Balada do velho amor

 
Cristina Peri Rossi e Julio Cortázar, Paris, 1973. Foto: Julio Cortázar.

 
Em 2014 foi comemorado o centenário do nascimento de Julio Cortázar e os trinta anos de sua morte. Como de costume, multiplicaram-se as publicações e eventos referentes ao autor belgo-argentino. Além de seu lugar privilegiado no chamado boom da literatura latino-americana dos anos sessenta, acrescenta-se a suas características especiais como escritor e como personagem, que o tornaram atrativo para as novas gerações de leitores. Já se disse que Cortázar, além de ser apreciado por sua literatura, é também amado. Essa relação fraterna entre leitor e autor faz dos seus seguidores intransigentes diante da visão crítica, aquela que afirma que sua obra envelheceu. Mas, além da polêmica, Cortázar é um formidável contista que soube experimentar com o gênero romance, algo que ficou marcado em O jogo da amarelinha (1963) uma obra que permaneceu no centro de interesse de mais de uma geração. Ele é um escritor fundamental do século passado. Sua vida pessoal também foi peculiar. Cortázar era um apaixonado pelo amor e sua admiração pelas mulheres foi notória. Dizia que se entendia melhor com elas porque os homens “são muito sérios e formais” enquanto as mulheres “falam com a linguagem da emoção”.
 
A narradora, poeta, tradutora e ensaísta uruguaia Cristina Peri Rossi conheceu Cortázar por meio de uma carta. Estava exilada em Barcelona quando o secretário da Marcha, Hugo Alfaro, lhe enviou uma carta na qual Cortázar se referia ao seu romance El libro de mis primos [O livro de meus primos]. O escritor entendia que o acaso, um componente tão significativo na literatura de Cortázar, havia feito o seu trabalho. Assegurava que este livro o havia procurado por algum motivo. Um livreiro espanhol, que geralmente guardava exemplares de Marcha para ele, disse-lhe que havia recebido apenas um exemplar e o havia guardado para si. Concluiu que o protagonista de O livro de Manuel, no qual trabalhava na época, era um dos primos do livro de Peri Rossi e que os dois autores — ela em Montevidéu e ele em Paris — tinham a mesma ideia, quase ao mesmo tempo, de misturar gêneros — prosa e poesia — em um romance. “Depois olhei para a contracapa do livro e vi seu rostinho doce e um pouco triste, seu rostinho lindo e seu olhar profundo e soube quem era a mulher que havia escrito alguns primos que se pareciam com Manuel... e agora eles vieram a se encontrar.” Nessa frase dessa primeira carta, condensam-se as características da longa relação estabelecida entre os dois escritores. Sua admiração e cumplicidade, além das palavras, aliadas à forte atração de Cortázar pela autora uruguaia, seriam idealizadas diante da homossexualidade de Peri Rossi.
 
Altos e baixos
 
O livro Julio Cortázar y Cris é, na verdade, uma reedição de parte do livro Julio Cortázar, publicado em 2000. A essa história, que abrange a primeira parte desta nova obra, acrescenta-se uma segunda parte com material mais recente. Paradoxalmente, o início é com a morte do escritor. “Não fui ao funeral de Julio Cortázar. Eu não estou na foto”, são as duas primeiras frases desta história. A autora reitera sua versão — oposta à oficial — onde afirma que Cortázar não morreu de leucemia, mas foi uma das primeiras vítimas da AIDS, contraída por uma transfusão de sangue infectado. Afirma ainda que Carol Dunlop, última esposa de Cortázar, também morreu da mesma doença, infectada pelo marido.
 
Peri Rossi revê rapidamente as diferentes fases da sua relação com Cortázar. Relata o carinho que sente pela primeira esposa do escritor, Aurora Bernardez, seu difícil relacionamento com sua segunda e ciumenta parceira, Ugné Karvelis, e seu breve relacionamento com Carol Dunlop. Destaca a importância de Bernardez e confessa seu desejo secreto de que, finalmente, voltaria a se juntar a Cortázar como casal, algo que de fato aconteceu nos últimos meses de vida do escritor quando Aurora cuidou dele, tornando-se sua herdeira e cuidadora. A história espreita, embora sempre tangencialmente, a tensão sexual que existia entre os dois escritores.
 
Essa relação teve, como feliz consequência, os “Cinco poemas para Cris”, “Outros cinco poemas para Cris” e “Cinco últimos poemas para Cris” publicados, com autorização de Peri Rossi, no livro póstumo Exceto o crepúsculo (1984). Segundo a autora, Cortázar considerava a poesia o gênero maior da literatura, mas, reconhecendo-se limitado como poeta, dedicou-se à narrativa. Em uma reportagem, falando desses poemas, ela disse: “…acho que ele escreveu alguns muito bons, por exemplo, a série de quinze poemas de amor dedicados a mim. Parecem-me excelentes, embora talvez os laços afetivos não me permitam ser completamente objetiva”. Nesses quinze poemas, o amor e o desejo não correspondidos são seus eixos centrais. Num delas, Cortázar admite que, mais do que a mulher, queria “a impossibilidade óbvia de te amar, como a mão esquerda apaixonada por aquela luva, que vive à direita”.
 
Cumplicidade e admiração
 
Parece desnecessário dizer que este livro se encontra bem escrito. Os antecedentes de Peri Rossi previam esse resultado. O que não se deve esperar, como no caso dos poemas, é que a autor seja objetiva em relação a Cortázar. Não existe análise exaustiva da obra do autor argentino nem aceitação de defeitos ou fraquezas. Há uma defesa cerrada contra qualquer crítica feita a ela. Assim como o autor argentino a idealizou como mulher, Peri Rossi idealiza a figura de Cortázar como escritora. Nesse ponto, o livro se afasta do excelente La fascinación de las palabras [O fascínio das palavras] (Trilce, 1990; Alfaguara 1996), um longo e profundo relato de Omar Prego Gadea, que se tornou um ensaio escrito a quatro mãos, onde Cortázar deixou seu legado literário revelando histórias, técnicas e bastidores de seu trabalho a Prego. Prego admirava muito Cortázar, mas sabia moderar esse sentimento. Nem chega perto da profundidade de Julio Cortázar. La Biografía [Cortázar. A biografia] (Seix Barral, 1998) onde, além de narrar a vida do escritor, Mario Goloboff analisou sua vida e obra.
 
O tom deste livro é, antes de tudo, nostálgico e cativante. Não é nada mais, mas também nada menos, do que a visão de Cortázar através dos olhos de uma amiga próxima que ocasionalmente ocupou o lugar de musa e que mantém seu modo de pensar, tanto na política quanto na literatura, tão intimamente relacionado com os anos sessenta. Uma escritora que assume sua perplexidade ao observar como Cortázar foi inclusive utilizado pela publicidade, atividade típica dessa sociedade de consumo que ele rejeita. Talvez a única censura que ela faz ao amigo seja motivada por uma frase de um daqueles poemas que ela o inspirou: “muitas vezes olhamos para a mesma mulher fascinados”. Cris não pode perdoar esse erro. Nunca olharam para uma mulher da mesma forma porque “você é um homem, eu sou uma mulher”. Cortázar tentou uma desculpa que era ao mesmo tempo uma rendição tipicamente masculina: “Deixe-me ao menos viver com essa ilusão”. 

Ligações a esta post:
>>> Julio Cortázar e Carol Dunlop


* Este texto é a tradução livre para “Tonada del viejo amor”, publicado aqui, no jornal El País – Uruguai.

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