Cíntia Moscovich

Cíntia Moscovich.



Poderia ter seus sessenta, no máximo sessenta e cinco anos. Beleza, não; ao menos não se diz de um homem daquela idade que é bonito.

Demonstrava, no entanto, a altivez de quem ocupa uma posição. Não era alto, mas o corpo tinha contornos de firmeza. Os óculos de hastes finas eram um halo a emoldurar os olhos cinzentos; os cabelos, raros; a testa alteada como a de um fidalgo. O vinco entre as sobrancelhas tornava-se um exaspero sobre o peso do rosto.

(O tempo e a memória In Arquitetura do Arco-íris, fragmento)


Assim começa um dos contos dessa escritora gaúcha que escreve uma literatura dos que são deixados às margens sociais - podemos assim dizer. Os homossexuais, os gordos etc. são sempre os sujeitos da vez em seus romances e contos.

Em sua obra Por que sou gorda, mamãe? publicado em 2006 pela Record, Cíntia coloca-se como narradora em primeira pessoa criando um jogo de fundir a ficção com a realidade. 

O romance é estruturado como uma carta à mãe em que a narradora e protagonista - que não menciona seu nome - anuncia o início de um severo regime e o começo da escrita de suas memórias como forma de investigar as causas da obesidade. 

Menina judia de classe média, não deixa de mencionar a difícil chegada de seus antepassados ao país, as histórias das avós - a Gorda e a Magra - e o carinho que guarda por elas, as saudades do pai, já morto, a adolescência tresloucada mas, sobretudo, sempre, em cada página, em cada linha, o que relembra é a dificuldade de relacionamento com a mãe. 

É um livro de silêncios que se desloca em falas pelo tom do confessional que está associado ao gênero textual da carta.

“Entenda, a senhora: não tenho jeito ou paciência de fazer de meu amor substância, exceto por algo de meu tempo ao telefone. Fora isso, mamãe, fora do contato por um fio, a porta da rua vira mais do que serventia da sua casa, e o amor de uma filha por sua mãe é só pretexto para a ficção. Por isso, acho, virei escritora. Talvez por isso eu tenha virado uma escritora com corpo de prima-dona: a boca preenchida tem contato direto com o coração.”

“Vovó fora acusada de desamor anos a fio, eu já havia escutado aquela história antes. Mas parecia naquele momento algo mais severo e grave. A vó continuou com o rosto escorado pela mão olhando os bicos dos sapatos, como se tudo dependesse dos bicos dos sapatos – e eu me meti numa conversa de adultos, numa conversa que não era minha, me interpus entre vocês duas, e pedi que a senhora, mamãe, parasse com aquilo, a senhora estava maltratando a avó. (...) E foi só então que a senhora viu que eu estava na sala, e levantou a mão para mim, como quem vai desferir um tapa, e eu cobri o rosto com o braço, e o tapa não veio, felizmente não veio, e a senhora levantou o queixo, orgulhosa como quem diz a verdade de uma vida, e passou os dedos entre os cabelos, ajeitando o penteado desfeito à altura da nuca, e saiu dali com passos pesados de neurose, rejeição e trauma.”

(Por que sou gorda, mamãe? fragmentos)


A temática do relacionamento afetivo já estava presente na primeira narrativa longa de Cíntia, Duas Iguais, lançada em 1998, onde duas meninas lutam por um amor impossível. 

Além das inúmeras antologias das quais a escritora participou, ela também publicou, O reino das cebolas, seu primeiro livro solo, em 1996. Esta obra mereceu indicação ao Prêmio Jabuti. 

Em outubro de 2000, lançou o livro de contos Anotações durante o incêndio, com apresentação de Moacyr Scliar e reúne onze textos de temáticas diversas, com destaque para o judaísmo e a condição feminina, merecendo o Prêmio Açorianos de Literatura.

Nascida em 15 de março de 1958 na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Cíntia Moscovich é escritora, jornalista e mestre em Teoria Literária, tendo exercido atividades de professora, tradutora, consultora literária, revisora e assessora de imprensa.

Ainda quanto sua obra Cíntia publicou em 2004, a coletânea de contos Arquitetura do arco-íris, livro que lhe valeu o terceiro lugar em contos no Prêmio Jabuti, além da indicação para o Prêmio Portugal Telecom e para a primeira edição do Prêmio Bravo!.

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