A vida e a poesia de Fernanda de Castro

Por Maria Vaz



Maria Fernanda Teles de Castro de Quadros Ferro, mais conhecida por Fernanda de Castro, foi uma poetisa, romancista portuguesa que se dedicou, igualmente, ao teatro, à ficção, à tradução e à literatura infantil. Dotada de uma personalidade ecléctica, o vasto leque de saberes fez com que publicasse, inclusive, um livro de introdução à botânica.

Nasceu em Lisboa, corria o mês de Dezembro do ano de 1900, e faleceu em Dezembro de 1994. O seu pai era oficial da Marinha, motivo pelo qual teve uma infância e pré-adolescência povoada de mudanças de casa, onde constam cidades como Portimão, Figueira da Foz e Lisboa. Viveu ainda na Guiné, país que deixou aos doze anos, altura em que se tornou órfã de mãe. Aos 22 anos de idade, casou com António Ferro que, mais tarde, se viria a tornar um homem influente no departamento de informação e propaganda do regime salazarista.

Talvez pelo facto de perdido a mãe tão jovem e por uma ligação muito forte com a religião cristã, desde sempre envidou esforços em iniciativas que envolviam crianças, tendo-se tornado fundadora e presidente da Associação Portuguesa de Parques Infantis.

Não obstante, a sua obra literária começara cedo, bem como as distinções pelo seu mérito. Desse modo, foi granjeada com o primeiro lugar no concurso de originais do Teatro Nacional pela sua peça Náufragos corria o ano de 1919. Os prémios seguiram-se e, em 1945, tornou-se a primeira mulher a ser distinguida com o Prémio Ricardo Malheiros, atribuído então pela Academia de Ciências de Lisboa, pelo romance Maria da Lua. E, após ter sido premiada no teatro e na literatura, em 1965, venceu o Prémio Nacional de Poesia. Foi ainda uma das fundadoras da Associação Portuguesa de Autores.

Fernanda de Castro, 1942. Foto: Cecil Beaton

Centraremos, contudo, a nossa análise na sua obra poética: se, por um lado, a sua poesia se encontra impregnada de temáticas que percorrem a abstração das ideias, o binómio interioridade/exterioridade, a solidão ou a condição feminina da época, por outro, a poesia de Fernanda Castro não se deixou submergir pela sucumbência ante a tristeza ou os pequenos desagrados da vida quotidiana. Como afirmou David Mourão Ferreira pela altura em que a poetisa comemorou cinquenta anos de obra literária:

"Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema, que o Sol ao meio-dia, olhado de frente, não é um motivo menos nobre do que a Lua à meia-noite".

Fernanda de Castro e o poeta David Mourão-Ferreira

O seu vasto leque de preferências fez com que ficasse conhecida por organizar tertúlias culturais na sua casa em Lisboa, no Bairro Alto. Dessa variedade de gostos resultaram relações de amizade com grandes vultos da filosofia, da arte e da literatura internacional, em especial com nomes do modernismo brasileiro, como Carlos Drummond de Andrade.

Fernanda de Castro era uma mulher muito apegada ao cristianismo e não conseguiria libertar-se das circunstâncias sócio-culturais que a rodearam, muito embora transmitisse, em alguns dos seus poemas, a ideia de que a condição feminina era difícil. Veja-se, nesse sentido, a seguinte passagem do seu poema "Perdão":

Perdão para esta culpa original,
para este longo e complicado mal:
o crime sem perdão de ser mulher.

A sua obra poética era dominada pelo diálogo com a abstração que transcende a inteligência ligada ao plano do concreto: uma abstração povoada de indignações que vagueiam entre a fé e a dúvida. Nesse sentido, leia-se o seguinte trecho da sua obra Asa no espaço:

Os anos são degraus, a vida escada.
Longa ou curta, só Deus pode medi-la.
E a Porta, a grande Porta desejada,
Só Deus pode fechá-la,
Pode abri-la.

São vários os degraus; alguns sombrios,
Outros ao sol, na plena luz dos astros,
Com asas de anjos, harpas celestiais.
Alguns, quilhas e mastros
Nas mãos dos vendavais.

Mas tudo são degraus; tudo é fugir
À humana condição.
Degrau após degrau,
Tudo é lenda ascensão.

Senhor, como é possível a descrença,
Imaginar, sequer, que ao fim da Estrada
Se encontre após esta ansiedade imensa
Uma porta fechada
E mais nada?

Não obstante, é o mundo dos afetos que faz germinar a maioria dos seus versos, ora embebidos no dualismo razão / emoção, ora submergidos pela saudade. Muitas vezes essa saudade já existente, aumentada pelo prenúncio de um desapego futuro inevitável, que fazem divagar emoções em versos, como os seguintes, da sua obra Antemanhã:

Não vás para tão longe!
Vem sentar-te
Aqui na chaise-longue, ao pé de mim...
Tenho desejo doido de contar-te
Estas saudades que não tinham fim.

E dito isto, resta-nos um plano de interioridade incomensuravelmente mais fértil do que qualquer exterioridade, acompanhado da profundidade poética que só tem quem sente além da razão. E isso torna-se nítido neste pequeno excerto do poema "Eu, saudosa":

As coisas falam comigo
numa linguagem secreta,
que é minha, de mais ninguém.
Quero esquecer, não consigo,
Vou guardar na mala preta 
esta dor que me faz bem.

É desse sentimento, acima retratado, de profundidade profética que encontramos fundamento para a crítica do pensamento enquanto tentativa adogmática de nos contentarmos com uma verdade inexistente, acerca dos assuntos mais complexos, tanto da nossa existência individual omo, abstractamente, dos enigmas do universo. Das filosofias que nos fazem indagar os porquês incompreensíveis, ao mesmo tempo que os 'sentidos' nos atiram para o infinito, porque infalsificáveis e mais versímeis do que qualquer forma articulada em palavra, fica a seguinte passagem da obra Exílio: 

Pensar! Como se o humano entendimento
para tanto chegasse! Meditar
em sofás de ridículas saletas
no sábio movimento dos planetas.
Filosofar, oh irrisão,
enquanto mal ou bem
se faz a digestão,
sobre a morte, o devir,
o mistério do ser e do não ser,
e tudo isto a sério, sem sorrir,
como se enfim tudo estivesse dito:
o Caos, a Criação, Deus e o Infinito.

(...)

Compreendi então
que o essencial não era compreender
mas sentir e aceitar
a vida e a morte, o bem e o mal,
a flor, o lugar
e a ignorância total.
Não mais filosofias de vaidoso esteta
e não mais este orgulho: sou poeta.
Razão
tem-na, talvez, o louco sem razão,
tem-na o monge na cela,
o cego de nascença, a pedra, o sapo,
a boneca de trapo.

Em jeito de conclusão, terminamos com a alegria e a serenidade que Fernanda de Castro sempre procurou: essa passagem de força e de capacidade de regeneração, de energia, de irrelevância e de perdão, porque como bem escreveu, "se os poetas dessem as mãos e fechassem o Mundo no grande abraço da poesia cairiam as grades das prisões". E o importante deveria ser "amar por mil razões e sem razão" e de "ver na própria sombra a claridade", sem esquecer o poema de alegria que, abaixo, vos deixamos.

Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.
Doido de prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.

Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.

(...)

Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte
é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir
                                                o tédio,

Esse estranho cilício,
e de entregar-me à vida como a
                                                um vício.

Alegria!
Alegria!


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