A Desobediência Civil / A Defesa de John Brown, de Henry David Thoreau

Por Pedro Belo Clara



Falamos, e é importante que se comece por sublinhá-lo, de um dos maiores autores norte-americanos de sempre. Não só o homem de vivência simples que nasceu em Concord, estado de Massachusetts, em 1817, e que se tornaria num celebrado transcendentalista, naturalista, filósofo e até poeta, certamente mais amado depois da sua precoce morte do que em vida, conforme o desabafo que a sua irmã, em jeito amargamente crítico, registou após o falecimento do autor.

Falamos de muito mais. Essencialmente, de um espírito arguto e esclarecido, de uma mente capaz de produzir a mais inspirada das prédicas, de um coração irmão da própria terra, de um carácter ímpar no que toca à integridade da sua inata nobreza. São figuras assim – não se estranhe – capazes de abandonar tudo e viver durante dois anos numa cabana junto de um rio «para sugar todo o tutano da vida», e então regressar à cidade como se nada tivesse acontecido. Felizmente para todos nós, algo de muito significativo aconteceu graças a essa notória experiência. E até mereceu um nome, veja-se bem. Evidentemente, referimo-nos a Walden ou A vida nos bosques, a obra-prima de Thoreau, um livro que, além de lido, atinge todo o seu esplendor quando sem reservas consegue ser vivido.

Já o presente trabalho, diga-se, enveredou por um trilho distinto. Mas a pegada que ao longo do rumo se imprime não permite dúvida quanto ao dono da ilustre bota.

Nasceu a sua ideia quando o próprio Thoreau, recusando pagar impostos que iriam subsidiar campanhas contra as quais se opunha, passou uma noite na cela da prisão local. O próprio episódio é relatado pelo autor com grande relativismo e até desprezo contra a força opressora. Dirigia-se a uma loja para levantar um par de sapatos que mandara consertar quando foi detido. Alguém pagou-lhe a caução, e mal saiu do cárcere retomou o caminho do sapateiro, como se nada de extraordinário tivesse sucedido. A partir daí, o próprio confessa: «Vi que o Estado era um deficiente mental (…). Perdi desde então o pouco respeito que lhe guardava e passei a ter pena dele».

Escrito em estilo de discurso, por estas linhas discorrem as principais objecções que o autor sentia em relação à sociedade da época. Contudo, devido à sua profundidade, o texto garante um estatuto de incontornável ou, em derradeira instância, de imortal – pelo menos tanto quanto uma obra literária o consegue ser.

Logo nas primeiras linhas, sem qualquer contenção, é exposto: «O melhor governo é o que não governa» – refere, numa implacabilidade quase anarquista. Para, de seguida, acrescentar como quem vaticina: «Quando os homens estiverem devidamente preparados, terão esse governo». Será, por isso, um governo da consciência, fiel à ordem natural do mundo e, claro, do Homem, já que este terá finalmente reaprendido a harmonizar-se com o todo a que pertence. Daí que seja justa a questão: «Será a democracia, tal como a conhecemos, o último melhoramento possível do acto de governar?». Uma retórica que se assume central neste magnífico ensaio de Thoreau.

Espantar-se-ia, por certo, o leitor se soubesse que tal exemplar serviria, anos mais tarde, de grande inspiração a figuras de grandíssimo revelo como Tolstoi, Martin Luther King ou Gandhi. Na verdade, muitos afirmam, e com justa razão, que A Desobediência Civil é um guia indispensável a todos aqueles que se insurgem contra as injustiças sociais e que a elas pretendem colocar um fim (ou, pelo menos, contribuir para o seu esmaecimento).

Mediante o que já se partilhou, pergunte-se: o que mais encerra este texto? O que detém de tão precioso que justifique a sua celebridade?

Ainda que focada na sociedade americana do século XIX, onde a escravatura era uma desprezível realidade e a injusta guerra com o México um mero embuste que ocultava avaras intenções, de cada linha sobressai um gritante apelo ao não-conformismo, o que torna este texto essencial para todo aquele que desejar seguir a via da revolta pacífica. De facto, se o indivíduo se abstém, permite, através da sua passividade, uma livre acção ao Estado que supostamente o governa. No fundo, tal traduz-se no passar de um livre-conduto, na cedência sem reservas do direito de escolha a quem é eleito para decidir em nome de todo o cidadão. Mas até que ponto tal permissividade deverá existir? Ou, no mínimo, ser tolerável? Como é que uma resistência não violenta poderá alternar o curso do rio social?

Sejamos sinceros: qual destas questões não encerra uma espantosa actualidade? Ainda que, vaticinando novamente, afirme que o «único lugar dos homens honrados será a prisão», pela fluidez e serenidade do seu discurso, profundamente humano e sentido, Thoreau explana e partilha a sua dourada visão. A sociedade poderá ser moldada em nossas conscientes mãos através de gestos e actos que primem pela coragem e pela diferenciação. Quem, de entre nós, será intrépido o suficiente para os assumir?

Seguidamente à conclusão deste texto, encontra-se A Defesa de John Brown. Como já foi possível constatar, a edição da portuguesa Antígona decidiu juntar dois dos mais emblemáticos textos de Thoreau.

Este em concreto foi lido em 1859 aos cidadãos de Concord, Massachusetts, e revela sem reservas uma notável compaixão por John Brown e por aquela que se instituiu a sua missão de vida, sem conseguir reter um breve lamento pela injustiça do seu destino. E isto porque Brown, um pouco à semelhança de Thoreau, foi um homem que se insurgiu contra o governo de então, contra as suas leis sujas e as suas premissas nitidamente parciais. Dada a realidade de então, auxiliou na libertação e fuga para o Canadá de centenas de escravos. Contudo, acabou sendo capturado (num ataque que ceifou a vida de dois dos seus filhos), julgado e condenado à morte. Quinze dias após o lamentável acontecimento, o texto de Thoreau veio a público – tornando-se assim o primeiro elogio ao heroico acto do nobre capitão.

A  história de Brown, que cristalizou o seu legado, permaneceu no tempo. Foi um acontecimento deveras célebre que tocou a sensibilidade de diversas personalidades, como o escritor francês Vítor Hugo. Este, numa carta publicada num jornal norte-americano, solicitava expressamente que Washington não assassinasse o novo Spartacus. Em vão, contudo. Mas, retirando todo e qualquer aspecto de mártir à figura de John Brown, existe, na revolta de Thoreau, um notório desejo de harmonia e de evolução social – aquilo que profundamente, como homem e cidadão, mais ansiava.
Importa acrescentar que a obra, assim proposta para a edição portuguesa em 2005, colecta nas suas páginas finais algumas imagens de postais e outras ilustrações da época referentes à escravidão e à luta do capitão Brown, capas de jornais traduzidas onde o caso é referido, o discurso do acusado no tribunal da Virgínia (cujo um trecho vale a sua transcrição: «(…) se julgais mesmo necessário dar a minha vida para auxiliar os fins da justiça, e juntar o meu sangue ao sangue dos meus filhos e ao sangue dos milhões cujos direitos são, neste país de escravos, violados por leis perversas, cruéis e injustas – então que assim seja!») e a última carta que dirigiu à sua esposa e restantes filhos vivos, redigida num tom impressionantemente sereno e solene, mas pleno de uma louvável força vital.

Para finalizar, importa reter que, muito para além de um mero idealismo utópico, esta obra, assim apresentada, revela-se um verdadeiro hino à revolta pacífica, um mote à acção e à reflexão da real importância que cada um de nós detém na sociedade a que pertence.

Tanto ontem como hoje, é justo afirmar que as firmes e sempre inspiradas palavras de Thoreau permanecem vivas no coração daqueles que sem reservas as acolhem.

«Não haverá Estado realmente livre e esclarecido, enquanto o Estado não reconhecer o indivíduo como poder superior e independente (do qual deriva todo o poder e a autoridade que o Estado detém) e enquanto não o tratar como tal. Dá-me prazer imaginar um Estado que possa finalmente fazer inteira justiça aos homens e tratar os indivíduos com respeito, como os vizinhos entre si.»

Ligações a esta post:
>>> Henry David Thoreau: o libertário para uma vida sublime

* Este texto aparece pela primeira vez no extinto site Amanhã ou depois e foi revisado pelo autor para reapresentação aqui.

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Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservam-se a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogs literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012), O velho sábio das montanhas (2013), Cristal (2015) e Quando as manhãs eram flor (2016). Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blog pessoal do autor – Recortes do Real; Pedro organiza também o Uma luz a Oriente, onde partilha poemas de origem oriental, e The beating of a celtic heart, blog dedicado a traduções de poemas e canções de origem celta.

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