Seis poemas de Guillaume Apollinaire

Por Pedro Belo Clara

Guillaume Apollinaire. Foto: RMN

 
A PORTA
 
A porta do hotel sorri e eu fico a tremer
Mamã o que é que me pode acontecer
Ser este empregado para quem só o nada existe
Pares silenciosos arrastados na profunda água triste
Anjos de fresco desembarcados em Marselha ontem ao amanhecer
Ouço ao longe um canto morrer e remorrer
Humilde como sou que não sou nada que valha
 
Menino dei-te o que tinha agora trabalha
 
 
A PONTE MIRABEAU
 
Sob a ponte Mirabeau corre o Sena
                               E os nosso amores
                Era preciso que me recordasse esta cena
Que a alegria vem sempre depois da pena
 
                               Vem a noite soa a hora
                               Tudo passa na minha demora
 
Face a face fiquemos e de mão na mão
                               Enquanto
                Sob a ponte dos nossos braços se vão
Dos eternos olhares a lassa ondulação
 
                               Vem a noite soa a hora
                               Tudo passa na minha demora
 
O amor se vai como a água cinzenta
                               O amor se vai
                Como a vida é lenta
E a Esperança violenta
 
                               Vem a noite soa a hora
                               Tudo passa na minha demora
 
Morrem os dias tudo morre
                Nem o tempo passado
                               Volta nem os amores
Sob a ponte Mirabeau o Sena corre
 
                               Vem a noite soa a hora
                               Tudo passa na minha demora
 
 
TIVE A CORAGEM DE OLHAR
 
Tive a coragem de olhar para trás
Os cadáveres dos meus dias
Assinalam o meu caminho e eu choro-os
Uns apodrecendo nas igrejas italianas
Ou entre os limoeiros
Que dão ao mesmo tempo e em qualquer estação
A flor e o fruto
Outros dias choraram antes de morrerem nas tabernas
Fustigados por ardentes ramos
Sob o olhar duma mulata que inventava a poesia
E as rosas da electricidade abrem-se ainda
Nos jardins da minha memória
 
 
QUATRO HORAS DA MANHÃ
 
São quatro horas da manhã
Levanto-me já vestido
Tenho um sabonete na mão
Que me enviou alguém que amo e me ama
Vou-me lavar
Saio do buraco que nos serve de cama
Estou bem disposto
E feliz por me poder lavar o que já não acontecia há três dias
 
Depois de me lavar vou-me barbear
De seguida azul como o céu confundo-me com o horizonte até que
                a noite caia e é um prazer muito doce
Nada dizer Tudo o que faço é um ser invisível que o faz
Porque uma vez abotoado todo de azul
Confundido com o céu torno-me invisível
 
 
A LINDA RUIVA¹

Eis-me aqui diante de todos um homem cheio de bom senso
Conhecendo da vida e da morte tudo o que um ser vivo pode conhecer
Tendo experimentado as dores e as alegrias do amor
Tendo sabido algumas vezes impor as suas ideias
Conhecendo várias línguas
Tendo viajado bastante
Visto a guerra na Artilharia e na Infantaria
Tendo sido ferido na cabeça trepanado sob o clorofórmio
Perdido os seus melhores amigos nessa pavorosa luta
Sei do antigo e do novo tanto quanto um só homem pode saber
E sem me inquietar hoje com a guerra
Entre nós e para nós meus amigos
Julgo esta longa querela entre a tradição e a invenção
                A Ordem e a Aventura
 
Vós cuja boca é feita à imagem da boca de Deus
Boca que é a própria ordem
Sede indulgentes quando nos comparais
Aos que foram a perfeição da ordem
Nós que por todo o lado procuramos a aventura
Nós não somos vossos inimigos
Queremos dar-vos vastos e estranhos domínios
Onde o mistério em flor se oferece a quem o quiser colher
Há lá fogos de cores nunca antes vistas
Mil fantasmas imponderáveis
Aos quais é necessário dar realidade
 
Queremos explorar a bondade país enorme onde tudo se cala
Há ainda o tempo que se pode fazer parar ou retroceder
Piedade para nós que combatemos sempre nas fronteiras
Do ilimitado e do futuro
Piedade para os nossos erros piedade para os nossos pecados
 
Eis que chega o Verão a estação violenta
E a minha juventude morreu com a Primavera
Oh sol chegou o tempo da razão ardente
                                                               E eu espero
Para seguir sempre a forma nobre e doce
Que ela toma para que seja o meu único amor
Ela chega e atrai-me como o íman ao ferro
                Ela tem o aspecto sedutor
                De uma adorável ruiva
 
São de oiro os seus cabelos
E é vê-los a brilhar
Ou como essas chamas que nas rosas-chá
Quase murchas não param de dançar
 
Mas ride ride de mim
Homens de toda a parte sobretudo gente daqui
Porque há tantas coisas que eu não ouso dizer-vos
Tantas coisas que vós não me deixaríeis dizer
Tende piedade de mim
 
 
O SUICIDA
 
Três grandes lírios Três grandes lírios na minha sepultura sem cruz
Três brancos lírios polvilhados de oiro que o vento fustiga
Regados apenas quando de súbito no céu negro se faz luz
Majestosos e belos como o ceptro dos reis
 
Um nasce duma ferida e quando um o toca um raio de luz
Veste-se de sangue É o lírio do pavor
Três grandes lírios Três grandes lírios na minha sepultura sem cruz
Três brancos lírios polvilhados de oiro que o vento fustiga
 
O outro nasce do meu coração que padece no leito
Onde o roem os vermes Irrompe da minha boca o terceiro
Solitários florescem os três sobre a minha sepultura
Solitários solitários e malditos como eu
Três grandes lírios Três grandes lírios na minha sepultura sem cruz
 
 
______
 
Wilhelm Albert Wlodzimierz Aleksander Apolinary de Kostrowitzsky nasceu a 26 de agosto de 1880, em Roma, Itália. A sua mãe, Angelika de Kostrowitzsky, era uma mulher nobre de ascendência polaca, enquanto o pai sempre fora conotado como desconhecido — embora se suspeite de Francesco d’Aspermont, um militar italiano de família igualmente nobre. Apollinaire, porém, sempre se revelou bastante reservado quanto às suas origens.  
 
A infância e juventude do talentoso poeta é repartida por diversas cidades europeias, especialmente francesas: Paris, Cannes e Nice — seguindo os impulsos amorosos de sua mãe. Por consequência, desde tenra idade Apollinaire ficou fluente em francês, italiano e polaco.
 
Após uma estadia na Alemanha, onde supostamente ter-se-á registado o seu despertar artístico, digamos assim, ou seja, onde pela primeira vez sentiu a sua vocação poética e decidiu-se a segui-la, Apollinaire regressa a Paris. Contava vinte anos de idade, e demonstrava um enorme interesse pelas novidades literárias e políticas da época, revelando inclinações anarquistas. De pronto entrega-se a uma vida boémia, o que lhe permitiu um contacto directo e rápido com a vanguarda artística da época, não importando a área de talento: Picasso, Rousseau, Breton, Chagall ou Gertrude Stein figuravam entre os seus amigos mais próximos. Decide, então, mudar o seu nome de baptismo para a versão francesa do mesmo, fixando-o na forma pela qual hoje a conhecemos: Guillaume Apollinaire.
 
Começa a trabalhar como secretário e, para sobreviver, escreve novelas eróticas — uma delas seria proibida em França até à década de 70 (!). A sua sede de viajar não cessa, deambulando por Áustria, Alemanha e Inglaterra, deixando para trás um considerável rastro de amantes. A actividade artística desenvolve-se, apurando o seu timbre de originalidade. Naturalmente, vários poemas seus começam a aparecer em publicações relevantes, nacionais e estrangeiras — como O Portugal Futurista, onde colaborou em breves ocasiões.  
 
Mais dedicado ao trabalho literário, Apollinaire começa a destacar-se entre as novas vozes poéticas que se vão erguendo no começo do século. Explora igualmente a área do jornalismo, do teatro, do conto e da crítica. Pelo meio, assume a responsabilidade de reabilitar a obra do Marquês de Sade, tarefa que cumpre com sucesso.
 
Em 1911 é acusado de cumplicidade no roubo da famosa obra de Leonardo da Vinci, a Mona Lisa. É detido e enviado para uma prisão local, mas posto em liberdade uma semana depois por falta de provas. (De facto, como posteriormente se descobriu, Apollinaire não teve qualquer responsabilidade, directa ou indirectamente, no escandaloso furto.) Dois anos depois é publicada a sua primeira recolha poética, Alcools, a obra que firmará a sua boa reputação como um poeta original, de extrema criatividade e inegável qualidade.
 
A Europa fervilhava de novas ideias, revelando uma fome tremenda em avançar artisticamente para novos horizontes. Diversos movimentos começam assim a esboçar as suas propostas, ainda que num estado embrionário. Deixamos um facto curioso: Apollinaire, graças aos seus dotes de análise crítica, foi o responsável por lhes ter dado um nome, o que os tornou mais definíveis, na época, firmando-os depois para a eternidade. Falamos de expressões tão conhecidas como o Cubismo, do qual era um apaixonado defensor, o Orfismo e, um pouco mais tarde, o Surrealismo (adjectivo que encontrou para descrever os trabalhos de Erik Satie). Em 1917 é apresentada a peça Os Seios de Tirésias, de sua autoria, considerada um dos primeiros trabalhos do movimento surrealista. Apollinaire, na sua juventude muito influenciado pelos preceitos do simbolismo, tornou-se alvo de grande admiração por parte daquele que seria o futuro núcleo de poetas surrealistas franceses, nomeadamente o seu amigo André Breton.
 
Com o rebentar da Primeira Grande Guerra, Apollinaire faz uma petição para incorporar o exército francês, dado que à época era ainda considerado um cidadão estrangeiro. É aceite e, já em cenário de guerra, fica seriamente ferido numa das têmporas, ferimento esse que deixará sequelas até ao dia da sua morte. Durante o período de recuperação, Apollinaire escreve a célebre peça de teatro atrás referida.
 
Já perto do fim do conflito casa-se com uma antiga modelo de Picasso, a quem escreveu o poema “A Linda Ruiva”, aqui apresentado aos nossos estimados leitores. Contudo, a união não durará mais que poucos meses. No dia 09 de novembro de 1918, o mesmo dia em que a Europa acordou com a boa-nova da abdicação da Alemanha, marcando o término imediato da Grande Guerra, Guillaume Apollinaire sucumbe à devastadora pandemia que assolava o continente: a gripe espanhola, ou influenza. Tal como outros artistas que por tal enfermidade foram privados de partilhar com o mundo o expoente máximo de toda a sua criatividade e talento, também Apollinaire, como o artista português Amadeo de Souza-Cardoso, por exemplo, se viu condenado ao mesmo destino. Tinha então trinta e oito anos de idade.
               
Não se afirme, porém, que Apollinaire viveu uma existência monótona, nem que não dispôs de tempo suficiente para revelar talento e originalidade. De facto, a sua voz influenciou indelevelmente o início do século XX, estando na vanguarda de diversos movimentos que ajudariam a moldar os destinos das artes nas décadas seguintes. Curiosamente, seguindo sem querer o exemplo dos grandes mestres, Apollinaire deixou obra capaz de influenciar movimentos, uma visão com força suficiente para abrir horizontes e expandir caminhos de expressão, mas ele próprio nunca seguiu uma escola nem desejou pertencer a uma.  

Mesmo tendo recebido, como já estabelecemos, uma herança simbolista, e de certos contornos do Modernismo serem perceptíveis no seu trabalho, Apollinaire era, como muitos dos seus companheiros de artes o definiam, um dos espíritos mais livres que alguma vez viveu. E isso comprova-se ao analisar a raiz da sua criação: imune a teorias, recusando filosofias, nasce dum impulso de momento, duma força vital que, assim, cria-se e molda-se ao instante e a tudo o que nele vive, seja mundo exterior ou interior, abraçando a vida na sua totalidade, na sua absoluta liberdade de manifestação. Por isso a sua poesia se despiu de pontuação, recebendo diversas vezes um ritmo imprimido pela escrita corrida do verso. É uma arte, conforme o próprio explicava, que nasce da imaginação e da intuição, tal como é o seu dever, estando o mais próximo possível da vida e do Homem, dividido num equilíbrio sempre frágil entre, como escreveu num célebre poema, “a tradição e a invenção / a Ordem e a Aventura» - mas sem espaço para capitulações, apontando ao máximo possível, «sempre nas fronteiras / Do ilimitado e do futuro”.
 
Notas
* Versões de Jorge Sousa Braga em O Século das Nuvens (Assírio & Alvim, 2007).
 
1 Trata-se de Jacqueline Kolb, modelo de Pablo Picasso e futura esposa do poeta. O casamento de ambos duraria poucos meses, devido ao desaparecimento precoce de Apollinaire. Jacqueline foi responsável pela edição, a título póstumo, de diversas obras do esposo, deixadas por terminar ou aguardando uma revisão mais acurada.
 

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