com um descrente Jatgeir ou no tipo de relacionamento que o amigo desenvolve com Eline? Qual relação tinham Frank e Elias? Eram propriamente desconhecidos? Frank induz conhecer Vaim no tempo em que Eline dela escapa —, assim, seria verdadeira a afirmativa dela de que os dois se conheceram antes de Bjørgvin? Se sim, Eline e Frank possuíam qualquer plano secreto sobre Jatgeir? Por qual razão? Se não, Frank teria vingado a traição e assumido a vida de Jatgeir? O medo desalmado de Eline por ser descoberta em fuga com Jatgeir teria, então, fundamento? Essas são apenas algumas interrogações que a intrincada relação entre Jatgeir, Eline e Frank (capitaneada por ela), sugere a partir do discurso de Frank. Ou seja, um discurso que mais imprime questões sem oferecer uma resposta ou preencher tais campos lacunares.
No plano geral, Jon Fosse podará todas as arestas, resolverá essas e outras questões plantadas com este primeiro romance da trilogia Vaim? É e não é possível. Se for possível, o menos óbvio, trairá o princípio da indecidibilidade, que não apenas define a literatura no geral e a sua em particular, mas também a própria ordem da vida, uma vez que esta não se define por uma verdade única e definitiva, nem por circunstâncias absolutamente resolvidas. Seria como oferecer a justificativa para as duas mulheres que vendem um carretel de linha e uma agulha (a primeira com a linha já gasta e a agulha usada) por 250 Coroas. Não é que não exista justificação para essa atitude, pelo contrário, mas qual a verdadeira? Ou ainda: qual a motivação de Jatgeir em não confrontar as vendedoras e custear preço cobrado, como se por um tipo de orgulho próprio ou alguém despossuído de atitude?
Toda vez que estabelecemos o vínculo, por menor que seja, com o outro, assumimos caminhos sobre os quais não possuímos qualquer certeza e mesmo quando se avista alguma clarividência decidimos insistir — sem razão própria — como quem aposta o próprio limite, daí, o que poderia, deixa de ser, o que não poderia, é, sem saber o que seriamos se ao invés de uma tivéssemos adotado outra atitude; e não sabemos se conduzimos ou somos conduzidos. Essa parece ser a dupla frente assumida por Jon Fosse com Vaim: a de conduzir (Eline) e a de ser conduzido (Jatgeir e Frank), duas ilusões que nos alimentam ante a imprevisibilidade da vida.

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