Pergunte ao pó, de John Fante

Por Alejandro Jiménez



Para ninguém é um segredo que a maioria de nós chegaram até John Fante graças a Charles Bukowski. Fante, ao meu ver, é o mais incrível e imperdoável caso de esquecido numa época; é uma página da literatura estadunidense que, todavia, hoje não alcança superar esse estigma, nem com as sucessivas reedições de sua obra, nem por toda a crítica a seu respeito produzida mesmo aquela escrita por críticos que fingem conseguir alcançar sua compreensão e retirar o escritor e a obra do tempo ou da realidade onde estão metidos.

Mas, além disso, o caso Fante é o do escritor que – por superior ironia – a época o desconhece exatamente porque ele a conhece tão bem, tão descarnadamente bem, e bem à sua maneira, o que resulta num nome perigoso de desbravá-lo. A obra do escritor está inscrita entre aquelas sobre as quais é permitido afirmar que de maneira contundente que desenvolve uma preocupação com os destinos desses miseráveis que vivem à própria sorte, com a necessidade pintada em seu cabelo, entre o fumo e bebida nas esquinas de uma cidade que não lhes pertence, seus destinos, digo mais, suas histórias, são matérias que devem servir ao romance; que o romancista tem de contá-las.

John Fante foi filho de emigrantes italianos, mas estadunidense de nascimento. De vida sempre humilde, trabalhou como roteirista em Hollywood ao mesmo tempo em que se dedicava à literatura. O romance em questão – Pergunte ao pó – é o segundo título que integra a tetralogia protagonizada por Arturo Dominic Bandini, um escritor que sonha com o reconhecimento desde os subúrbios mais pobres de Los Angeles.

Tal como afirmou Alessando Baricco numa bem acertada síntese do romance, em Pergunte ao pó há, ao menos, três grandes transversalidades. Em primeiro lugar, a que tem a ver com a vida intelectual do protagonista, o que equivale a dizer, seu trabalho e busca como escritor; logo, a problemática referente à impossibilidade do amor, que vem na mão de uma experiência difícil e incontínua com Camilla López; e, finalmente, o aspecto espiritual que comporta dimensões especiais em relação a Bandini com o catolicismo e as noções de pecado e redenção que aí se desprendem.

*

Arturo Bandini chegou em Los Angeles decidido a alcançar o renome literário. Instalado no número 678 de Alta Loma, uma suja e pobre pensão de Bunker Hill, nosso autor se debate entre o sucesso de sua primeira publicação, O cachorrinho riu, na revista de J. C. Hackmuth – seu mentor e descobridor –, e a necessidade de seguir escrevendo apesar da fome, da má acomodação e da falta de ideias.

No decorrer de sua busca e decidido a não perder a relação com seu editor, escreve constantemente a ele cartas de admiração, cartas com perguntas, outras pedindo conselhos e, assim, estabelece uma contínua cadeia de correspondências que não se rompe apesar das sensíveis e concretas respostas de Hackmuth. Uma daquelas cartas, a mais extensa, se converterá na segunda publicação de Bandini, As colinas distantes perdidas pela que recebe 175 dólares que desaparecem imediatamente entre álcool, prostitutas, roupa e algumas quinquilharias.



Sem dúvida, o verdadeiro triunfo de Bandini será a publicação de seu primeiro romance. Uma história que escreveu depois de sua experiência com Vera Rivken, uma mulher afetada emocionalmente, mas em quem o autor encontra a força de uma ideia original. Assim, permanece aberta a possibilidade dessa carreira meritória que desde sempre Bandini pressentia nas entrevistas futuras, nas resenhas de seus livros e nas biografias:

“Repórter: Sr. Bandini, como veio a escrever este livro que lhe deu o Prêmio Nobel?
Bandini: O livro se baseia numa experiência real que me aconteceu certa noite em Los Angeles. Cada palavra daquele livro é verdadeira. Eu vivi aquele livro, eu o experimentei” (p.25)

A posição de Bandini sobre a escrita está muito bem definida. Em primeiro lugar apenas deseja escrever algo que seja impactante para o mundo, algo que possa chamar sem exagero: “o que não foi dito desde Joyce”. Por isso Bandini zomba dos contos de Sammy, o amigo de Camilla; por isso, a cena inesquecível com uma menina assustada e o autor, de um lado para outro, pensando sobre as dedicatórias. E, por outro lado, aquela do dinheiro recebido pelas publicações que, sem dúvidas, ocuparia uma análise à parte; isto é, a pouca importância que Bandini dá ao dinheiro recebido pelos seus contos: 10 dólares, 100 dólares ou nada. O sempre relevante, o recorrente, é poder demonstrar que ele tem algo notável para dizer.

Sobrará dizer que, nisto, entre Bandini e o mesmo Fante não existem distâncias. Com muita razão se acreditou num exagerado conjunto de coincidências que fazem ver o primeiro como alterego de seu criador. O Fante que tem de vender seu talento à indústria de Hollywood para poder sobreviver; o Bandini que deve escrever uma carta à sua mãe para poder comer; o Fante que enviava infrutuosamente contos à The American Mercury; o Bandini que cruzava os dedos quando alguém se aproximava com alguma carta na caixa dos correios.

*

A parte do Bandini amante, ou o emocional da personalidade e da vida da personagem é muito mais complexa que a intelectual. Ele conhece no Columbia Buffet, um café sujo onde foi parar algum dia, Camilla López, uma mexicana que o impacta com a capacidade de seu caráter. Olhares, palavras, insultos, golpes, essa relação estará marcada por um contínuo ir e vir entre a total indiferença e a abnegação, entre o profundo afeto e os mais viscerais desejos de morte.

Camilla está envolvida com Sammy, seu colega de trabalho, mas Bandini só saberá disso depois de muito tempo, quando se vê perdidamente apaixonado por ela. Mas, como Sammy tampouco lhe corresponde e Camilla a Bandini, este aspecto do romance, o do amor, se converte num espaço de desencontros, de temores e impaciências. Porque são, precisamente estes os elementos que acompanham a personagem principal desde suas primeiras visitas ao café para paquerá-la, nos seus passeios com ela pela praia, em sua passagem pela depressão e os hospitais psiquiátricos, até além do sul, quando...

E certamente está também aquele preâmbulo e o marco que sempre acompanha a relação entre Camilla e Bandini: a falta de experiência que tem o escritor sobre as coisas do sexo, o que, inclusive, a leva pensar sobre a possibilidade de ter se envolvido com um gay. Ou aquele tipo que sai em busca de alguma prostituta para acabar pagando quem-sabe-quanto-mas-além-do-normal apenas para trocar algumas palavras de desabafo ou tomar um champanhe. Aquele de ir até Long Beach para iniciar-se sexualmente com uma desesperada de nome Vera e que logo se arrepende e sente-se sujo. Mas sempre, além de tudo, a convicção do amor existe, existe na impossibilidade de realizá-lo:

“A noite toda, choramos e bebemos, e bêbado eu podia dizer as coisas que fervilhavam no meu coração, todas aquelas palavras bonitas e os símiles inteligentes, porque você chorava pelo outro sujeito e não ouvia uma palavra do que eu dizia, mas eu as ouvi, e Arturo Bandini foi muito bom naquela noite, porque falava com o seu verdadeiro amor, e não era você, e não era Vera Rivken tampouco, era apenas o seu verdadeiro amor” (p.162-163).

*
Bandini é católico. Não é um crente fervoroso, mas ao menos vai à missa na maioria dos domingos; mesmo que isto seja apenas para ver as mexicanas, não é um gesto para ser lido apenas com essa visão interesseira. E, sem dúvidas, os sentimentos de culpa, a busca por se redimir dos erros são uma constante na narrativa. À metade de seu drama, está nosso autor em Long Beach depois de cometer um sacrilégio na casa de Vera Rivken e de imediato a terra começa a balançar, e o solo se abre, e as camas começam a sair pelas janelas enquanto Bandini acredita que tudo aquilo é por sua culpa e bate no peito porque é uma culpa difícil de suportar.

Temos um Bandini  que acredita que é pecado roubar uma garrafa de leite mesmo pressionado pela fome; o Bandini que atravessa a cidade para encontrar alguma capela mais intimista e reza com fervor para que Deus não descuide das coisas em casa e sua mãe não morra. E, há o Bandini que também luta contra sua outra face, contra seu rosto ateu, o que lhe permite sair pelas ruas em busca de prostitutas, de fumar maconha e sentir-se um miserável. O Bandini que acredita haver voltado para a luz:

“Este é o mar, e este é Arturo, e o mar é real e Arturo o considera real. Então me afasto do mar e, por toda parte onde olho, vejo terra; sigo caminhando e a terra vai se estendendo até o horizonte. Um ano, cinco anos, dez anos e não vi o mar. Digo a mim mesmo, mas o que aconteceu ao mar? E respondo: o mar está ali de volta, de volta no reservatório da memória. O mar é um mito. Nunca houve um mar. Mas havia um mar! Eu lhes digo que nasci à beira-mar! Banhei-me nas águas do mar!” (p.120)

*

Pergunte ao pó é um romance apaixonante; Bukowski tinha razão. A linguagem simples, e não simplista, objetiva, onde a luta entre as palavras é ao mesmo tempo a luta de seus protagonistas pela sobrevivência, por fugir da loucura e da miséria cotidianas. Precursor de Bukowski, e da Geração Beat, o romance de Fante é a palavra de todos aqueles que hão perdido a causa da exagerada propaganda sobre os “grandes acontecimentos”.


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