Katherine Mansfield: uma mulher única numa cadeira incômoda

Por Verónica Boix

Katherine Mansfield. Foto: Ida Baker.


 
Fazer arte a partir da simplicidade pode ser uma das características centrais da obra da escritora Katherine Mansfield. Com poucos livros de contos, tornou-se um clássico do gênero. E fê-lo através de elementos simples, como uma pereira, uma casinha de bonecas ou um chapéu. Se suas ficções combinam o mundo doméstico e a lucidez de uma linguagem que vai ao cerne dos dilemas da condição humana, seus textos de não-ficção não ficam atrás. Ao longo de sua vida escreveu mais de cinquenta cadernos com diários, cartas e textos que abrem a pele de seu tempo à luz de um olhar atento aos mínimos detalhes da existência.
 
Agora, Mansfield realmente escreveu seus famosos Diários, ou eles são apenas um recorte arbitrário que seu marido fez quando ela já estava morta e não podia protestar? A polêmica suscitada entre os estudiosos de sua obra, e agora retomada pelo prólogo de Sopa de ameixa¹, um conjunto de textos, quase todo de inéditos, que reúne parte dos cadernos, cartas e papéis avulsos da autora e se propõem descobrir quem era, na verdade, Mansfield. Uma promessa tentadora, claro, especialmente porque a compiladora Leonora González Capria promete descobrir a autora de uma forma mais autêntica do que o mito que se forma em seus diários.
 
Ainda assim, entre a não-ficção escrita por Mansfield, seus Diários são sua obra mais famosa. Eles foram publicados em 1927 por seu marido, John Middleton Murray, que manteve os direitos de sua obra, e agora são republicados em uma edição local traduzida por Florencia Parodi.²
 
Diz-se, especialmente na Inglaterra, que Murray manipulou o material para propor uma imagem de Mansfield mais angelical e etérea do que a mulher que seus contemporâneos conheciam. No entanto, esses textos tornaram-se materiais incontornáveis ​​para entender como se faz uma autora e quanto o corpo e seus limites influenciam na criação.
 
São diários de escrita e também de doença, mas sobretudo concentram o olhar de uma mulher com uma visão sobre a literatura e uma vocação que lutavam num corpo cansado, um corpo que ameaçava não lhe dar tempo de contar, antes que desaparecessem, todas as histórias que se escreveram em sua cabeça.
 
Os registros do diário, com as observações de Murray, permitem um olhar mais atento sobre a escritora, já que pouco se sabe sobre sua vida. Nasceu no final do século XIX em Wellington, Nova Zelândia, e nunca se sentiu feliz no interior de uma família abastada que lhe foi dada ao acaso. Manteve um relacionamento muito conflituoso com a mãe e logo viajou sozinha para Londres para estudar. Quando terminou os estudos, ela voltou para sua cidade natal. Lutou com os pais até conseguir outra vez regressar a Londres, o lugar onde viveria seu desejo livremente.
 
Foi nessa cidade que conheceu Ida Baker, que seria sua grande amiga e amante para toda a vida. Engravidou e teve um aborto espontâneo. Casou-se com um homem mais velho que ela, abandonado ainda na noite de núpcias. Voltou a se casar, desta vez com o escritor e crítico Middleton Murray. Nunca teve filhos.

Katherine Mansfield e John Middleton Murray. 


Katherine adoeceu jovem, contraindo gonorreia e tuberculose. Buscou a cura a qualquer custo, mesmo passando por um tratamento que a mantinha pendurada no esterco para inalar os gases e se livrar da tuberculose de uma vez por todas, o que a levaria à morte com apenas trinta e quatro anos de idade.
 
Às vezes o acaso conspira e gera coincidências que resultam em uma oportunidade única. Os dois livros publicados quase simultaneamente nos convidam a mergulhar em duas versões de uma autora enigmática, que ainda é uma das poucas mulheres que compõem o cânone modernista em língua inglesa, ao lado de Virginia Woolf.
 
Uma coisa é certa, os diários foram selecionados de todos aqueles cadernos que Mansfield originalmente manteve ao longo de sua vida. Seu marido recortou e construiu o material ao seu modo. Mesmo assim, basta ler algumas entradas para encontrar imagens que apresentem a realidade tal como o autor a observou.
 
“Se eu pudesse superar meu cansaço e pegar minha caneta imediatamente, deveriam (são tão polidos e cada palavra tão perfeita) se escrever sozinhos. Mas o problema é o impulso que requer. Não tenho onde escrever, a cadeira é desconfortável... E posso continuar reclamando, mas este é o lugar disponível de qualquer maneira e esta é a cadeira que tenho. Não quero escrevê-los? Oh, é meu grande anseio, meu único assunto feliz. Ainda ontem eu estava pensando que meu estado de saúde atual é uma vantagem. Torna as coisas mais valiosas, mais importantes, mais desejadas... Muda a perspectiva com que vejo tudo”, destacou Mansfield. Pode-se pensar também que Middleton Murray atuou como um editor afiado, um conhecedor desse olhar.
 
Nos textos de Sopa de ameixa, sem a mediação do olhar de Murray, Mansfield aparece menos doce, mais astuta. Os escritos retirados de seus cadernos, sua correspondência e alguns papéis soltos registram suas opiniões sobre a comida, o desejo e a escrita, e permitem encontrar-se uma mulher de inteligência extremamente contundente.
 
Já desde o primeiro ensaio se percebe essa simbiose entre escrita e nutrição: “Todo o tempo que passei lendo, senti que o livro estava me alimentando”, diz o escritor neozelandesa. Há fragmentos de poemas, textos sobre o amor, contos. Inclusive, pode-se ler o Caderno #4 na íntegra, com parte dos textos que compõem os registros de 1927 dos Diários. A seleção, é verdade, não é causal; esse caderno parece ser o mais usado por Murray para compor o diário íntimo de sua esposa. Tanto que o significado das entradas, como um todo, torna-se diferente nos dois livros.
 
Seja como for, passar pelas duas publicações é como espionar, sob diferentes pontos de vista, a vida de uma mulher que transformou a forma de escrever. Pode-se dizer que o jogo é muito borgesiano, um Mansfield por Mansfield sempre outra, e no fundo capaz de mostrar o quão complexa é a identidade e suas facetas.
 
Pode ser que a mesma autora forneça em seus Diários uma chave para esse dilema: “A questão. Alguma vez sabemos alguma coisa? Nunca se sabe. Compreendeu que seria bobagem perguntar: no que você está pensando?”

 
Notas da tradução

1 A tradução é a partir do título em espanhol, Sopa de ciruela. A edição argentina do livro organizado por Eleonora González Capria está publicada por Eterna Cadencia; as 464 páginas são ilustradas por Josefina Schargorodsky.
 
2 Local aqui se refere a Argentina. Neste país, os Diários estão reeditados pela Chai Editora. 


* Este texto é a tradução livre para “Katherine Mansfield: una mujer única en una silla incómoda”, publicado aqui em Revista Ñ.

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