Molière, o desapiedado satírico sempre atual

Por Alberto López





Molière nunca sai de moda. Suas obras cômicas são mais interpretadas que as de qualquer dramaturgo atual porque soube estabelecer meio caminho entre a denúncia e a sátira, a ridicularização e a correção dos costumes exagerados da França de meados do século XVII. Não em vão, o autor francês passou para a história como um dos escritores mais universais e traduzido para todas as línguas.

Ele próprio se encarregou de protagonizar muitas de suas obras e, fazendo seu o lema dos teatros italianos ambulantes que percorriam a França em princípios do século, conseguiu “corrigir os costumes rindo” à base de crítica e situações absurdas entre suas personagens, embora não sem atravessar misérias e desencantos ao longo de sua vida.

Nasceu numa família sem recursos mas bem relacionada com a realeza pelo trabalho do pai como tapeceiro, mas desde pequeno, e por influência de seus tios, o teatro lhe chamou a atenção ao ponto de se dedicar a ele por inteiro sem querer saber de nada do ofício que herdaria do pai nem de uma profissão que poderia desempenhar a partir de seus estudos. Com o tempo também chegou à realeza por suas obras teatrais, que contaram por igual, com favor real e com a censura, esta sempre vencida com admiração e aplauso.

No dia 10 de fevereiro, cumpre-se o aniversário de estreia de sua última obra, O doente imaginário (1673) que ele próprio protagonizava. Em pleno sucesso de sua carreira, Molière satirizava nesta comedie-ballet em três atos a profissão médica através da personagem de Argan, um hipocondríaco que trata de convencer sua filha que abandone seu verdadeiro amor e se case com o filho de seu médico para poupar nos gastos com a saúde. Na quarta reapresentação da obra, Molière sofreu em cena um agravamento da tuberculose que padecia e, levado para casa, morreu sete dias depois.

Molière foi desapiedado com o pedantismo em suas obras, também com a mentira e com os ares de grandeza no seio da sociedade através de suas satíricas personagens, exaltando a juventude que queria libertar do que ele considerava restrições absurdas. Seu papel de moralista terminava no mesmo lugar em que o definiu: “Não sei se é melhor trabalhar em retificar e suavizar as paixões humanas ou pretender eliminá-las completamente”.

Jean-Baptiste Poquelin, seu verdadeiro nome, nasceu em Paris em 15 de janeiro de 1622. Foi do tapeceiro seu pai que herdou o nome. Sua mãe, que morreu quando ele tinha só dez anos, era Marie Cresse. Estudou com os jesuítas em Clermont e em 1642 se formou em Direito pela Universidade de Orleans, antes de tentar seguir os passos do pai, o que conseguiu ainda nesse mesmo ano com o posto de tapeceiro real de Luis XIII.

Neste momento conheceu e se relacionou com os comediantes Béjart e, da influência dos tios que o levavam desde pequeno a ver muitas obras no teatro, decidiu abandonar sua acomodada posição e buscar seu lugar vocacional no palco como ator e como escritor.

No ano seguinte, em 1643, constituiu junto com a família Béjart, o Ilustre Teatro, onde apaixonou-se pela diretora, Madeleine Béjart. E um ano depois passou a dirigir a ordem. O início de tudo foi difícil e só serviu para acumular dívidas e numerosos fracassos. Foi nesse momento quando Jean-Baptiste adotou o nome artístico de Molière para não prejudicar sua família, já que o teatro não era uma profissão bem vista. Dentre os muitos fracassos teatrais também existiram os pessoais: o dramaturgo chegou a ser preso por vários dias por não pagar suas dívidas.

Ao sair da prisão, deixou Paris e se tornou num ator errante durante cinco anos pelo interior do país. Em 1650 Molière voltou a assumir a direção da companhia teatral e nos anos seguintes escreveu suas primeiras farsas e comédias: L’étourdi e Le dépit amoureux. Nelas, seu talento para o cômico como ator e escritor começou a despertar as simpatias do público e sua fama chegou até ao irmão do rei, Felipe I de Orleans. Mas, só nove anos depois, como As preciosas ridículas, conseguiu o êxito total – confirmava sua reputação e obtinha o favor do mesmíssimo rei Luis XIV, ante quem interpretou uma tragédia que o aborreceu e uma farsa que o divertiu muitíssimo. Assim foi como se instalou no Palácio Real em 1660.

Aí, dois anos depois se casou com a irmão de Madeleine Béjart, Armande, o que levou a tradicional sociedade parisiense passar a considerá-lo um libertino e a temerem sua nefasta influência sobre a casa real. Estas suspeitas e receios foram uma grande fonte de inspiração para o dramaturgo, que começou a escrever novas obras satíricas e a ridicularizar através da comédia e das situações absurdas aqueles que criticavam sua vida e seu trabalho.

Em 1664, o rei o nomeou responsável pelas diversões da corte e Molière colocou em marcha O improviso de Versalhes e representou A princesa Élida, em que mesclava texto, música e dança. Também nesse mesmo ano escreveu Tartufo, que denunciava a hipocrisia da Igreja.  A obra casou grande escândalo e foi censurada durante cinco anos, embora tenha sido interpretada em muitas sessões privadas.

Um ano depois escreveu Don Juan, peça inspirada em El Burlador de Sevilla, de Tirso de Molina. Foi quando sua companhia teatral se tornou Companhia Real e à medida que seu sucesso aumentava sua saúda começava a sofrer contratempos devido à tuberculose; o diagnóstico da doença levou a atuar esporadicamente, embora não tenha parado de escrever. Algumas de suas melhores peças são deste período – entre elas está O Misantropo.

Também escreveu Médico à força e voltou a apresentar Tartufo, mas com outro título o que de nada valeu: a obra foi proibida e ficou silenciada até 1669, o ano de seu auge. Nele, se apresentou O anfitrião, Georges Dandin, O senhor de Pourceaugnac e O avarento, outro de seus melhores trabalhos.

Sua última obra O doente imaginário, dizíamos, marcou sua morte. Tinha 51 anos. O seu fim não significou o fim de seus enfrentamentos contra sua controvertida figura, já que a Igreja, ao considerar indigna sua profissão e por suas críticas ao poder religioso, se recusou a enterrar seu corpo num cemitério. Foi a viúva de Molière quem pediu intervenção do rei para que o dramaturgo tivesse um funeral normal e este depois de atender ao pedido permitiu-lhe que fosse enterrado na parte do cemitério reservada às crianças mortas prematuramente e sem batismo.

O legado de suas obras, quase três dezenas desde quando começou a escrever, permanece atual. Molière também é responsável por subverter a superstição de vestir amarelo em cena já que era a cor da roupa que vestia quando sofreu aquele ataque que o levaria dias depois à sua morte.

Ligações a esta post:
>>> A casa de Molière

 * Este texto é uma tradução de "Molière, el despiadado satírico siempre de actualidad", publicado no jornal El País.

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