Cinco poemas de “Altitudes e Extensões (1980 – 1984)”, de Robert Penn Warren

Por Pedro Belo Clara 
(Seleção e versões)*

Robert Penn Warren. Foto: Bettmann



LIMITE MORTAL

Vi o falcão subir o vento no ocaso sobre o Wyoming. 
Ergueu-se da escuridão das coníferas, passando impiedosas
Cristas cinzentas, passando a faixa branca, entrando no crepúsculo 
De luz onírica e espectral acima da última pureza dos farrapos de neve.

A oeste, a cordilheira Teton. Picos nevados terão em breve
Um perfil escuro a quebrar constelações. Para lá de que altitude
Paira agora o negro ponto? Para lá de que distância olhos doirados
Verão novas lonjuras erguerem-se, para marcar um último rabisco de luz?
 
Ou, tendo provado a finura da atmosfera, será que 
Plana sem se mover, numa visão que falece antes
De saber que aceitará o limite mortal,
E deixar-se ao grande círculo descendente que restaurará

A respiração da terra? Da rocha? Da podridão? De outras
Coisas tais, e o negrume dum qualquer sonho que agarramos?


ESPERANÇA

Na orquidácea luz do entardecer,
Observa como, da folha mais baixa da sebe, rasteja,
De filamento em filamento de erva, a sombra roxa. Espalha
A sua cinza espectral abaixo da linha, os derradeiros
Raios doirados que, rumo a ocidente, descobriram aberturas
No magnífico desastre do dia.

Contra a luz doirada, por baixo da folha de ácer,
Um azul pálido reúne-se, acumula-se, é peneirado
Para modular a suavidade floral
Do ouro intrusivo, através dos enegrecidos galhos do abeto. 
Os abetos elevam a derradeira glória pela sua teimosia.
Parecem rígidos num bronze escurecido. 

Espera, espera – como se um dedo fosse posto sobre os lábios.
A primeira estrela desponta timidamente, não estando
Ainda escuro. Tal audácia 
Será recompensada em breve. Nesta luz de transição,
Enquanto cinzas morrem a oeste, o mundo
Tem a sua última floração. Deixa o espírito

Sossegar. O dia inteiro coagulou-se no teu peito,
Desenraizado pela intrusão da verdade ou da mentira, ou ambos.
Deixa os dois de parte, não debatas a sua natureza. Em breve,
Quando nem o último pássaro chilrear, o último morcego parte.
Até o último motor desvanece na distância. A promessa
De luar amanhecerá, e lentamente, com todo o esplendor, a lua

Dominará os céus, o mundo, o coração,
Num níveo indulto.  


NEVÃO

A brancura do silêncio, no silêncio de esquadrões 
De cascos de algodão, nenhum ranger de estribo, nenhum brilho de metal – 
Pela minha colina, a oeste, chega a cavalaria branca 
Para extinguir o último carmesim desvanecido que delineia a encosta.
Era uma corneta? Ou somente o vento nos abetos?
No mundo, que música não conseguimos escutar? 

Os anos passam, e como sempre há tanto a lembrar, a esquecer: o primeiro
Verde a despontar na verde grama, anunciando
A velha imortalidade da Terra; o primeiro
Assobio dos melros, ou dos tordos-ruivos, ao chegar,
Imensos, borbulhando de música e esperma;  
A primeira vez que o teu jovem rosto, rubro de vergonha, desviou o olhar
Quando ela se inclinou com força sobre a cerca que vos separava,
Assim pressionando os seus peitos pueris, elevando-os. 

Tento, com esforço, lembrar-me do seu nome. Qual era?
Tento, com esforço, lembrar-me do brilho do olhar, da charmosa estupidez.

Pensa como lento foi o crescer duma certa tarde de verão – 
Como crescem as uvas, as maçãs, as ameixas – deitado sozinho numa colina,
Apenas a pura opalescência do céu 
Preenchendo olhos e coração, e tudo o que precisavas saber
Era o silêncio em que te deitavas. Mas
As tardes terminam. Depois, lembra
A mão que seguraste à sombra tardia das faias,
À hora em que nenhum pássaro volta a cantar.

Lembra, lembra o “adeus” na plataforma da estação – e
Como um adeus escapa-se tal qual a cobra num emaranhado de ervas,
Pois o mundo é imenso e tem muitas fases e rostos,
E o fim de cada verão é o fruto do outono.
Em que ano conhecerás o fruto que és tu?

O outono dobra-se com o peso, lustroso e rubro. 
A uva inchada sangra na língua, sumo e polpa em busca
Da escura alegria da garganta. Caminharás de novo onde as castanhas caem,
Sonhando como tu, anos antes, uma criança, aí foste feliz.

Entretanto, no norte longínquo, em Vermont,
Os áceres ardem em oiro derradeiro. Quando as folhas caem
Os rebordos cinzentos da montanha enobrecem. Os veados
Pastam por onde conseguem. O urso
Irá em breve adormecer sem sonhos. O frugal
Rodopiar da neve repousa agora, o vento
Levanta-se. Cobertos de branco,
Ao sul, dois estados, estendem-se por milhas até à enseada,
Onde, ao caminhares pela areia encrustada de sal, flocos de neve
Morrem no rodopio de pequenas ondas brancas.

E a areia encrustada de sal range debaixo das botas.

Não te lembras que ano foi o primeiro,
Pois tantos já se passaram. Agora, de novo rumo à colina,
Vem o silêncio de cascos de algodão, o girar dos esquadrões,
Que pisam as últimas brasas do dia, e tu

Permaneces na escuridão da brancura
Que é a perfeição de Ser. 


VERDADEIRO AMOR

Em silêncio o coração delira. Pronuncia palavras
Sem sentido, palavras que nunca tiveram
Significado. Tinha eu dez anos, magricela, arruivado,

Sardento. Num grande e negro Buick,
Levada por um rapaz alto, de gravata, ela sentou-se
Em frente duma drogaria, bebericando algo

Por uma palhinha. Não há nada como
A beleza. Faz o teu coração parar. Faz
O sangue engrossar. Interrompe a respiração. Faz-te 

Sentir sujo. A necessitar dum banho quente. 
Encostei-me a um poste de telefone e fiquei a olhar.
Pensei que morreria se ela me descobrisse. 

Como poderia eu existir no mesmo mundo daquela luz?
Dois anos depois, sorriu para mim. Ela
Disse o meu nome. Pensei que acordaria morto.

Os seus irmãos, já crescidos, caminhavam com aquele
Gingar típico dos cavaleiros. Tinham o rosto liso.
Contavam piadas na barbearia. Não trabalhavam.

O pai deles era aquilo a que se chama um alcoólico. 
Fosse o que fosse, ficou no terceiro andar
Da grande casa branca, debaixo dos áceres, por vinte e cinco anos. 

Nunca descia. Traziam-lhe tudo para cima.
Eu não sabia o que era uma hipoteca.
A sua esposa era uma boa mulher cristã, e rezava.
 
Quando a filha casou o velho desceu, vestindo
Um antigo casaco de cauda, a camisa plissada já amarela.
Os filhos amparavam-no. Assisti ao casamento. Havia

Convites com relevos, era tudo primeira moda. Pensei
Que fosse chorar. Deitei-me nessa noite
A pensar se ela choraria quando lhe fizessem alguma coisa.

A hipoteca foi executada. A última palavra sussurrada.
Ela nunca mais voltou. A família
Como que se dispersou. Já ninguém usa botas brilhantes como aquelas.  

Mas eu sei que ela é bela para sempre, e vive
Numa bonita casa, lá longe.
Uma vez, disse o meu nome. Nem sequer sabia que o conhecia. 


A RAPARIGUINHA QUE SE LEVANTA CEDO

Lembro quando eras a primeira a acordar, a primeira
A mexer-se na casa coalhada pela madrugada, os pequenos pés descalços
Frios nas tábuas, todas as portas fechadas e amaldiçoadas,
E além delas talvez nenhuma respiração, nenhum bater de coração.

Sustinhas a respiração e pensavas como pela cidade inteira
As casas tinham as portas fechadas, e nem sussurro de respiração dormente, 
E isso significava nenhum baloiçar, ninguém para puxar para cima ou baixo,
Nenhum jogo de escondidas, nenhuma brincadeira séria no governo da casa.

Então corrias para o exterior, os pés molhados pelo orvalho,
E trepavas a cerca da casa do teu mais querido amigo,
E abrias a boca e enrolavas a língua, tudo a postos
Para chamares o seu nome – mas o som não vinha, no fim,

Pois pensavas quão terrível seria se não houvesse ali um fôlego 
Em resposta. Lágrimas começavam a brotar, corrias para casa, onde agora
A mãe, sobre o fogão, murmurava uma das suas canções favoritas.
Abraçavas as suas pernas, mas as lágrimas não terminavam,

Nem irão terminar, mesmo que ela te abane – 
E fá-lo com força – e só aumentam quando não consegues explicar. 
A mãe já morreu há muito. E aprendeste que quando a solidão te toma
Nunca há ninguém a quem possas explicar – emboras tentes, uma e outra vez. 




* Seleção e versões de a partir dos originais antologiados no capítulo “Altitudes and Extensions, 1980-1984”, em New and Selected Poems, 1923-1985 (Random House, New York, 1985)

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