Subsolos de Lima Barreto e Lev Tolstói

Por Rafael Bonavina 



Quando pensamos na Rússia, talvez venha à nossa mente alguns elementos que nos chamam atenção, como a neve, a rigidez no trato, as danças populares, as comidas típicas. Enfim, todas essas coisas que nos diferenciam, que nos afastam. É preciso apertar um pouco os olhos para vermos o que temos em comum com esses primos distantes. Mas, depois desse esforço inicial, começam a despontar os pontos de contato, desde o humor popular até a literatura erudita. E é justamente aí que gostaríamos de nos deter.

Não é segredo que a literatura russa é de uma riqueza e complexidade imensa, assim como a brasileira; por isso, quando as duas se tocam, o resultado geralmente é, no mínimo, interessante, quando não, verdadeiramente valioso. Tampouco é novidade que Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski era usado como uma espécie de medida com que se comparava outros escritores, por exemplo, Machado de Assis diversas vezes foi avaliado como uma espécie de Dostoiévski brasileiro. Isso também aconteceu com, em alguma medida, Graciliano Ramos e até Lúcio Cardoso. 

Porém, as relações não se limitam a tentar garantir a qualidade dos nossos autores apontando-lhes as características semelhantes com os grandes escritores russos. Fosse assim, a nosso ver, seria preciso reconsiderar criticamente essas aproximações, pois isso significaria que a legitimação da nossa literatura estaria em terras distantes. Mas esses não são os únicos casos. Há outros que merecem mais atenção,  porque podem trazer uma perspectiva mais interessante para o leitor.

Algumas relações são bastante diretas, como acontece no ensaio “Poesia proletária”, de Mário de Andrade,¹  em que o modernista brasileiro comenta alguns tópicos sobre a poesia engajada e cita diretamente o nome de Vladimir Maiakóvski; ou seja, um dos nossos maiores intelectuais dando sua opinião sobre esses escritores, suas obras etc. Dessa forma, temos uma exposição imediata da articulação entre as duas literaturas, afinal o texto nos mostra como o modernismo marioandradiano relaciona-se com todas essas propostas estéticas.
 
De um ponto de vista acadêmico, consideramos que isso daria um belo material de estudo, porém precisaria de muito cuidado em analisar: as diferentes formas e estilos de cada um dos autores, as aproximações e distanciamentos da obra de Mário naquele contexto; e, o principal, as traduções a que ele poderia ter tido acesso naquele momento, seus acertos e erros ao verter a poética para outro idioma. O pesquisador que levasse em conta todos esses fatores, certamente encontraria ali um terreno fértil para um trabalho de fôlego, talvez até suficiente para uma tese de doutoramento, caso haja interesse em explorar bem essa seara.

Um caso semelhante ocorre com ninguém menos que Antonio Candido, em dois ensaios também sobre Maiakóvski. Os comentários de Candido, diferentemente do autor de Macunaíma, são bastante centrados na sua própria relação com a poesia maiakovskiana, suas impressões e seu respeito pela interessante figura. A importância desse poeta russo fica bastante evidente quando o crítico literário, ao comentar a nova tradução de Lila Guerrero, afirma: “quando a gente quer bem a um poeta como Maiakovski, e que a escassez do material a seu respeito e das traduções de seus poemas nos impõe uma limitação quase dolorosa — tudo que venha nos aclarar alguma coisa e, sobretudo, nos trazer alguma coisa dele, é recebido com alegria”.²  De passagem, essa afirmação nos faz pensar que o estudo detido da relação de Mário de Andrade com a vanguarda russa deveria começar pela determinação das traduções a que ele teve acesso.

Esse apreço pela figura do autor de A nuvem de calças chegou a ser razão de uma brincadeira literária, como Candido chama uma de suas muitas e engraçadíssimas peripécias. Pouco depois de publicar essa crítica de rodapé a respeito da nova tradução de Maiakóvski, o crítico escreve outro artigo com o pseudônimo de Fabrício Antunes e o publica na revista Clima, criticando o seu próprio ponto de vista por meio da comparação de duas traduções. Essa história é contada por Candido em uma entrevista dada em 2015 para o jornal Sul 21.

“A tradução de um poema que em espanhol era La nube en pantalones com a francesa, intitulada L’homme nuage (O homem nuvem), dei um palpite: a tônica na tradução espanhola parecia ser a nuvem, vestida de calças, quando na verdade se tratava de homem se sentindo nuvem. A tônica se deslocava, portanto, do natural para o humano. Era um jogo mental para me divertir, mas então aconteceu o inesperado: uma senhora russa me telefonou entusiasmada, dizendo que Fabrício Antunes obviamente sabia russo e tinha razão, e me pedia para apresentá-la a ele. Eu lhe disse que se tratava de um rapaz muito esquisito do Sul de Minas, caixeiro viajante que passava raramente em São Paulo, de modo que talvez custasse a voltar, mas quando viesse eu certamente os aproximaria. Meus amigos da revista sabiam de tudo, é claro, e Gilda contou o caso a Mário, que se divertiu muito.”³
  
Além de nos mostrar a verve humorística de Antonio Candido, a entrevista esclarece duas outras coisas: o alcance de uma nova tradução de Maiakóvski e o interesse do público leitor por esse material. O ensaio de Candido confessa que a chegada de uma tradução de literatura russa era um grande evento para o sistema literário brasileiro, que poderia contar com mais informações sobre um autor tão interessante. Tratava-se de um verdadeiro acontecimento, um fenômeno a ser levado em consideração.

***

Ainda assim, nem todos os pontos de contato entre a literatura russa e brasileira são tão evidentes quanto esses dois que vimos. Alguns deles exigem bastante esforço para que sejam percebidos, uma verdadeira análise poética e estilística. Uma vez vistos, como dissemos, começam a dar origem a diálogos intensos, significativos e que lançam novas luzes sobre a compreensão das nossas próprias obras.

Se dissessem, por exemplo, que Anna Kariénina tem algo a ver com O triste fim de Policarpo Quaresma, essa declaração seria recebida com bastante estranhamento. O que poderiam ter em comum um dos maiores títulos do Realismo sobre uma Bovary russa e o moderníssimo romance sobre um patriota excêntrico?
 
Mas não é preciso cavar muito fundo para encontrar o túnel que conecta os dois romances. Se levarmos em conta que ambos são incompreendidos e esmagados pelas circunstâncias em que estão inseridos, já podemos descobrir certa semelhança no motivo de uma sociedade que restringe — e em última análise dá fim — a vida dessas duas figuras: Anna por seu amor “proibido”, Policarpo por seu excessivo idealismo. 

E não precisamos parar por aí. O estabelecimento do contato entre essas duas obras também conta com o que os teóricos russos chamam de “atualidade” (актуальность), isso é, um registro documental que comprove a relação entre os dois textos. Nesse sentido, é seguro afirmar que Lima Barreto tinha contato bastante próximo com a obra tolstoiana, como fica evidente por trabalhos como o de Maria Salete Magnoni.⁴ Além disso, também podemos mencionar o seu discurso “O destino da literatura”,⁵ em que Lima Barreto citaria diversos trechos do ensaio O que é arte?, de Lev Tolstói.

À luz dessas considerações, poderíamos estabelecer uma base sólida para analisarmos, por exemplo, o momento em que Policarpo Quaresma abandona o meio urbano pelo Sítio do Sossego, onde pretendia vivenciar suas idealizações do campo. Nesse fugere urbem, assim como em todo o resto do romance, Policarpo não consegue atingir seu objetivo e acaba por perceber que a realidade da vida camponesa é muito menos idílica do que ele esperava. Se compararmos essa representação crítica do campo com a que Lev Tolstói propõe em seus romances — geralmente idílica, integral e contraposta à decadência moral da cidade —, não haveria aí um diálogo interessante e polêmico? 

Para não nos distanciarmos do romance que havíamos mencionado anteriormente, há em Anna Kariênina um personagem que parece encarnar essa idealização do campo: Konstantin Dmitrievitch Levin. A crítica especializada⁶  frequentemente aponta Levin como um contraponto à protagonista do romance e, por vezes, como uma espécie de síntese dos ideais de Lev Tolstói. Levin é marcado pela reconstituição da integralidade que o homem moderno teria perdido no seu processo de modernização, o que em muito se deve pela reconexão com a terra, o trabalho manual e, principalmente, com o camponês, considerado por Tolstói como o verdadeiro povo russo. 

Já em Lima Barreto, o distanciamento de Policarpo com a realidade campestre impossibilita sua reconexão com esse universo. Suas ideias não são aplicáveis, suas expectativas não são atendidas e, simbolicamente, suas plantações não vingam. Além disso, a vida política dos municípios acaba por engolir Policarpo e expulsá-lo desse ambiente, também frustrado. A nosso ver, a representação limabarretiana do campo não é um lugar acolhedor para os intelectuais que o romantizam e idealizam, mas para pessoas muito mais práticas e utilitaristas.

Se compararmos as duas definições muito breves e esquemáticas, podemos ver uma contraposição praticamente diametral. Em Tolstói, o campo é o espaço de cura do homem moderno, onde esse poderá encontrar a integralidade que lhe fora arrancada. Em Lima Barreto, a reintegração do homem moderno pela experiência da vida camponesa é impossível, e sua tentativa leva mais à frustração que ao sucesso. Dito de outro modo, duas visões de mundo se manifestam na representação do campo: Tolstói, mais esperançoso; Lima Barreto, mais pessimista. 

É claro que, aqui, não teríamos espaço suficiente para desenvolver esse paralelo de maneira detida e profunda, seria preciso um longo estudo sobre diversos elementos na poética de cada autor, como a função da fuga para o campo em Tolstói e em Lima Barreto, e até mesmo a relação dos autores com o meio urbano. Ainda assim, deve ter ficado mais claro que dois autores que a princípio não pareciam ter qualquer relação, pouco a pouco começam a travar um diálogo, ainda que tenso. Nesse sentido, a análise tem como função encontrar esses elementos de um plano mais profundo da leitura para trazer à tona essas intertextualidades que talvez não fossem intencionais, mas que certamente podem ser estabelecidas através do próprio texto. E, dessa forma, nascem novas compreensões, tanto dos nossos autores quanto dos estrangeiros, enriquecendo, assim, a leitura de ambos.


Notas:

1 Em Andrade, Mario de. Táxi e crônicas no Diário Nacional. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

2 Os dois textos referidos podem ser encontrados no blog Literatura Russa — aqui.

3 A íntegra da entrevista também está disponível online

4 Trata-se do texto “Lima Barreto dialoga com a concepção de arte de Leon Tolstói”, publicado aqui, na revista Teresa, n. 2, 2001.

5 O texto de Lima Barreto encontra-se reproduzido no dossiê Visões inquietantes Lima e Lins: elogio da escrita, da revista Literatura e Sociedade, v. 28, n. 37. 

6 Como, por exemplo, Guilhem Pousson em “Tolstoy against things: ostranenie, pragmatic conversions and natural attitude”, publicado aqui na Revista de Literatura e Cultura Russa, v. 15, n. 26, 2024.



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