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Guillaume Apollinaire. Foto: RMN |
A PORTA
A porta do hotel sorri e eu fico a
tremer
Mamã o que é que me pode acontecer
Ser este empregado para quem só o
nada existe
Pares silenciosos arrastados na
profunda água triste
Anjos de fresco desembarcados em
Marselha ontem ao amanhecer
Ouço ao longe um canto morrer e
remorrer
Humilde como sou que não sou nada
que valha
Menino dei-te o que tinha agora
trabalha
A PONTE MIRABEAU
Sob a ponte Mirabeau corre o Sena
E
os nosso amores
Era
preciso que me recordasse esta cena
Que a alegria vem sempre depois da
pena
Vem
a noite soa a hora
Tudo
passa na minha demora
Face a face fiquemos e de mão na
mão
Enquanto
Sob
a ponte dos nossos braços se vão
Dos eternos olhares a lassa
ondulação
Vem
a noite soa a hora
Tudo
passa na minha demora
O amor se vai como a água cinzenta
O
amor se vai
Como
a vida é lenta
E a Esperança violenta
Vem
a noite soa a hora
Tudo
passa na minha demora
Morrem os dias tudo morre
Nem
o tempo passado
Volta
nem os amores
Sob a ponte Mirabeau o Sena corre
Vem
a noite soa a hora
Tudo
passa na minha demora
TIVE A CORAGEM DE OLHAR
Tive a coragem de olhar para trás
Os cadáveres dos meus dias
Assinalam o meu caminho e eu
choro-os
Uns apodrecendo nas igrejas
italianas
Ou entre os limoeiros
Que dão ao mesmo tempo e em
qualquer estação
A flor e o fruto
Outros dias choraram antes de
morrerem nas tabernas
Fustigados por ardentes ramos
Sob o olhar duma mulata que
inventava a poesia
E as rosas da electricidade
abrem-se ainda
Nos jardins da minha memória
QUATRO HORAS DA MANHÃ
São quatro horas da manhã
Levanto-me já vestido
Tenho um sabonete na mão
Que me enviou alguém que amo e me
ama
Vou-me lavar
Saio do buraco que nos serve de
cama
Estou bem disposto
E feliz por me poder lavar o que
já não acontecia há três dias
Depois de me lavar vou-me barbear
De seguida azul como o céu
confundo-me com o horizonte até que
a
noite caia e é um prazer muito doce
Nada dizer Tudo o que faço é um
ser invisível que o faz
Porque uma vez abotoado todo de
azul
Confundido com o céu torno-me
invisível
A LINDA RUIVA¹
Eis-me aqui diante de todos um
homem cheio de bom senso
Conhecendo da vida e da morte tudo
o que um ser vivo pode conhecer
Tendo experimentado as dores e as
alegrias do amor
Tendo sabido algumas vezes impor
as suas ideias
Conhecendo várias línguas
Tendo viajado bastante
Visto a guerra na Artilharia e na
Infantaria
Tendo sido ferido na cabeça
trepanado sob o clorofórmio
Perdido os seus melhores amigos
nessa pavorosa luta
Sei do antigo e do novo tanto
quanto um só homem pode saber
E sem me inquietar hoje com a
guerra
Entre nós e para nós meus amigos
Julgo esta longa querela entre a
tradição e a invenção
A
Ordem e a Aventura
Vós cuja boca é feita à imagem da
boca de Deus
Boca que é a própria ordem
Sede indulgentes quando nos
comparais
Aos que foram a perfeição da ordem
Nós que por todo o lado procuramos
a aventura
Nós não somos vossos inimigos
Queremos dar-vos vastos e
estranhos domínios
Onde o mistério em flor se oferece
a quem o quiser colher
Há lá fogos de cores nunca antes
vistas
Mil fantasmas imponderáveis
Aos quais é necessário dar
realidade
Queremos explorar a bondade país
enorme onde tudo se cala
Há ainda o tempo que se pode fazer
parar ou retroceder
Piedade para nós que combatemos
sempre nas fronteiras
Do ilimitado e do futuro
Piedade para os nossos erros
piedade para os nossos pecados
Eis que chega o Verão a estação
violenta
E a minha juventude morreu com a
Primavera
Oh sol chegou o tempo da razão
ardente
E
eu espero
Para seguir sempre a forma nobre e
doce
Que ela toma para que seja o meu
único amor
Ela chega e atrai-me como o íman
ao ferro
Ela
tem o aspecto sedutor
De
uma adorável ruiva
São de oiro os seus cabelos
E é vê-los a brilhar
Ou como essas chamas que nas
rosas-chá
Quase murchas não param de dançar
Mas ride ride de mim
Homens de toda a parte sobretudo
gente daqui
Porque há tantas coisas que eu não
ouso dizer-vos
Tantas coisas que vós não me
deixaríeis dizer
Tende piedade de mim
O SUICIDA
Três grandes lírios Três grandes
lírios na minha sepultura sem cruz
Três brancos lírios polvilhados de
oiro que o vento fustiga
Regados apenas quando de súbito no
céu negro se faz luz
Majestosos e belos como o ceptro
dos reis
Um nasce duma ferida e quando um o
toca um raio de luz
Veste-se de sangue É o lírio do
pavor
Três grandes lírios Três grandes
lírios na minha sepultura sem cruz
Três brancos lírios polvilhados de
oiro que o vento fustiga
O outro nasce do meu coração que
padece no leito
Onde o roem os vermes Irrompe da
minha boca o terceiro
Solitários florescem os três sobre
a minha sepultura
Solitários solitários e malditos
como eu
Três grandes lírios Três grandes
lírios na minha sepultura sem cruz
______
Wilhelm Albert Wlodzimierz Aleksander
Apolinary de Kostrowitzsky nasceu a 26 de agosto de 1880, em Roma, Itália. A
sua mãe, Angelika de Kostrowitzsky, era uma mulher nobre de ascendência polaca,
enquanto o pai sempre fora conotado como desconhecido — embora se suspeite de
Francesco d’Aspermont, um militar italiano de família igualmente nobre.
Apollinaire, porém, sempre se revelou bastante reservado quanto às suas
origens.
A infância e juventude do
talentoso poeta é repartida por diversas cidades europeias, especialmente
francesas: Paris, Cannes e Nice — seguindo os impulsos amorosos de sua mãe. Por
consequência, desde tenra idade Apollinaire ficou fluente em francês, italiano
e polaco.
Após uma estadia na Alemanha, onde
supostamente ter-se-á registado o seu despertar artístico, digamos assim, ou
seja, onde pela primeira vez sentiu a sua vocação poética e decidiu-se a
segui-la, Apollinaire regressa a Paris. Contava vinte anos de idade, e
demonstrava um enorme interesse pelas novidades literárias e políticas da
época, revelando inclinações anarquistas. De pronto entrega-se a uma vida
boémia, o que lhe permitiu um contacto directo e rápido com a vanguarda
artística da época, não importando a área de talento: Picasso, Rousseau,
Breton, Chagall ou Gertrude Stein figuravam entre os seus amigos mais próximos.
Decide, então, mudar o seu nome de baptismo para a versão francesa do mesmo,
fixando-o na forma pela qual hoje a conhecemos: Guillaume Apollinaire.
Começa a trabalhar como secretário
e, para sobreviver, escreve novelas eróticas — uma delas seria proibida em
França até à década de 70 (!). A sua sede de viajar não cessa, deambulando por
Áustria, Alemanha e Inglaterra, deixando para trás um considerável rastro de
amantes. A actividade artística desenvolve-se, apurando o seu timbre de
originalidade. Naturalmente, vários poemas seus começam a aparecer em publicações
relevantes, nacionais e estrangeiras — como
O Portugal Futurista, onde
colaborou em breves ocasiões.
Mais dedicado ao trabalho
literário, Apollinaire começa a destacar-se entre as novas vozes poéticas que
se vão erguendo no começo do século. Explora igualmente a área do jornalismo, do
teatro, do conto e da crítica. Pelo meio, assume a responsabilidade de
reabilitar a obra do Marquês de Sade, tarefa que cumpre com sucesso.
Em 1911 é acusado de cumplicidade
no roubo da famosa obra de Leonardo da Vinci, a Mona Lisa. É detido e enviado
para uma prisão local, mas posto em liberdade uma semana depois por falta de
provas. (De facto, como posteriormente se descobriu, Apollinaire não teve
qualquer responsabilidade, directa ou indirectamente, no escandaloso furto.) Dois
anos depois é publicada a sua primeira recolha poética, Alcools, a obra que
firmará a sua boa reputação como um poeta original, de extrema criatividade e
inegável qualidade.
A Europa fervilhava de novas
ideias, revelando uma fome tremenda em avançar artisticamente para novos
horizontes. Diversos movimentos começam assim a esboçar as suas propostas,
ainda que num estado embrionário. Deixamos um facto curioso: Apollinaire,
graças aos seus dotes de análise crítica, foi o responsável por lhes ter dado
um nome, o que os tornou mais definíveis, na época, firmando-os depois para a
eternidade. Falamos de expressões tão conhecidas como o Cubismo, do qual era um
apaixonado defensor, o Orfismo e, um pouco mais tarde, o Surrealismo (adjectivo
que encontrou para descrever os trabalhos de Erik Satie). Em 1917 é apresentada
a peça
Os Seios de Tirésias, de sua autoria, considerada um dos
primeiros trabalhos do movimento surrealista. Apollinaire, na sua juventude
muito influenciado pelos preceitos do simbolismo, tornou-se alvo de grande
admiração por parte daquele que seria o futuro núcleo de poetas surrealistas
franceses, nomeadamente o seu amigo André Breton.
Com o rebentar da Primeira Grande
Guerra, Apollinaire faz uma petição para incorporar o exército francês, dado
que à época era ainda considerado um cidadão estrangeiro. É aceite e, já em
cenário de guerra, fica seriamente ferido numa das têmporas, ferimento esse que
deixará sequelas até ao dia da sua morte. Durante o período de recuperação,
Apollinaire escreve a célebre peça de teatro atrás referida.
Já perto do fim do conflito
casa-se com uma antiga modelo de Picasso, a quem escreveu o poema “A Linda
Ruiva”, aqui apresentado aos nossos estimados leitores. Contudo, a união não
durará mais que poucos meses. No dia 09 de novembro de 1918, o mesmo dia em que
a Europa acordou com a boa-nova da abdicação da Alemanha, marcando o término
imediato da Grande Guerra, Guillaume Apollinaire sucumbe à devastadora pandemia
que assolava o continente: a gripe espanhola, ou influenza. Tal como outros
artistas que por tal enfermidade foram privados de partilhar com o mundo o
expoente máximo de toda a sua criatividade e talento, também Apollinaire, como
o artista português Amadeo de Souza-Cardoso, por exemplo, se viu condenado ao
mesmo destino. Tinha então trinta e oito anos de idade.
Não se afirme, porém, que
Apollinaire viveu uma existência monótona, nem que não dispôs de tempo
suficiente para revelar talento e originalidade. De facto, a sua voz influenciou
indelevelmente o início do século XX, estando na vanguarda de diversos
movimentos que ajudariam a moldar os destinos das artes nas décadas seguintes.
Curiosamente, seguindo sem querer o exemplo dos grandes mestres, Apollinaire deixou
obra capaz de influenciar movimentos, uma visão com força suficiente para abrir
horizontes e expandir caminhos de expressão, mas ele próprio nunca seguiu uma
escola nem desejou pertencer a uma.
Mesmo tendo recebido, como já
estabelecemos, uma herança simbolista, e de certos contornos do Modernismo
serem perceptíveis no seu trabalho, Apollinaire era, como muitos dos seus
companheiros de artes o definiam, um dos espíritos mais livres que alguma vez
viveu. E isso comprova-se ao analisar a raiz da sua criação: imune a teorias,
recusando filosofias, nasce dum impulso de momento, duma força vital que,
assim, cria-se e molda-se ao instante e a tudo o que nele vive, seja mundo
exterior ou interior, abraçando a vida na sua totalidade, na sua absoluta
liberdade de manifestação. Por isso a sua poesia se despiu de pontuação,
recebendo diversas vezes um ritmo imprimido pela escrita corrida do verso. É
uma arte, conforme o próprio explicava, que nasce da imaginação e da intuição, tal
como é o seu dever, estando o mais próximo possível da vida e do Homem, dividido
num equilíbrio sempre frágil entre, como escreveu num célebre poema, “a
tradição e a invenção / a Ordem e a Aventura» - mas sem espaço para
capitulações, apontando ao máximo possível, «sempre nas fronteiras / Do
ilimitado e do futuro”.
Notas
* Versões de Jorge Sousa Braga em
O Século das Nuvens (Assírio & Alvim, 2007).
1 Trata-se de Jacqueline Kolb,
modelo de Pablo Picasso e futura esposa do poeta. O casamento de ambos duraria
poucos meses, devido ao desaparecimento precoce de Apollinaire. Jacqueline foi responsável
pela edição, a título póstumo, de diversas obras do esposo, deixadas por
terminar ou aguardando uma revisão mais acurada.
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