Uma pequena observação sobre os romances de Rubem Fonseca

Por Bruno Botto

Rubem Fonseca. Foto: Fernando Pimentel. Arquivo revista Veja.


 
Os romances históricos de Rubem Fonseca (1925-2020) tinham o costume de voltar no tempo e nos ensinar algo. Claro, a função do romance histórico por natureza pode ser educacional ou até mesmo beirar a ficção especulativa. Por ser um autor recluso e de poucas palavras sobre os seus livros, fica difícil realmente reconhecer o que significavam os recortes temporais escolhidos pelo escritor brasileiro para contar em determinado livro. Mas juntando os cacos sobre a vida do autor, a breve história de nosso país e como a literatura pode ser moldável, ofereço aqui uma análise compreendendo três de seus romances históricos: Agosto, O selvagem da ópera e José. 
 
Agosto foi lançado em 1990 e talvez seja o romance mais celebrado do autor. No livro, somos transportados para a ebulição política deste mês de 1954: Getúlio Vargas está vacilante no seu cargo e o destino do país se divide entre getulistas e golpistas. Paralelamente, conhecemos o incorruptível Comissário Mattos que investiga um assassinato que pode estar relacionado com um escândalo muito maior. Este é um romance noir em sua excelência, tem uma atmosfera fúnebre, um personagem principal durão e com princípios, vilões caricatos e várias femme fatale. 
 
Nesse romance, figuras conhecidas da política brasileira aparecem para recontar a história de um país que tem seus problemas cíclicos com golpe e corrupção. O tempo se torna a principal característica desse romance, permitindo-nos passear por um Rio de Janeiro que ainda era Distrito Federal, com as ruas ainda ocupadas por bondes, prédios e palácios que sucumbiram nos avanços cruéis da modernidade. Agosto é um livro de história, é um estudo sobre um período crucial da política brasileira e mostra que o aparelhamento militar e civil começou bem antes do golpe de 64. Nessa época, o próprio Rubem tinha ingressado na polícia, trabalhando de comissário (assim como o seu personagem) no distrito policial de São Cristóvão no Rio de Janeiro. Viveu o tempo que escreveu como um policial.
 
Fonseca escolhe sacramentar o 1954 como apoteótico, o ano divisor de águas para os próximos acontecimentos. Agosto de 54 acaba virando um nosso Maio de 68, o mês e ano de intensas greves e ocupações estudantis na França. No fim da leitura, pode ser dito que Agosto urge importância para conquistar mais espaço na cabeça de leitores e historiadores. 
 
O selvagem da ópera, de 1994, está muito mais focado no personagem de Antonio Carlos Gomes, o famoso compositor da ópera O Guarani. O livro funciona como uma espécie de biografia da ascensão e queda desse personagem. Em capítulos curtos e recortes rápidos, o livro é um pouco preguiçoso em comparação a detalhes e ambientação de Agosto. Talvez por isso o seu fio condutor esteja em seu protagonista. A história valoriza-o e tenta colocar Antonio Carlos Gomes como um herói renegado, um gênio incompreendido. 
 
O livro funciona bem como um guia de curiosidades, mas a história relatada não enche os olhos de uma boa ficção histórica. Antonio Carlos Gomes se torna um personagem apático e desprezível de se acompanhar. Rubem bem tenta mas não consegue criar uma figura histórica com gana o suficiente para valer a história. Um exemplo recente em contraponto de um personagem histórico que consegue conquistar bem o leitor é Machado, de Silviano Santiago; neste romance somos apresentados a um Machado de Assis chegando nos seus últimos dias, que enquanto lida com a proximidade de sua morte desdobra-se com suas reflexões e limitações dignas de uma boa peça ao estilo machadiano.
 
Publicado em 2011 e um dos últimos romances de Rubem Fonseca, José é um caso curioso. Rubem já caminha para as nove décadas de vida. Participando ativamente como espectador e escritor da história brasileira do século XX e quase como um canto do cisne, decide contar um pouco de sua infância e juventude. Os acontecimentos desse romance esbarram com a vida do autor nascido em Juiz de Fora e chegado ainda jovem no Rio de Janeiro, numa família de pai comerciante.
 
É uma biografia não admitida; é uma história em que o tempo passa na percepção do próprio Rubem. Por meio do personagem José, Rubem apresenta para o público seu primeiro contato com a literatura, os livros e seus autores favoritos. Como ele descobriu o sexo e o relacionamento com a cidade carioca. José finaliza o percurso histórico criado dentro das obras do autor, desta vez ele mesmo administra, encabeça o personagem, o recorte e o seu tempo de vida.
 
As experimentações com tempo, personagem e a própria vida do autor são uma das coisas mais interessantes que podemos tirar desses livros. Os romances de cariz histórico possuem formas inesgotáveis de contar uma boa história, e em algum momento com toda experiência e o clamor que tinha, Rubem Fonseca percebeu que até podia se incluir na regra.
 

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