Nove poemas de Para que mar embarcas, Noé?, de Adonis

Por Pedro Belo Clara

Adonis. Foto: Magali Delporte



A palavra esquece a palavra
é raro a palavra falar
Aram arim ram rama Ararat1
Da montanha das neves estenderam-se até mim as mão de
                uma História errante espalhada no deserto da época
mãos que cosem travesseiros às estrelas que sangram nos mapas
e a impressão de tocar estilhaços de cabeças e de corpos nas
                nuvens que os tocam
 
 
***
 
 
De onde e como vindes caminhos que conduzis ao precipício
vertentes-declives mentira cósmica
souks2 cegos arrastam cidades cegas arrastadas por guerras cegas
Neve de Ararat diz às tuas vasilhas para derramarem os seus
                álcoois aos pastores das estrelas e das lendas e sabe que as
bocas das tuas profundezas explodirão um dia e que a tua
neve confraternizará com os campos e os canais de irrigação
 
 
***
 
 
Déspotas cada glândula é um furúnculo
a saliva é Inflamação os lábios latido uma corrente em cada pescoço
Para eles as guerras são conversa de água
os homens poeiras
como se a vida não girasse senão para fermentar em moluscos negros
 
 
***
 
 
Tiranos quantas cabeças alinharam hoje as vossas flechas?
quantos seios amputastes e que guardastes dos corações que
                arrancastes e das entranhas esmagadas?
Ó céu onde estavas?
E qual é o teu grupo sanguíneo?
 
 
***
 
 
Talvez Ó poeta serias tentado a desprezar a ciência
A rejeitar a razão
e a perguntar-te indignado quem é essa criatura designada ser humano?
e que é essa razão que guia a razão?
 
Terra engastada de cadáveres
Celebram os seus artesãos enfeitados de condecorações
 
 
***
 
 
Porque é que o céu da nossa época não sabe ler senão o livro
                do assassínio?
por esta razão acolhemos espontaneamente os anjos da morte
                e preparamos-lhes festins de carne
a história política e o poder escondem-se na carne
carne, festa da vitória e da conquista
festim dos céus
 
 
***
 
 
Descem cadafalsos como cadeiras de rodas descem signos que
                isolam as paredes
isolam o pão do trigo
publicam-se perguntas: porquê ó crápula não rezaste quando
                estavas na barriga da tua mãe? levanta-te Moujahid
                e degola-o
 
 
***
 
 
Portanto,
Que o prazer seja um prefácio do que nos espera no invisível.
“A vida é redonda como uma maçã, diz-nos essa língua
eis-nos feitos menos que uma sombra,
a origem não passa já de um pálido e miserável eco,
o país na sua totalidade é reflexo de uma sombra, sombra de um reflexo
abre os teus olhos indivíduo para te convenceres de que não
                te pertencem
 
 
***
 
 
Tornas-te mais lúcido do que és
À escuta da natureza lês a poesia da vida à vida que lê a poesia do homem
a terra é um corpo
a montanha um antepassado
o rio uma veia a floresta música
as estrelas saem para dançar
os pássaros para aplaudir e cantar
as sombras levam as chaves da luz

_____
 
 
Ali Ahmad Said Esber nasceu no primeiro dia de 1930, na Síria. Ficou, porém, mais conhecido pelo seu pseudónimo, Adonis, adoptado quando tinha apenas dezassete anos de idade, num ímpeto de rebeldia contra a dormência de certos editores.

Apesar de não ter usufruído dos melhores estudos quando era criança, cedo tomou contacto com a poesia árabe clássica, graças ao apreço que o seu pai nutria pelo género. Aos vinte anos publica a sua primeira colectânea de versos, denominada Dalila, sensivelmente na mesma altura em que entra para a Universidade de Damasco, licenciando-se quatro anos depois em Filosofia.

Nos finais da década de 1950, frustrado com o firme conservadorismo das crenças e modos de vida do seu país, muda-se para Beirute, no Líbano, onde viria a trabalhar na Shi’r, uma das revistas literárias mais emblemáticas do mundo árabe. Aí desenvolveu esforços no sentido de apoiar a produção artística dos jovens talentos e de dar a conhecer a todas as gerações interessadas a poesia de autores ocidentais. Foi por esse intuito que se tornaria, muito mais tarde, o primeiro árabe a traduzir integralmente para a sua língua nativa as Metamorfoses de Ovídio.

Desiludido com uma certa relutância dos editores da Shi’r em expandir os seus horizontes, funda em 1968 a Mawaqif. Foi um período em que Adonis começou por entender que a literatura, por si só, pouco ou nada mudaria num mundo árabe demasiado retrógrado, e que a renovação que via tão necessária teria de ser profunda e ocorrer a diversos níveis, exigindo assim um despertar de consciências global. De certo modo, a sua revista, cujo nome significa “Posições”, foi um palco para Adonis pregar a sua mensagem social e política. Naturalmente, a publicação, por ser considerada radical em alguns países árabes, sofreu várias sabotagens e censuras, mas ainda conseguiu subsistir até ao ano de 1994.

Em 1980 exila-se em Paris, onde actualmente vive. Elaborou até aos dias de hoje uma obra de mais de cinco dezenas de livros de poesia, além de trabalhos de tradução, crítica e ensaio. É justamente considerado uma das figuras mais proeminentes da literatura árabe, desde logo pelo seu movimento de ruptura em relação aos padrões artísticos pré-estabelecidos nessa parte do mundo, bem como pelo carácter reformador e extremamente original do seu pensamento e, claro, obra editada. Muitos consideram o impacto do seu trabalho na literatura árabe tão importante quanto o de T. S. Eliot na poesia escrita em língua inglesa.

O vincado modernismo pelo qual sempre pautou as suas criações é hoje celebrado nos mais diversos círculos da crítica competente. É certo que a sua poética nasce dos preceitos clássicos da poesia árabe, mas Adonis, com mestria, soube elevá-la, criando toda uma literatura de linguagem e imagem forte, cintilante e veramente original, mais implícita que explícita, a partir de bases arcaicas. Pelas suas características inovadoras, a poesia produzida colocou-o na proa do chamado “movimento neo-sufi”, iniciado na década de setenta, e que actualmente ainda influência os mais recentes praticantes daquela literatura.

É um poeta de influência modernista, sem dúvida, mas também realizou incursões no estilo experimental – com algumas inclinações surrealistas, a dado ponto. Nuno Júdice, o poeta que o apresentou ao público português, refere ainda «o conciliar [d]o épico e [d]o lírico num equilíbrio que constitui a sua marca original». Essencialmente, dir-se-á que uma das maiores conquistas de Adonis é, sem dúvida, a injecção duma imensa liberdade na criação desta arte, tornando-o assim um pioneiro de grande mérito para novas gerações de poetas nascidos no seio da herança árabe.  

Mas a sua arte não goza, como a de muitos, duma aceitação universal. Desde logo se lembrarmos o conteúdo social e político que alimenta a sua criação artística e se considerarmos os meios mais rígidos da sua cultura berço: a islâmica.

Pelas palavras do próprio, apresenta-se como um “místico pagão”. Poderá não denunciar aquilo que muitos nele vêm, isto é, um ateísmo assumido que se une, como se compreende ao lê-lo, à irreverente rebeldia que o caracteriza, mas num mundo onde o culto religioso é forçado desde tenra idade, facto que o poeta sempre criticou, não se imaginará que tal posição escape aos tentáculos da perseguição e da crítica.

Adonis nada fez para esconder as múltiplas censuras dirigidas ao mundo árabe e ao seu funcionamento social, nomeadamente ao fanatismo religioso que há muito fermenta nesse lado do globo. Não tem escapado, por isso, a diversas ameaças de morte formuladas por líderes religiosos e outras figuras proeminentes (ou com desejos de tal, aproveitando o ensejo). Inclusive, em 2013, ocorreu um chamamento público para a queima, em praça pública, dos seus livros. Já antes, em 1995, fora expulso da União de Escritores Árabes após um encontro com israelitas em Espanha, num evento patrocinado pela Unesco. Apesar desta relação tensa, sem perspectivas de se aligeirar, a voz de Adonis nunca esmoreceu.

Em 2011 tornou-se o primeiro poeta árabe a receber o Prémio Goethe. Foi igualmente o ano em que fundou uma outra revista, a Al-Akhar, significando “O Outro”. Dedicada ao ensaio filosófico, mas incidindo em questões árabes, não duraria mais de dois anos.

Por diversas vezes foi apontado ao Nobel, mas o feliz anúncio tem tardado a chegar – e a elevada idade de Adonis já não permitirá uma esperança muito duradoura.

Terminamos com estas felizes palavras do já citado Nuno Júdice, parecendo-nos a figura mais competente para encerrar a sugestão poética deste mês:

Se Adonis procurou libertar a poesia de um empenhamento directo, falando para além da circunstância em que o poema foi escrito, isso não significa que não tenha uma visão da História que acompanha (…) uma poética sensível ao tempo, à memória, ao amor e à interrogação sobre um destino nunca fechado (…)

 
Notas

1 O monte Ararat situa-se na fronteira entre a Turquia e a Arménia. Tem um alto significado religioso e histórico, pois segundo o Livro do Génesis é o local onde repousa a Arca de Noé.

2 O mesmo que bazar, ou seja, os típicos mercados de rua islâmicos, geralmente cobertos.


* Traduções de Nuno Júdice, em O Arco-Íris do Instante (D. Quixote, outubro de 2016). Notas adicionais por Pedro Belo Clara.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #580

Boletim Letras 360º #574

Palmeiras selvagens, de William Faulkner

Clarice Lispector, entrevistas

Boletim Letras 360º #579